“Quem não gosta de crônica, bom sujeito não é” 26/04/2013 - 17:21

O escritor Roberto Gomes participa do segundo encontro do projeto “Um Escritor na Biblioteca” em 2013, no dia 8 de maio, a partir das 19h. No encontro, ele vai falar sobre as primeiras bibliotecas que frequentou, entre outros assuntos relacionados à leitura. Em entrevista à BPP, Gomes antecipou alguns assuntos que podem vir à tona durante o bate-papo. Contou, por exemplo, que o primeiro livro que o marcou foi o romance As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain. “O livro continha algum vírus”. Gomes estreou no mercado de livros em 1974 com uma obra de filosofia, Crítica da razão tupiniquim, mas se considera um ficcionista, o que — de fato — é.

Seu mais recente romance, O conhecimento de Anatol Kraft (2011), chama a atenção pela linguagem elaborada e pela prosa que apresenta raro senso de humor, elemento com o qual contrapõe a desilusão de um personagem no final da existência diante da energia de um jovem que ainda tem um longo caminho a percorrer. “Tudo que escrevo tem esse traço de humor. É espontâneo ao escrever. Quando falo, sou um sujeito aborrecido como todo mundo.” Ele admite que se formou leitor e escritor lendo revistas e jornais e, há alguns anos, também tem as suas crônicas veiculadas, a cada 15 dias, nas páginas da Gazeta do Povo. O prosador catarinense radicado, há muito em Curitiba, fala com profundidade e entusiasmo sobre o gênero, e afirma: “Quem não gosta de crônica, bom sujeito não é”. Gomes também é autor dos romances Os dias do demônio (2001) e Júlia (2008), e está à frente da Criar Edições, selo que viabilizou obras de Paulo Leminski, Jamil Snege, Alice Ruiz, entre outros.

Como você se tornou leitor?
Difícil precisar. Tudo começou, imagino, com a leitura de revistas e de jornais. Minha mãe era costureira e comprava uma revista com modelos e moldes, sendo que nas páginas centrais era sempre publicado um conto ilustrado. Não lembro dos autores, mas sei que eu lia fascinado e copiava as ilustrações. Mas livro mesmo, o primeiro foi As aventuras de Tom Sawyer, do Mark Twain — um romance fantástico, que meu irmão me deu no meu aniversário, em 1957. Larguei tudo — futebol de rua, amigos, cinema — e passei três dias lendo sem parar. O livro continha algum vírus. Depois, conheci a ficção de Erico Verissimo (Olhai os lírios do campo), Aldous Huxley (Contraponto), novelas de Tolstói (A morte de Ivan Ilich, entre elas) até chegar, aos 16 anos, em Fernando Sabino (O encontro marcado). Li outros livros pelo caminho, mas esses que cito foram devastadores. Mais adiante, O apanhador no campo de centeio, do Salinger. Depois, Hemingway. E por aí foi. Li uma biblioteca até os vinte anos. Sem esquecer romances policiais comprados a um cruzeiro, formato mini-bolso, papel jornal, nas bancas da esquina. Na revista O Cruzeiro eu lia, deliciado, o Millôr Fernandes. E as colunas do Assis Chateaubriand, o Chatô, um craque da polêmica, da difamação e no uso das palavras.

O que veio antes: o filósofo ou o escritor?
Bom, li Marx — veja só! — aos quinze anos, um resumo de O capital. Entendi nada. Depois li Bertrand Russell. E livros de história da filosofia. Mas eu queria mesmo escrever ficção. Como era leitor da revista Manchete e dos jornais Última Hora e Correio da Manhã, minha formação principal foi feita por cronistas: Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Henrique Pongetti, e o imenso Rubem Braga. Na Última Hora, Nelson Rodrigues, Vinicius de Morais, Antônio Maria e o Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto). Comecei então escrevendo crônicas, tentativas de romances e de contos. Publiquei crônicas a partir de 1961, acho. Filosofia veio depois, com a faculdade, depois que passei a lecionar.

Seu romance mais recente, O conhecimento de Anatol Kraft, trata de várias questões, o envelhecimento, o conhecimento do mundo, a angústia do jovem diante da vida etc. Mas, entre outras características, há o humor na linguagem, o que torna tudo mais leve. Você se considera um autor com senso de humor? E mais: há mais autores que desenvolvem o humor na ficção brasileira contemporânea? Pode citar exemplos?
A literatura brasileira com alguma frequência desvaloriza o humor. É um absurdo, mas é assim. Por exemplo: conto tem que ser sinistro, triste, cheio de conflitos e sofrimento. Se tem humor, é chamado de crônica. Ora, ora — ou: pois, pois, como diria um tipo que conhecemos — ocorre que o humor não é um gênero, é uma forma de ver e pensar o mundo — uma tentativa de sofrer menos, talvez. Veja só que lista de notáveis humoristas: Cervantes, Gogol, Kafka, Dalton Trevisan, Machado de Assis, José Cândido de Carvalho, Lima Barreto. E por aí vai. Tudo que escrevo tem esse traço de humor. É espontâneo ao escrever. Quando falo, sou um sujeito aborrecido como todo mundo. Já o Anatol é um personagem que me permitiu expor uma ideia de pensador selvagem, de um homem lutando contra o envelhecimento, a morte, a burrice generalizada que anda por aí, a hipocrisia etc. É um demolidor, que pensa como quem luta box, tendo, ao mesmo tempo, uma alma de passarinho.

Você é cronista, publicando uma crônica a cada 15 dias, aos domingos, no Caderno G, na Gazeta do Povo. O que é ser cronista? Tudo cabe na crônica? E mais: tem algo que não entra na crônica?
A crônica é uma espécie de recreio. Vale tudo. A gente pega um nadinha — um sujeito que passa —e escreve duas páginas sobre o nadinha. (“A borboleta amarela”, do Rubem Braga, é o melhor exemplo disso). Ou inventa uma história com o tal sujeito (e aqui a crônica se transforma em contos breves, bem humorados, refinados). Ou escreve duas páginas e meia para dizer que não há nada a falar do tal sujeito. Quantas crônicas já foram escritas para registrar que, naquele dia, o cronista não tinha nada a escrever?

A crônica está entre o jornalismo e a literatura, equilibrando-se por ali. Por isso também permite esse vale tudo. Uma notícia, um fato, uma frase, uma mania nacional etc. podem virar crônica. A leitura de um livro. O encontro de um novo amor. A perda de um amor. Um passeio. Um pardal num fio de luz. Enfim, tudo.
Só não pode chatear o leitor. O cronista tem um pé na literatura e outro no jornalismo, por isso tem um olho no texto e outro no leitor. Talvez, de todos os gêneros, seja o mais gentil, generoso, acessível, amigo.

E é preciso lembrar que a crônica — tal como praticamos no Brasil — já nos deu páginas sensacionais e escritores notáveis. Desde José de Alencar, Machado de Assis, João do Rio, até Sabino, Paulo Mendes Campos, Vinícius, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Antônio Maria e o insuperável Rubem Braga, encontramos uma biblioteca feita de textos deliciosos, de escritos refinados, de pensamentos estimulantes, registros de toda uma cultura brasileira feita de cotidiano e poesia.

Ou seja, quem não gosta de crônica, bom sujeito não é.

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