Leia o perfil da rapper Karol Conka publicado na Revista Helena 20/05/2014 - 10:00

Como Karol Conka se tornou uma das revelações da música brasileira rimando sobre as quebradas da zona sul curitibana
 
Daniel Caron

por André Pugliesi | fotos Daniel Caron

“Quem disse que santo de casa não faz milagre?”, provoca Karol Conka, imediatamente respondida com um urro pela plateia. “Aqui é Curitiba, caralho!”, emenda, para delírio geral da molecada que transpira e trepida, enfurnada numa já tradicional festa de rap na Rua Mateus Leme.

Mesmo em território atípico, a atmosfera de autocelebração é idêntica. Novembro de 2013, sábado de sol, Boca Maldita. No palco principal da Corrente Cultural, a rapper transforma o centro da cidade onde nasceu em seu quintal, cheia de marra, atraindo a curiosidade da imensa fila do McDonald’s. “Eu sou a negrita doida”, diz.

Efeito de uma escalada iniciada meses antes, em abril, quando Karol lançou o seu primeiro e único álbum, Batuk Freak. Disponibilizado para download no site de uma revista, registrou 22 mil downloads em cinco dias. Teve a música “Boa Noite” incluída no jogo de videogame Fifa 14 e concebeu outra especialmente para uma propaganda da Adidas.

Conquistou terreno dentro e fora da capital paranaense. O disco pipocou em diversas listas de melhores da temporada — incluindo a da revista Rolling Stone brasileira. Foi destaque nacional ao faturar o prêmio de artista revelação do canal por assinatura Multishow, batendo na eleição do júri a badalada Anitta e a tentativa de musa indie Clarice Falcão. Rolou confete até no estrangeiro.
 
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“Lembro de vê-la e ficar muito impressionado com o carisma, o domínio do palco. O show nem estava lotado, mas ela fez parecer que estava, com sua energia. Fico muito feliz em ver todas essas flores em seu caminho, uma história que orgulha e inspira nossos irmãos e irmãs pelo mundão”, elogia Emicida, atualmente o maioral da vertente no Braza.

Num cenário musical no qual é necessário vasculhar a memória e, invariavelmente, apelar ao Blindagem como figura que rompeu (de leve) as fronteiras do Paraná, é mole compreender toda essa panca de milagreira. “Estou levando o meu nome e o da minha cidade a lugares que pouca gente chegou. Eu falava que as pessoas iriam comentar do Boqueirão e me tiravam pra louca”, profere Karol.

O bairro é mencionado na segunda faixa de Batuk Freak, “Gueto ao Luxo”, resumo dos contrastes aos quais a curitibana teve de se habituar. “Um dia é caviar / No outro hot-dog/ Num dia Boqueirão / No outro em New York”, diz a letra, com o refrão “Vim de longe sem esquecer tudo o que já vivi / Do gueto ao luxo eu vou/ Quero ver o que está por vir”.

A MC (mestre de cerimônia) de 28 anos é do Alto Boqueirão. Morou até os 24 num dos milhares de apartamentos do Eucaliptos, construção da Cohab espalhada pela região. Pela Rua Luiz Carlos Muggiati, na Praça dos Menonitas, Vale do Sol, Karoline dos Santos de Oliveira forjou o caráter que a transformou em Karol Conka. Memória que embaralha violência, trauma, preconceito, inadequação, talento e gargalhadas.

Embora resista o jeitão de bairro, onde as lojas adotam a alcunha do dono — ou o nome da família Derosso — a zona sul é uma área sangrenta. Somando Boqueirão e Alto Boqueirão, 24 pessoas tombaram em crimes de janeiro a setembro de 2013, de acordo com o último relatório estatístico divulgado pela Secretaria de Estado da Segurança Pública. Considerando a localização geográfica, as tretas e a proliferação da cultura hip-hop pela localidade, trata-se da correspondente local de South Central — porção de Los Angeles infestada por gangues e meca do gangsta rap (subgênero “bandido”) e do grafite, apartada do glamour de Hollywood.

A “vida loka” sempre espreitou a família Santos de Oliveira. “Vi muita coisa, conhecia os meninos que mexiam com droga, mas por sorte nunca tivemos um problema sério. Creio que por causa da educação que os meus pais [Ana Maria e Odair] deram pra mim e pro meu irmão [William]. Mas a violência é algo que marca”, discorre Karol.

 
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A desgraça atacou de outra forma. O pai Odair sucumbiu ao alcoolismo com 34 anos. Foi recolhido bêbado numa poça na rua e carregado para casa. Ao levantar do sofá, tropeçou e, caído, acabou asfixiado pelo próprio vômito. Karol tinha 14 anos. “É a sombra que me acompanha. Eu me senti culpada, mas fui entendendo que era uma doença”, confessa.
 
Foi preciso batalhar também contra o preconceito por ser negra e pobre. Aos 5 anos, virou alvo preferencial do sarro das coleguinhas quando uma professora desmanchou, de sacanagem, as trancinhas do cabelo feitas pela mãe.

Na adolescência, viu a turma ser barrada na porta do shopping Estação Plaza. Vanguarda dos hoje batizados “rolezinhos”, fenômeno de inserção nos pontos de consumo da elite pela galera da periferia. Tudo engatilhado pelas redes sociais, com direto a trilha de rap, tubão (pinga harmonizada com refrigerante, mix degustado em garrafa pet) como néctar oficial e a piazada taxada de “vileiros”. “Os meninos nem entravam. E nada de roupas largas para as meninas”, relembra.

Outro episódio de rejeição foi significativo. No segundo grau, um professor de Artes investiu contra a aluna afirmando que “Preto não era gente”. Uma Karoline de moletom manchado amarelo, cabelo liso repartido e aparelho nos dentes relatou o caso para o documentário “Preto no Branco: Negros em Curitiba”, de 2004, realização do Projeto Olho Vivo, disponível na internet. “Fui ser negra no rap. Antes, para me sentir menos macaquinha, como escutei algumas vezes, alisava o cabelo”, revela.

Por aí, na largada dos anos 2000, Karol começou a arriscar uns versos. Escape para distender a inquietação que a perseguiu da infância e adolescência até enxergar-se quase adulta, sem a mínima disposição para os estudos. Constantemente recebia as piores notas do colégio. Queria ser artista — cantora, atriz, comediante (foi apelidada de Whoopi Goldberg), etc.

“Desde que eu conheci a Karol, ela sonhava ser estrela. No ônibus, ela punha a cabeça pra fora da janela e falava que estava ‘fazendo um clipe’. Não levava as coisas a sério”, recorda Milka Karolkievicz, os mesmos 28 anos da amiga, companheira de Boqueirão e Colégio Estadual Prof. José Guimarães, no Hauer.

Milka testemunhou a metamorfose da guria desmiolada para a proto-compositora compenetrada. “Ela disse que ia ganhar a gincana da escola para o nosso time e conseguiu com um rap”, conta. “Dizia algo como ‘Onde se paga pra nascer, se paga pra morrer, para pra pensar, fazer alguma coisa, a vida não é só queimar’”, rememora a analista de recursos humanos.

Em seguida, qualquer aspiração musical foi abandonada. Somente aos 19 anos, Karol assumiu o papel de mãe de Jorge, seu único filho, fruto de um namoro. O que era o fim da trilha do rap foi somente uma parada estratégica.
 

 

O RETORNO

Anos depois, amadurecida pela maternidade e seguindo o exemplo da mãe, eternamente serena e bem humorada, retomou os exercícios com as palavras. Não demorou a chamar atenção. Integrou o Agamenon, conjunto com quem gravou uma mixtape de sete canções. Na sequência, fez parte do Upground Beats, ao lado de Mike Fort, São Nunca, Guerra Santa, Nel Sentimentum e Nairóbi.

O enrosco é que a vocação não dava grana. O jeito foi se virar como vendedora, atendente de telemarketing, secretária e recepcionista (sua última função, na escola Centro Europeu, em 2011). “Fui funcionária das quatro sedes. Achava que estava abafando, mas era transferida porque fritava a cabeça das pessoas, incomodava geral”, admite Karol.
 
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Enquanto isso, encontrou como aliado o produtor Nave, igualmente curitibano. A dupla elaborou Batuk Freak de 2009 a 2013. Período suficiente para combinar letras desenvoltas, beats sintéticos e graves pegados. “É sensacional essa abertura de assuntos. O rap não é só protesto, racismo, dinheiro, sexo. A Karol tem um flow [fluência] incrível. E o Nave é um produtor moderno. O disco é um grande avanço”, sentencia KL Jay, o homem que pilota as picapes dos já clássicos Racionais MC’s.

A parceria, no entanto, não continuou em 2014. “O desentendimento envolve a mulher dele. É uma pena. As batida não sairiam daquele jeito, se não fosse eu. Beatmaker não faz milagre. Com ou sem o Nave vou continuar. Só talento não basta, caráter é importante”, ataca Karol, agora guiada na mesa de som pelo DJ Jeff Bass, outro conterrâneo. O produtor foi procurado pela reportagem, mas preferiu não se pronunciar.

Não há previsão de novo disco. Os esforços são para divulgar a obra de estreia, inclusive fora do país — há shows marcados em Paris, Londres e Tóquio. “Eu quero ser a Oprah”, dispara a curitibana, referindo-se à apresentadora e empresária americana Oprah Winfrey, a mulher mais bem paga da história da televisão mundial (e negra como Karol).

Há quem bote fé. “A Karol é uma entertainer legítima, divertida e comunicativa. Pode se aventurar em qualquer segmento”, afiança a paulistana Lurdez da Luz, outra representante de uma nova geração de rappers mulheres, mais femininas, vaidosas, distantes de uma masculinização que reinou por anos, consequência do machismo do estilo. Rompimento que tem atraído até o público gay para as pistas. “Eu gosto de me vestir quase como uma drag queen e as bibas se identificam”, explica a paranaense.

Recentemente, pintaram convites para filmes — um deles em fase de aprovação, para atuar ao lado de figurões do cinema nacional. “Tenho muitos planos. Se acontecer, será maravilhoso, mas o que eu quero é ser popular”, arremata Karol.


André Pugliesi é jornalista e criador do blog Jornalista de Merda. Atualmente trabalha no jornal Gazeta do Povo e mantém o blog www.andrepugliesi.wordpress.com.

Serviço:
A Revista Helena é uma publicação da Secretaria de Estado da Cultura do Paraná. Com tiragem de 5 mil exemplares, é distribuída gratuitamente na Biblioteca Pública do Paraná. Leia a edição completa aqui.

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