Conheça a história da poeta Júlia da Costa na Revista Helena 03/07/2014 - 09:00
Quem foi Júlia?
Essa poeta melancólica e sofrida, cuja obra se divulga pouco, nos propõe uma questão simples e quase insolúvel: quem foi Júlia Maria da Costa?
Texto Roberto Gomes | Ilustrações Biel Carpenter
Um de seus enigmas é sua capacidade de se transformar em — ou ser vista como — um mito. Já em vida ela não era considerada, no círculo modesto de São Francisco, como uma pessoa qualquer. Aos 26 anos continuava solteira — o que, para a época, era um escândalo. Seu casamento com o Comendador Francisco esteve rodeado de mistérios e fofocas. Teria sido por conveniência, por interesse, por imposição — ou por fuga. E jamais teria se consumado, segundo alguns. Há quem defenda que Júlia morreu virgem. Numa palestra que apresentei em Paranaguá, quando desmenti esse mito, quase fui defenestrado da sala. Por outro lado, teria sido uma espécie de agitadora cultural, promovendo bailes, festas, reuniões literárias e escrevendo sobre esses acontecimentos nos jornais. Mas se metia igualmente em polêmicas políticas, opinava sobre a Guerra do Paraguai, sobre a Monarquia, sobre D. Pedro II, paixão que dividida com o marido. Nada disso combinava com o modelo de mulher então recomendável.
Sua aparência física não escapou de versões e depoimentos conflitantes.
Para uns, um modelo idealizado de beleza: loira, alta, olhos azuis. Para outros, morena, olhos negros, muito bela. Contemporâneos seus se referem a ela como charmosa e atraente. Há uma única unanimidade: seria uma mulher muito inteligente. Aliás, vivendo no século XIX, sofreu por ser inteligente.
Há uma frase sua com o poder de um terremoto: “Ser inteligente é um fardo muito pesado para uma mulher”. No seu caso, com um agravante: fazer coisas reservadas aos homens, tais como escrever em jornais, defender ideias, ter ideias próprias, ser independente e, inclusive, pintar os cabelos e usar maquiagem, ousadia que, segundo alguns, só as prostitutas cometiam na época.
Por outro lado, circulavam comentários a respeito da infidelidade conjugal crônica da poeta — o que se choca com o mito da virgindade pétrea. Essa busca de outros amores teria feito com que fosse mantida quase prisioneira, pois era casada com um homem 30 anos mais velho do que ela, a quem não amava. Alguns afirmam que no casarão onde residia, além de sofrer com os maus-tratos do marido, tinha como hóspede no andar de baixo uma das amantes preferidas do Comendador. E, pior, a suposta amante seria negra, o que parecia agravar o insulto.
Não faltam registros ou insinuações de que teve vários amores, sobretudo após o casamento. Além da paixão de sua vida, Benjamim Carvalho d´Oliveira, teria havido um comandante de navio da frota do Comendador e um Alferes. E não apenas esses, embora as informações de outros casos sejam vagas, mas confiáveis.
Como fecho romântico e trágico dessa história — a segunda unanimidade a seu respeito — teria vivido os últimos 11 anos de sua vida completamente louca, trancada no casarão, sem ver e sem ser vista por ninguém.
Mas teria sido isso mesmo?
O historiador Carlos da Costa Pereira escreveu um livro sério e competente a respeito de Júlia. Sobrinho neto do Comendador Francisco, teve como motivação recuperar o tio-avô da fama de marido intratável, rústico e brutal. Mas não só isso: deu a Júlia feições mais humanas e plausíveis, sem endeusamentos ou moralismos rasteiros.Aliás, dois grupos atrapalham que se entenda Júlia: os seus adoradores, que a divinizam ou idolatram, e os seus detratores, que a tratam como vulgar e poeta menor.
Devemos lembrar que nos anos que se seguiram a sua morte (1911), quando se começou a discutir sua obra e sua vida, uma polêmica envenenava os ânimos de jornalistas, historiadores e críticos literários da época.
Como Júlia havia nascido em Paranaguá, para onde jamais voltou, passando a vida inteira em São Francisco, desencadeou-se uma rixa — que curiosamente é ainda alimentada por alguns — para se saber se deveria ser classificada como poeta do Paraná ou de Santa Catarina. Uma questão insignificante, é claro, mas que movia e move muitas vontades e vaidades.
Nessa época, os entreveros entre Paraná e Santa Catarina eram muitos. Estava-se nos limites da guerra do Contestado (1912-1916), que colocaria os dois estados em conflito. A rivalidade e as rixas estavam presentes no universo mental de catarinenses e paranaenses, o que provocou diversos debates movidos por um clima patrioteiro, inclusive a disputa para se saber a que estado Júlia pertenceria.
Nessa polêmica, novas imprecisões: uns diziam que ela não só nascera como tivera educação esmerada, inclusive aulas de piano, em Paranaguá — cidade à qual devia tudo e que estaria presente em seus versos sempre que falava, com nostalgia, de um lugar para o qual nunca pôde voltar. Seria, então, paranaense.
Com isso se insinuava que ela fora impedida de voltar a sua terra natal por culpa do Comendador, que, embora sendo português, passava aqui por uma espécie de tirano catarinense.
Tais distorções levaram, segundo o historiador Carlos da Costa Pereira, a visões conflitantes e injustas das duas figuras em questão, o Comendador e Júlia. Por um lado ele era visto, como “esposo concupiscente e rústico, o qual chegou ao cúmulo de instalar uma concubina na parte térrea de sua residência familiar”, segundo Colombo de Souza, Rodrigo Júnior e Alcebíades Plaisant, e “verdadeiro carcereiro enciumado duma alma que não soubera compreender e por isso a martirizava com grosseiras expressões burguesas”, segundo Nascimento Júnior. Por outro lado, diz o historiador Costa Pereira, a figura de Júlia foi escondida sob um dilúvio de suspeitas, fantasias e lendas. Os estudiosos acima falam de Júlia como de uma jovem esperançosa e feliz, que só se tornou pessimista e cética, chegando à demência, por culpa do marido cruel que a maltratava e traía.
Aqueles que defendiam ser catarinense, notavam que fora muito jovem para São Francisco, em torno dos seis anos, cidade onde obtivera boa formação intelectual, quando estudara piano. E em São Francisco escrevera toda sua obra, publicara em jornais, tendo seu livro editado na Ilha do Desterro. E ali vivera até a morte. Portanto, seria catarinense.
Esses defendiam o Comendador, que não seria o tirano pretendido. Ao contrário, dera a ela uma vida de luxo que de outra forma jamais teria, tratava-a bem, e o declínio de sua saúde mental não teria nada a ver com maus-tratos, mas com um estado depressivo no qual sempre vivera, desde quando era apenas uma jovem adolescente.
Não deixa de ter alguma razão esse argumento, já que a poesia de Júlia — publicada com o título de Flores Dispersas em 1867 e 1868 — foi escrita antes de seu casamento, em 1871. Júlia tinha cerca de vinte e poucos anos, e seu pessimismo, seu tormento metafísico, suas angústias românticas, já estão presentes nessas obras. Portanto, ao contrário do que muitos pensam (por exemplo, Pompília Lopes dos Santos), não foi após o casamento indesejado que a poeta se encheu de sombras. Essa visão fantasiosa é estendida por Pompília aos atributos físicos da poeta: olhos azuis com tonalidades marinhas, “seus cabelos loiros na adolescência, vestiam-na de sol. De sua fina silhueta, o talhe encantava”.
Ao contrário, numa quadra publicada no jornal Clube do Comércio, de Paranaguá, em setembro de 1881, a poeta é descrita como “moça morena, cabelos bem negros”, o que conflita com a loirice pretendida, se bem que nessa mesma quadra não faltem atributos angelicais para a figura física de Júlia, tais como “pescoço de cisne”, “pezinho de vime, de fada a cintura”. E por aí vai.
De toda essa polêmica, resultaram algumas coisas.
Hoje dispomos de uma única foto da poeta. Nela não encontramos a criatura idealizada. Júlia não era loira, não tinha olhos azuis, não era um modelo de beleza. Não teria “cintura de fada”, como registrara um poeta popular que a conheceu, nem olhos “meigos”. Deve ter sido morena clara, cabelos pretos e, no dizer de Antônio Lopes Serrão, que a conheceu pessoalmente, “só era bastante feia”. Além disso, era ligeiramente gordinha e estrábica.
Como se vê, só divergências. O que se sabe — e isso parece ser verdade, pois é opinião partilhada por todos que a conheceram — é que era muito inteligente e talentosa, uma mulher arrojada e sedutora. Tão charmosa, aliás, que parece ter conseguido que muitos não vissem suas deficiências estéticas, enxergando nela, ao contrário, algo próximo de uma deusa grega.
Em resumo, Júlia foi para São Francisco ainda criança, em torno dos seis anos. Estudou e se formou intelectualmente em São Francisco. Mas manteve uma ligação muito forte com Paranaguá, cidade para a qual jamais retornou. Em seus poemas transparece a saudade da cidade natal, nem sempre referida diretamente. Mas devemos nos lembrar de que este culto nostálgico do passado, do idílico lugar da infância, faz parte da concepção do Romantismo, escola literária que a influenciou.
Por outro lado, não foi forçada a casar com o Comendador, embora as pressões sociais e familiares para tanto tenham sido fortíssimas. Ocorre que, aos 26 anos, ela fizera de tudo para atrair seu amado Carvoliva ao casamento. Mas ele não aceitou — afastou-se de Júlia e se casaria, em 1881, com Isabel Dias Belo. Em função da idade, das pressões de sua mãe, da fuga de Carvoliva e de suas próprias fraquezas, ela aceitou o casamento.
Quem era o Comendador?
O Comendador, por sua vez, não parece ter sido um tirano de opereta. Era um sólido português, que chegou ao Brasil sem tostão no bolso e que, depois de vários anos no Rio de Janeiro, enfrentando todo tipo de trabalho árduo, conseguiu juntar alguns trocados. Veio para São Francisco em busca de fortuna, onde se casou com uma viúva com algumas posses e alguns anos mais do que ele. Ela morreria poucos anos depois do casamento, deixando ao Comendador as bases a partir das quais se tornou um homem muito rico, dono de fazendas, de uma companhia de navegação, ativo na importação e exportação de mercadorias. Além do mais, tornou-se um político respeitado e influente. Foi por muitos anos o presidente local do Partido Monarquista, sendo um verdadeiro devoto de D. Pedro II, e conviveu com políticos importantes da época, que o ouviam a respeito de questões relacionadas àquela região de Santa Catarina.Não era um homem culto, mas era, como Homero diz de Ulisses, “astuto”. Grande comerciante, empreendedor, líder político, monarquista convicto. De qualquer forma, não parece ser o homem talhado para o papel de algoz de uma jovem indefesa.
Frequentava bordéis e teve amantes — o que um homem do século XIX de sua posição não dispensava —, mas é descabido aceitar que tenha abrigado uma delas no andar térreo de sua casa. Ademais, o andar térreo das casas era reservado na época para o depósito de mercadorias.
O que sabemos — e não sabemos — a respeito de Júlia
Sabemos que Júlia — as cartas recuperadas por Rosy Pinheiro Lima mostram isso — cultivou, antes e depois de casada, um amor romântico e delirante por Benjamim Carvalho d'Oliveira. Era um remediado professor de escola pública, ex-seminarista, músico, tocador de violão — instrumento maldito na época — compositor, homem de talento — autor de um hino da Revolução Federalista — que lá pelas tantas trocou seu nome para Carvoliva, junção que fez de Carvalho d'Oliveira. Teve educação de bom nível em seminário e era filho de padre, o que na época soava sacrílego e atraía maus presságios.Foi a grande paixão de Júlia — e podemos imaginar o que isso significou numa pequena cidade do século XIX, São Francisco. Mas é preciso lembrar que Júlia nada mais fez — a exemplo da “saudade” que sentia de Paranaguá — do que dar corpo, neste caso, a outro sonho do movimento literário romântico: o culto ao amor impossível entre criaturas idealizadas, ela e Carvoliva, quase anjos, mas anjos desejosos de carne. Há na poesia de Júlia uma sede não satisfeita de união amorosa e prazer sexual. Há um desejo frenético do outro. Há uma incompletude jamais satisfeita.
É evidente que tudo isso, esses personagens e estes episódios, essa série de versões divergentes, de contradições, de boatos, de fofocas, que tanto poderiam irritar ou dificultar o trabalho de um historiador, são, para um romancista, um prato cheio. São informações com esse caráter incerto e movediço que servem de matéria a obras de ficção. Foi nessa matéria mutável e informe que me inspirei para escrever o romance Júlia (2ª. edição, Belo Horizonte, Ed. Leitura). É claro que, ao lado de um elogio envaidecedor de Wilson Martins, recebi dessas criaturas de orelhas de abano que habitam centros, clubes, academias, universidades, críticas por não ter sido “fiel” à biografia de Júlia, a qual, é claro, nem eles conhecem; apegam-se aos mitos. De resto, tais criaturas não perceberam que escrevi um romance, uma obra de ficção, não uma biografia.
Uma história de amor
Há na vida de Júlia um fio condutor: uma história de amor ao gosto romântico. Ela construiu e viveu seu próprio mito. Sendo uma história de amor impossível, é a história de uma mulher e pelo menos dois homens, o Comendador e Carvoliva, sua grande paixão.Mas, sendo Júlia a personagem que era, sua história tem o poder de retratar um período da História do Brasil. Permite vermos, com a ascensão e queda do Comendador Francisco e de Júlia, não só a ascensão e queda do predomínio da ilha de São Francisco na economia da Província de Santa Catarina, como também a história da ascensão e queda da monarquia. O Comendador é uma espécie de D. Pedro II municipal, oponente de um Carvoliva republicano. As disputas em que estão envolvidos revelam, em microcosmo, o Brasil do momento.
A vida de Júlia é ao mesmo tempo um retrato de sua época e estabelece marcos divisores desta época. Ademais, anunciam uma nova era. Temos aí o fim do amor romântico, o fim da monarquia, o fim da escravidão. Há um mundo que se esgota. Chega ao fim um tipo de mulher e de homem, ocorre a falência de um tipo de casamento, a ruptura com um modo de fazer política e de governar. Chega ao fim a hegemonia do porto de São Francisco. Chega ao fim o reinado de D. Pedro II, por quem Júlia e o Comendador tinham admiração imensa. E começa a república com seus acertos e desacertos, retratados nas idas e vindas de Carvoliva, o ativista republicano.
E Júlia, nesse turbilhão, anuncia uma nova mulher que só será possível no século seguinte. Foi uma mulher de espírito livre e indomável, que, no entanto, terminou vítima do grande sonho de um amor romântico e das armadilhas de sua época. Sonhava de forma precursora com a igualdade entre homens e mulheres, mas sucumbiu ao peso — e ao apelo, penso eu — de um casamento tradicional.
Sem realizar seus sonhos e vítima de seu pioneirismo, sua vida só poderia terminar em desgraça. Essa tragédia pessoal — que retrata a tragédia da mulher em geral no século XIX — é ao mesmo tempo a derrota e a grandeza da vida de Júlia.
Em resumo, o fim de um romance, como o fim de um amor, é o fim do mundo, como todos nós estamos cansados de saber.
Roberto Gomes é escritor, dono da Criar Edições e colunista do jornal Gazeta do Povo. Publicou, entre outros, Crítica da Razão Tupiniquim, O Conhecimento de Anatol Kraft, O Menino que Descobriu o Sol (vencedor do Prêmio Jabuti) e Júlia (romance inspirado na trajetória da poeta Júlia da Costa).
Serviço:
A Revista Helena é uma publicação da Secretaria de Estado da Cultura do Paraná. Com tiragem de 5 mil exemplares, é distribuída gratuitamente na Biblioteca Pública do Paraná. Leia a edição completa aqui.