Leia o texto vencedor do Concurso de Contos da Festa Literária de Cambará 08/11/2021 - 16:49
Tesouro Melodioso *
Olívia Fonseca Maraston
A pandemia tem sido difícil para todo mundo, principalmente para o Seu Teodoro, que há quatro meses recebeu a derradeira notícia de que sua encantadora Terezinha, assim que gostava de chamar sua esposa, falecera devido a complicações do Covid-19. Seu Teodoro estava pensando nela enquanto tirava suas coisas da caixa para colocar em seu novo apartamento. Sua filha achou que seria melhor para ele se mudar para perto dela e do marido, após a morte da esposa. Ela havia oferecido para que ele ficasse em sua casa, mas Seu Teodoro, por não querer atrapalhar a vida do casal, recusou. Mas concordou de bom grado morar no prédio ao lado.
Seu Teodoro ficou uns bons quinze minutos olhando para o piano que o caminhão de mudança acabara de trazer para o apartamento. Ele não tocava uma nota desde que sua esposa falecera. Não fazia sentido tocar sem ela aqui para escutá-lo, dizia ele. Sua esposa também era uma excelente pianista, dava aulas de piano e nas horas vagas fazia trabalho voluntário no orfanato da cidade trazendo alegria por meio da música. Ela tinha um coração enorme. Seu Teodoro sentia muito a sua falta. Enquanto olhava para o piano imaginou sua esposa sentada tocando a música preferida dela. Mas chacoalhou a cabeça afastando o pensamento, pois seus olhos já estavam cheios d’água e se concentrou em desempacotar seus pertences, arrumando cada objeto em seu devido lugar.
Depois de algumas horas nesse processo de arrumação, ele finalmente sentou no sofá para descansar um pouco. Já não tinha mais a disposição de antes, agora com os 78 anos batendo na porta. Ele jogou a cabeça um pouco para trás para relaxar e fechou os olhos. Seu Teodoro não sabe bem quanto tempo ficou assim, se passaram alguns minutos ou algumas horas, mas despertou com um som familiar. As notas que sabia de cor e salteado chegaram ao seu ouvido uma por uma. Alguém estava tocando a música preferida de sua esposa. Ou será que estava sonhando? Em um pulo Seu Teodoro ficou de pé e percebeu que não era um sonho.
Alguém estava tocando a Sinfonia da Cantata no piano e parecia vir do andar de cima. Seu Teodoro sentou-se novamente e ficou escutando atentamente cada dedilhado. Estava maravilhado em ouvir a música preferida de sua encantadora Terezinha depois de tanto tempo. Porém, antes de a música chegar ao final a pessoa parou de tocar. Ele ficou esperando a pessoa terminar, mas isso não aconteceu. O som parou de vez. Seu Teodoro pensou que talvez surgiu algo que a fez parar.
Então, olhou para o relógio e percebeu que dormiu um pouco além da conta e que estava na hora de tomar café na casa de sua filha como haviam combinado. Ele pegou a máscara na mesa, seu recipiente de álcool em gel e saiu.
Nos dias seguintes Seu Teodoro escutou novamente a melodia que tão bem conhecia, vinda do andar de cima. Mas percebeu que a pessoa não tocou o final uma vez sequer. A pessoa tocava várias vezes a música, mas nunca o final dela. Ele ficou ponderando o porquê enquanto sentava para apreciar o som que seu ouvido já tão bem conhecia. Cada nota da música remetia à lembrança de sua encantadora esposa. Ah! Como sentia falta dela.
Sentado no sofá escutando a música ficava se perguntando: Quem seria a pessoa misteriosa? Por que ela nunca tocava o final da música? Será que ele algum dia descobriria? Esses mistérios pairavam sobre sua mente.
Um dia após ouvir a rotineira música do pianista misterioso, ele se sentiu inspirado e sentou-se ao seu piano. Pela primeira vez desde o falecimento de sua esposa, ele abriu o instrumento e tocou. Começou com a música preferida dela e foi até os clássicos que gostava tanto de tocar. O tempo passou depressa. Seu Teodoro estava radiante ao terminar, a música era sua forma de se expressar e como estava precisando fazer isso.
Alguns dias depois, ao voltar do mercado, quando estava prestes a entrar em seu apartamento, Seu Teodoro ouviu o piano. Guiado por uma coragem súbita, ele deixou as compras no chão e entrou no elevador para ir ao andar de cima. Ao chegar lá, deixou se levar pela música e identificou a porta de onde ela estava vindo. Seu Teodoro deu duas batidinhas com o punho e a música parou.
Uma mulher simpática abriu a porta:
— Olá, tudo bem? Posso ajudar?
— Boa tarde! Eu me chamo Teodoro, moro aqui no andar de baixo. Desculpe incomodar… mas deixe-me perguntar, era aqui que estavam tocando piano? — perguntou Seu Teodoro.
— Era sim – respondeu a mulher — Perdão, a música estava atrapalhando o senhor? Podemos parar se estiver incomodando.
— Não, não. De forma alguma – respondeu ele de prontidão — Essa era a música preferida de minha esposa antes de falecer, está sendo um prazer ouvi-la e relembrar dela. Era a senhora quem estava tocando?
— Não — ela sorriu e abriu totalmente a porta. Seu Teodoro viu uma criança de aproximadamente uns 10 anos sentada ao piano. — Era meu filho, ele se chama Rafael.
— Você toca muito bem, menino Rafael — disse Seu Teodoro se dirigindo ao menino. Ele estava surpreso com a revelação inesperada do pianista misterioso — Venho escutando seu filho tocar faz dias e toda vez fico encantado pensando em minha amada esposa. Mas tem algo que despertou minha curiosidade. Se me permitir, poderia perguntar o porquê de não tocar o final da música? – indagou se voltando para a mãe da criança.
— O Rafa aprendeu a tocar piano enquanto ainda morava no orfanato da cidade. Uma senhora muito simpática estava ensinando a ele essa música. Quando meu marido e eu o adotamos, nós levávamos ele toda semana ao orfanato para que ele pudesse tocar com ela. Porém, antes de conseguir ensinar o final da música a ele, ela infelizmente veio a falecer. O Rafa ficou arrasado, até hoje sente a falta dela. Então, é por isso que ele não toca o final, pois nunca chegou a aprender.
Seu Teodoro ficou paralisado. Não conseguia acreditar no que acabara de ouvir. Um turbilhão de emoções corria por seu corpo. Sua esposa fazia trabalho voluntário no orfanato ensinando música… seria ela, sua encantadora Terezinha, a senhora a quem a mulher se referia? Para ter certeza disse:
— Terezinha…?
— Exato — confirmou a mulher desconcertada — este era o nome dela. Como sabia?
Se recompondo do que acabara de ouvir, Seu Teodoro disse que a senhora era sua esposa.
Os dois ficaram se olhando por um tempo, ambos surpresos e incrédulos com a tamanha coincidência
— O senhor gostaria de entrar um pouco? — perguntou a mulher finalmente.
Seu Teodoro concordou com a cabeça e entrou. A partir desse momento, os três, a mãe, o menino e ele, conversaram, choraram e passaram a se conhecer melhor. Seu Teodoro se ofereceu a ensinar ao Rafael o restante da música e então se sentaram juntos ao piano. Ambos tomados por lembranças boas de Dona Terezinha. Desse dia em diante, com todo apoio e incentivo da mãe, pois percebeu como a amizade faria bem aos dois, Seu Teodoro passou a ir toda a semana ao apartamento do Rafa para ensinar piano a ele e tocarem juntos. De vez em quando era o menino quem ia ao apartamento de Seu Teodoro para passar horas ao piano e admirar os porta-retratos de Terezinha com um olhar de saudade e carinho.
Passados alguns meses, momento em que a segunda dose da vacina havia chegado para toda a população acima de 18 anos, Seu Teodoro, em uma tarde tranquila, passando um café em sua cozinha, escutou umas batidas na porta. Ao abrir viu que era Rafael. O menino o cumprimentou e entregou um papel a ele. Disse que gostaria muito que fosse, depois falou um tchau tímido e disparou ao elevador onde a mãe o estava esperando com um sorriso no rosto.
Seu Teodoro deu risada com a cena e leu o papel. Viu que era um convite para o recital de piano do menino que acontecerá no orfanato. Seus olhos se encheram de lágrimas ao notar que será em memória de sua encantadora Terezinha. Ele pegou o papel e trouxe para perto de seu peito, comovido, como se fosse um dos tesouros mais preciosos que já teve na vida.
* O texto acima foi o primeiro colocado na categoria adulto do “Concurso de Contos – Tesouros e Mistérios” da 2ª Felic (Festa Literária de Cambará), organizada pelo Departamento de Cultura do município.