Helena #4: Do Sumaré aos 92 degraus 21/02/2014 - 09:40

Envolvido com a música paranaense desde a adolescência, o jornalista e músico Ivan Santos relembra seus primeiros passos no cenário underground

“O que mais pode um garoto pobre fazer além de cantar numa banda de rock and roll?”
(Street fight man — Mick Jagger / Keith Richards)

Paranavaí, Noroeste do Paraná, início dos anos 80. Para um adolescente de classe média baixa, tocar em uma banda de rock era uma possibilidade distante e irreal. Estamos em um mundo em que computadores pessoais e internet são apenas um sonho futurista dos livros de ficção científica. A importação de instrumentos musicais é proibida e o acesso a informações (que não aquelas passadas pela família, a escola e a igreja) se restringe às rádios e a três ou quatro canais de TV, assistidos em um vetusto aparelho Telefunken valvulado.

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Estamos falando de uma infância vivida nas ruas de terra do bairro do Sumaré, a 5 quilômetros do centro dessa cidade fundada a partir de conflitos agrários, rodeada por cafezais e povoada por uma gente simples, sem grandes ambições que não a sobrevivência. Música era algo que tocava por aí, para o qual nós quase não dávamos atenção, mais preocupados que estavámos com as partidas de bafo, as frutas no pé e o futebol descalço no campo várzea.

Até meados dos anos 80, os poucos discos em casa eram vinis de Ray Conniff, Martinho da Vila, Roberto Carlos e o forrozeiro Coronel Ludugero, que em dias de festa rodavam na radiola — um pesado móvel de madeira com rádio ondas curtas e toca-discos. O primeiro envolvimento mais direto com música veio de cantar na igreja. Mas foi só a partir da pré-adolescência, quando os primeiros sinais do que viria a ser o rock brasileiro daquela década se tornavam inevitáveis, que a música passou a ocupar um lugar central.

Blitz fechando o Chacrinha no sábado com “Você não soube me amar” e Paula Toller de cabelo curto e castanho, com cara de menina moleque, cantando “Fazer amor de madrugada”. Mas era algo distante, carioca demais para um adolescente que vivia a 500 quilômetros da praia mais próxima, em um mundo ainda praticamente rural, que só viria a conhecer “a capital” e o mar aos 16 anos.

Como os discos de vinil eram muito caros, pagávamos para as lojinhas da cidade gravar “seleções” de músicas em fitas cassete, em que cabiam tanto Michael Jackson quanto Van Halen. A transmissão do Rock in Rio pela TV Globo. Em 1985, foi a primeira oportunidade de ver grandes lendas do rock mundial ao vivo, mesmo que a distância. Logo depois, veio a revista Bizz, que rapidamente virou uma referência. A gente colecionava tentando imaginar o som daquelas bandas com visuais e nomes estranhos (Jesus and Mary Chain, Velvet Underground, Bauhaus) que só ouviria anos mais tarde.

Mais ou menos na mesma época, havia o Gralha Azul, grupo pioneiro de música regionalista do interior do Paraná, surgido do movimento estudantil do final dos anos 60 e que já nos 80 lançara três discos independentes. Lembro deles em uma manhã de domingo fechando o programa Som Brasil, ainda apresentado pelo Rolando Boldrin na TV Globo, e de um show no cine Ouro Verde lotado, com todo mundo cantando junto. Nem imaginava que seria a primeira banda autoral independente paranaense que conheceria.

O primeiros discos foram comprados nas lojas Hermes Macedo, uma espécie de loja de departamentos paranaense, já falida. Uma das primeiras levas incluía Pink Floyd (The Dark Side of the Moon), U2 (Boy), Dire Straits (Money for Nothing), uma coletânea de rock inglês (com Frankie Goes To Holywood, Japan), um Milton Nascimento ao vivo. O primeiro disco de rock brasileiro veio em 1987: Que País é Este?, da Legião Urbana. E o primeiro show de rock ao vivo eu vi no mesmo ano, em um festival em Laguna (SC), com o Camisa de Vênus. Naquele tempo, cheguei a tentar aprender a tocar violão, mas as primeiras tentativas desanimadoras em um instrumento emprestado só me levaram a concluir que aquilo estava além das minhas capacidades.

Flor de Cactus


Um salto aconteceu em meados de 1998, quando troquei Paranavaí por Ponta Grossa, nos Campos Gerais, para cursar Jornalismo na UEPG. Depois dos primeiros seis meses vivendo em uma pensão na Rua do Rosário, zona de prostituição local, mudei-me para uma república em um conjunto residencial. Ali, o acesso às discotecas desses e de outros colegas de faculdade me deu a chance de conhecer um mundo que até então eu só imaginava de longe, pelas páginas da Bizz. Um mundo onde existiam Mutantes, Coltrane, John Lee Hooker, Joy Division e muito mais.

Mais ou menos na virada dos 80 para os 90, em um final de semana de feriado, finalmente consegui tocar (ou achar que estava tocando) uma versão tosca de “Que País é Este:” no violão Giannini do colega de república e curso Fábio Riesemberg. A amizade com um calouro de Arapoti, Eglerson Cordeiro, já guitarrista de uma banda, levou a um convite para que eu assumisse o vocal do que viria ser a minha primeira banda, a Flor de Cactus.

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Na época, morava na garagem de uma república de garotas, e foi lá que a banda ensaiou, durante três ou quatro meses, covers de Barão Vermelho, Engenheiros do Hawaii, Inocentes, Rolling Stones e as primeiras tentativas de composições próprias. Tudo isso pra uma única apresentação ao vivo, em um festival num ginásio.

A implosão veio logo depois, quando um vizinho taxista nos ameaçou com um revólver por conta do barulho dos ensaios. Ainda tocaria com outro grupo, o Woodstock, que passou de jams caseiras para barzinhos — entre eles o Sanduíche e CIA, instalado em uma pequena garagem e cuja temporada musical terminou quando a polícia invadiu e fechou, levando parte dos equipamentos.

Na virada dos 80 para os 90, um momento definidor: um show do Beijo AA Força no Centro Cultural de Ponta Grossa foi o primeiro de uma banda de rock paranaense com repertório autoral que presenciei ao vivo. Algo como os Sex Pistols em Manchester. A centelha definidora que faltava pra me convencer de que era aquilo que eu queria fazer, mesmo que não soubesse como.

Nosso CBGB


No primeiro semestre de 1992, eu, Fábio Riesemberg, e outros dois colegas de faculdade (Adriane Perin, minha namorada, e Emildo Coutinho) começamos a produzir nosso TCC — um programa de TV sobre música paranaense intitulado Paraná Café. Passamos a viajar semanalmente para Curitiba, onde conseguimos uma parceria com a TV Educativa. Meu ex-parceiro da “Flor de Cactus”, Eglerson, indicou um amigo, Ulisses Galeto, que tocava em dois grupos: o Ímpar Perfeito e o Acordança, este último escolhido para ser um dos entrevistados do programa, junto com o Gralha Azul, Nhá Gabriela, o violeiro Alecir de Antonina e a cantora Rosi Greca.

relespública
Outro amigo, Felipe, questionou se a gente conhecia o 92 Graus (92º). E num final de tarde de domingo do mesmo ano, entramos no número 294 da Visconde do Rio Branco, uma portinha sem placa ou qualquer identificação que dava pra uma escada que descia para um porão escuro. Naquele dia, se apresentavam CMU Down e July Et Joe, grupo do dono do bar, JR Ferreira, e que também tinha em sua formação o baterista Luciano Vassão, o guitarrista Marcos Gusso Coelio e o baixista Rubens K. A atmosfera enfumaçada, a música tocada em volume ensurdecedor e de maneira furiosa hipnotizavam. Agora a gente não precisava mais apenas admirar e sonhar com os porões ingleses ou novaiorquinos. Tínhamos o nosso próprio CBGB [lendário clube underground de rock de Nova York].

Passamos a frequentar o 92º quase que semanalmente, bem como o Poeta Maldito, bar do videomaker Marcelo Borges. Borges também montou o The Hole, localizado Rua São Francisco, que durou poucos meses e cujo fechamento inspirou uma canção do July et Joe. Rapidamente, fizemos amizade com o pessoal das bandas. Entre elas a Relespública, que vimos a primeira vez no TUC (Teatro Universitário de Curitiba), quando o guitarrista Fábio Elias estreou uma guitarra Ibanez esfregando o instrumento na parede do lugar.

Fábio e o vocalista da Reles, Daniel Fagundes, começaram a frequentar o apartamento 1.001 do Edifício Asa, onde eu e Adriane fomos morar depois de nos mudarmos pra Curitiba, em meados de 1992. Daniel, que devia ter seus 14/15 anos na época, sempre aparecia por lá acompanhado de Igor Ribeiro, então com 13. Para surpresa geral, aqueles dois piás pegavam nosso velho violão surrado e tocavam Velvet Undergound, Teenage Fanclub e Syd Barret com uma autoridade inacreditável.

Tragédia e rock and roll


Em maio de 1994, um acidente de trânsito levou Daniel num episódio traumático. Algum tempo depois, fui convidado para assumir os vocais da Relespública. A estreia foi na abertura do show do grupo norte-americano Fugazi, no 92º. Meu tempo na banda foi de apenas cinco meses, o suficiente pra passarmos por palcos como o festival Juntatribo II (em Campinas), a Boca Maldita e o Aeroanta. A diferença de idade, formação, minha insegurança e o fato de só o próprio Fábio, (compositor da maior parte do repertório do grupo) poderia assumir os vocais explicavam o motivo de a minha passagem pela Relespública não ter durado. Mesmo assim, foi uma experiência que me marcaria para sempre, um intenso curso prático aplicado de rock and roll.

Em 1995, já instalado em um apartamento no edifício Tijucas, comecei uma série de jams com o Igor Ribeiro e o Rubens K, ex-baixista do July et Joe, Rubens K. Dessas sessões, apelidadas de “Lisergic Brainstorms”, surgiram minhas primeiras composições e outro projeto de breve existência, o Dusty. A banda fez duas apresentações ao vivo: uma no TUC, em maio de1997 (abrindo para a Escória Clássica), e outra no Bar do Meio, um legítimo muquifo frequentado por punks e desavisados na Clotário Portugal.

Outro local que frequentávamos era a república da “Família Peixe-Cachorro”, no Água Verde, onde uma trupe de artistas vivia e promovia festas e shows no quintal. Durante uma dessas reuniões, convidamos Hamilton de Lócco, ex-vocalista das bandas Acrilírico e Folha Seca, para assumir a bateria. E dessa formação, já sem Rubens, e mais tarde completada por Eduardo Hutten (violino) e Rodrigo Montanari (baixo), surgiria o OAEOZ, banda com a qual eu me envolveria por 11 anos, gravaria vários discos e tocaria em muitos palcos do underground. O grupo também foi o ponto de partida para que eu e a Adriane criássemos o festival Rock De Inverno e o selo independente De Inverno, na ativa até hoje. Mas aí já é outra história.


Ivan Santos é jornalista, músico, produtor do festival Rock de Inverno e criador do selo De Inverno Records. Atualmente toca na banda Imof.

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