Helena #4: Inusitada moldura 14/01/2014 - 12:00
Um artista ateu e comunista realizou uma intervenção artística dentro de uma igreja católica no interior do estado na década de 50. Até hoje as pinturas “causam”, ainda mais pelo fato de que foram encomendadas pelo irmão do pintor, um bispo ultraconservador
Por Marcio Renato dos Santos
Fotos Cleiton Corrêa
O interior da Catedral Diocesana de Jacarezinho, além do ambiente de paz que quase toda igreja proporciona, tem “algo” diferente. Entre 1954 e 1957, Eugênio Proença de Sigaud (1899-1979) viveu na cidade e produziu pinturas na igreja, diante das quais é difícil permanecer indiferente — compreender os desenhos também não é fácil.
Ana Dias mora em Itambaracá (PR) e percorre diariamente 80 quilômetros para cursar Educação Física na Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), em Jacarezinho. Ela tem 26 anos e desde menina conhece a Catedral. “O abstrato dos desenhos chama a atenção, mas decifrar essas imagens é complicado”, diz. Esse ponto de vista — dificuldade para entender as pinturas de Sigaud na Catedral — é compartilhado por outras pessoas que moram na cidade de 39 mil habitantes, situada na região Norte do Paraná.
Camila Ferreira da Silva, de 24 anos, é vendedora, frequenta a igreja diariamente e diz não compreender o significado das imagens — ela também não sabe que os desenhos foram feitos por Sigaud. O pedreiro José Luiz Ribeiro, de 57 anos, considera as imagens bonitas, mas tem a impressão de que elas não dizem, necessariamente, respeito à religião.
Por Marcio Renato dos Santos
Fotos Cleiton Corrêa
O interior da Catedral Diocesana de Jacarezinho, além do ambiente de paz que quase toda igreja proporciona, tem “algo” diferente. Entre 1954 e 1957, Eugênio Proença de Sigaud (1899-1979) viveu na cidade e produziu pinturas na igreja, diante das quais é difícil permanecer indiferente — compreender os desenhos também não é fácil.
Ana Dias mora em Itambaracá (PR) e percorre diariamente 80 quilômetros para cursar Educação Física na Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), em Jacarezinho. Ela tem 26 anos e desde menina conhece a Catedral. “O abstrato dos desenhos chama a atenção, mas decifrar essas imagens é complicado”, diz. Esse ponto de vista — dificuldade para entender as pinturas de Sigaud na Catedral — é compartilhado por outras pessoas que moram na cidade de 39 mil habitantes, situada na região Norte do Paraná.
Camila Ferreira da Silva, de 24 anos, é vendedora, frequenta a igreja diariamente e diz não compreender o significado das imagens — ela também não sabe que os desenhos foram feitos por Sigaud. O pedreiro José Luiz Ribeiro, de 57 anos, considera as imagens bonitas, mas tem a impressão de que elas não dizem, necessariamente, respeito à religião.
Eugênio de Proença Sigaud foi convidado pelo irmão, o bispo D. Geraldo de Proença Sigaud (1909-1999), para realizar o trabalho artístico. Apesar dos laços de família, eles defendiam ideias e crenças radicalmente opostas. D. Geraldo era conhecido pelo conservadorismo, participou da fundação da Tradição, Família e Propriedade (TFP) no Brasil e não escondia de ninguém a sua postura anticomunista — enquanto Eugênio flertava com o comunismo e era ateu.
As imagens da Catedral, evidentemente, revelam a visão de mundo do pintor. No quadro “Sermão da Montanha”, Jesus Cristo prega, mas os olhares da população estão direcionados para um sujeito que lembra Karl Marx. Em Jacarezinho, ninguém explica por quê, exatamente, D. Geraldo convidou o irmão para realizar o trabalho. Afinal, as intervenções profanas em um ambiente sagrado, desde que foram vistas pela primeira vez, ainda na década de 1950, provocaram espanto e indignação — e seguem “causando” em 2013.
Jacarezinhenses eternizados
Américo Felício de Assis, de 76 anos, era coroinha nos anos 1950 e testemunhou um episódio clássico na história da cidade. Uma tarde, D. Geraldo se aproximou do andaime, onde, há mais de 10 metros de altura, Eugênio Sigaud se preparava para começar a pintura do último painel. “O bispo disse algo para o irmão, eu estava perto mas não escutei. O fato é que, de um segundo para o outro, o se
O advogado Celso Antonio Rossi, de 78 anos, comenta que a sociedade jacarezinhense da metade do século XX ficou eternizada no interior da Catedral, do prefeito Cássio Arantes Pereira a freiras, incluindo um curandeiro negro, o Zé Adão, que circulava pelas ruas com um cajado. “Sigaud incorporou moradores de Jacarezinho nas pinturas sobre os ritos da igreja”, afirma Rossi.
Moacir Gonçalves Madureira, de 83 anos, era estudante no momento em que Sigaud estava na cidade. Por diversas vezes, observou o pintor em ação. “Lembro dele nos andaimes. Pouca gente acompanhou a obra em progresso. Depois, foi um escândalo. As pessoas não concordavam com aquelas imagens”, conta Madureira, professor aposentado que há 60 anos frequenta a igreja e não se cansa de admirar os murais.
nhor Eugênio chutou um balde de tinta que despencou e, por pouco, não tirou a vida de D. Geraldo”, recorda Assis. Em seguida, o pintor saiu da igreja, deixando o painel em branco — que segue inacabado até hoje. O então coroinha está recriado em um desenho de Sigaud.O advogado Celso Antonio Rossi, de 78 anos, comenta que a sociedade jacarezinhense da metade do século XX ficou eternizada no interior da Catedral, do prefeito Cássio Arantes Pereira a freiras, incluindo um curandeiro negro, o Zé Adão, que circulava pelas ruas com um cajado. “Sigaud incorporou moradores de Jacarezinho nas pinturas sobre os ritos da igreja”, afirma Rossi.
Moacir Gonçalves Madureira, de 83 anos, era estudante no momento em que Sigaud estava na cidade. Por diversas vezes, observou o pintor em ação. “Lembro dele nos andaimes. Pouca gente acompanhou a obra em progresso. Depois, foi um escândalo. As pessoas não concordavam com aquelas imagens”, conta Madureira, professor aposentado que há 60 anos frequenta a igreja e não se cansa de admirar os murais.
Tarô e dissertação
Jucelino Biagini, de 42 anos, acredita que Eugênio Sigaud se inspirou até no tarô para compor os desenhos da Catedral. “As 12 profecias que anunciam Jesus Cristo, nas paredes laterais, no alto, podem ser lidas como cartas do tarô”, afirma Biagini, artista visual, professor e, atualmente, diretor do departamento de Cultura da Prefeitura de Jacarezinho. Ele faz pesquisas há 10 anos e pretende, em breve, publicar
O padre Rodolfo Pinho, de 29 anos, observa que cada pessoa faz a sua leitura, a seu modo, do legado de Sigaud em Jacarezinho. Ele reclama que as imagens interferem no culto. “Há muitas tonalidades escuras, que não proporcionam tranquilidade”, diz. O vigário paroquial da Catedral conta que as paredes internas da igreja eram originalmente da cor verde, mas houve um retoque, posterior, em tom pastel, “O que aliviou um pouco o ambiente”. Pinho analisa que a cores vermelhas, que se repetem, fazem alusão ao comunismo, preferência política do pintor, mas admite que é difícil fazer uma interpretação completa dos desenhos: “Não tem como decifrar os símbolos. Talvez, apenas o próprio Siguad ou alguma especialista pudessem explicar”.
A historiadora Luciana Evangelista, de 28 anos, pondera que, além do viés religioso, Sigaud estabeleceu em suas pinturas analogias com a cidade e com a sua própria concepção de arte. Quando chegou a Jacarezinho, ele já era conhecido como pintor dos operários, havia participado do Grupo Portinari — com a postura em defesa de expressões populares e atuação na pintura mural.
“O culto ao homem trabalhador e a crítica social são as principais temáticas que conduzem as pinceladas de Sigaud. Não nos esqueçamos, contudo, de que, enquanto encomenda, as pinturas tinham uma narrativa religiosa atravessada aos interesses do artista. Portanto, as pinturas não são simplesmente duais, são de uma dualidade indissociável. É do paradoxo que elas nascem, ganham forma a partir dos encontros e desencontros dos irmãos Eugênio e D. Geraldo Sigaud, o bispo ultraconservador e encomendador da obra”, diz Luciana, autora da dissertação de mestrado “O Artista e a Cidade: Eugênio de Proença Sigaud em Jacarezinho (1954-1957)”, defendida na Universidade Estadual de Londrina (UEL) em 2012.
O maior desafio no estudo acadêmico de Luciana foi, como ela mesma ressalta, estabelecer estranhamento diante do objeto, desnaturalizar as imagens, ou seja: entrar na igreja como pesquisadora e como se nunca tivesse visto aquelas pinturas — tombadas e desde 1990 consideradas Patrimônio Artístico do Estado do Paraná. Luciana vive em Jacarezinho e costuma dizer que o seu primeiro contato com aquelas imagens foi aos 7 dias: ela foi batizada na Catedral.
A historiadora, de fato, conseguiu se distanciar do seu objeto de pesquisa. Sua dissertação traz explicações e análises sobre a presença de Sigaud na cidade paranaense e um estudo minucioso das pinturas. O trabalho acadêmico inclui até mesmo informações sobre o projeto arquitetônico original inicial da igreja, de autoria de Benedito Calixto Neto, alterado em 600 metros quadrados para se tornar — inquestionavelmente — uma grande, e inusitada, moldura para as obras de Eugênio de Proença Sigaud.
dois livros sobre o assunto, um ensaio teórico e um romance. “Tudo o que o Sigaud fez na Catedral foi muito bem calculado. Nada nas pinturas dele é por acaso. Vou provar isso por meio dos livros que estou escrevendo”, anuncia.O padre Rodolfo Pinho, de 29 anos, observa que cada pessoa faz a sua leitura, a seu modo, do legado de Sigaud em Jacarezinho. Ele reclama que as imagens interferem no culto. “Há muitas tonalidades escuras, que não proporcionam tranquilidade”, diz. O vigário paroquial da Catedral conta que as paredes internas da igreja eram originalmente da cor verde, mas houve um retoque, posterior, em tom pastel, “O que aliviou um pouco o ambiente”. Pinho analisa que a cores vermelhas, que se repetem, fazem alusão ao comunismo, preferência política do pintor, mas admite que é difícil fazer uma interpretação completa dos desenhos: “Não tem como decifrar os símbolos. Talvez, apenas o próprio Siguad ou alguma especialista pudessem explicar”.
A historiadora Luciana Evangelista, de 28 anos, pondera que, além do viés religioso, Sigaud estabeleceu em suas pinturas analogias com a cidade e com a sua própria concepção de arte. Quando chegou a Jacarezinho, ele já era conhecido como pintor dos operários, havia participado do Grupo Portinari — com a postura em defesa de expressões populares e atuação na pintura mural.
“O culto ao homem trabalhador e a crítica social são as principais temáticas que conduzem as pinceladas de Sigaud. Não nos esqueçamos, contudo, de que, enquanto encomenda, as pinturas tinham uma narrativa religiosa atravessada aos interesses do artista. Portanto, as pinturas não são simplesmente duais, são de uma dualidade indissociável. É do paradoxo que elas nascem, ganham forma a partir dos encontros e desencontros dos irmãos Eugênio e D. Geraldo Sigaud, o bispo ultraconservador e encomendador da obra”, diz Luciana, autora da dissertação de mestrado “O Artista e a Cidade: Eugênio de Proença Sigaud em Jacarezinho (1954-1957)”, defendida na Universidade Estadual de Londrina (UEL) em 2012.
O maior desafio no estudo acadêmico de Luciana foi, como ela mesma ressalta, estabelecer estranhamento diante do objeto, desnaturalizar as imagens, ou seja: entrar na igreja como pesquisadora e como se nunca tivesse visto aquelas pinturas — tombadas e desde 1990 consideradas Patrimônio Artístico do Estado do Paraná. Luciana vive em Jacarezinho e costuma dizer que o seu primeiro contato com aquelas imagens foi aos 7 dias: ela foi batizada na Catedral.
A historiadora, de fato, conseguiu se distanciar do seu objeto de pesquisa. Sua dissertação traz explicações e análises sobre a presença de Sigaud na cidade paranaense e um estudo minucioso das pinturas. O trabalho acadêmico inclui até mesmo informações sobre o projeto arquitetônico original inicial da igreja, de autoria de Benedito Calixto Neto, alterado em 600 metros quadrados para se tornar — inquestionavelmente — uma grande, e inusitada, moldura para as obras de Eugênio de Proença Sigaud.