Romance | Prêmio Biblioteca Digital 29/01/2021 - 12:58

Leia o primeiro capítulo do romance Tapiribi — Margens Penadas, de Rodrigo de Jesus, segundo colocado no concurso promovido pela BPP e disponível gratuitamente em e-book

tapiribi
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1.

João Bracatinga veio com a enxada nas costas pra cavoucar a terra no momento em que os dedos de Maria dos Ipês iniciavam cavoucada na alma. A manhã se cobria de névoa, o sol do inverno bebendo as águas do Rio Paraná. O ar frio dava calafrios que podiam ser também obra de fantasmas, que nessas terras são comuns. João Bracatinga tinha saltado da cama onde firmara o amor com Maria dos Ipês alegre por semear os campos da esposa. Talvez saltasse dela o piá, tão sonhado. Pôs a água pra esquentar, cevou a cuia com erva e bebeu o chimarrão olhando a névoa ainda escura, os grilos se calando, os sapos também. Maria dos Ipês ficou na cama. Deitada, bem quieta, o corpo lembrando o preenchimento gostoso do homem. Ouvia atenta ele lá na cozinha, sugando o mate. Foi só quando os roncos da bomba calaram e os passos se afastaram que Maria dos Ipês buscou com os dedos o entremata das pernas. O prazer do homem até podia ser assunto dos dois, mas o gozo dela se tratava com os dedos. Lá fora, sondado por árvores desfolhadas surgindo entre a neblina, João Bracatinga surrou a terra vermelha. Não era muita terra a que eles tinham ali, mais um quintal grande que fazenda. Fazenda por ali só a do coronel Mancoso Machado, dono de horizontes. Naquele quintal, com pedaços já férteis de hortas, João Bracatinga ia plantar batatas. Não tinha contado pra esposa, queria fazer surpresa. Ia usar a parte mais afastada da casa, ainda virgem de plantas que não fossem capins amarelos.

Era homem do campo, o João Bracatinga. Nasceu em alguma região da campanha gaúcha, perdido nos pampas tão retos, tão verdes, “Que se no mar velejam os barcos, aqui montamos cavalos”, dizia sempre o pai, homem rude de jeitos e amoroso de alma. O irmão do pai, amoroso de jeitos e rude de alma, partiu muito cedo dos pampas no rumo de Porto Alegre e do oceano, “Queria ser marujo, domar os sete mares. Deve ter se afogado”, dizia, não sem rancor, o seu Maneco Bracatinga, e costumava acrescentar: “Teu avô lutou na guerra contra os paraguaios pra gente ter essa terra, filho, cuidar dela, criar nossos cavalos. Teu tio fugiu por diabo que era, foi atrás de aventuras no estrangeiro sem fronteira que é o mar. Coisa dessas não se faz”. João Bracatinga às vezes agradecia que o pai já tinha morrido tinha tempos. Se visse ele plantando batatas ali no noroeste do Paraná ia morrer era de desgosto.

Além de campeiro, herdara do pai a rudeza de jeitos e alma amorosa. A cara era de retalhos casmurros, morena, marcada pelo minuano e pelo sol da lida. Os olhos brilhavam uns verdes em baixo da monocelha grossa e negra. A barba dura cobria o rosto todo, espetando os carinhos. Os cabelos encaracolados e bem pretos ele cobria com o chapéu de aba larga, tipo prato enfiado na cabeça. Era feito de durezas, o corpo de João Bracatinga, o tamanhão do homem coberto de boas carnes. Não se encarava homem desses por tempo demais. A alma amorosa ele guardava a poucos. Antes à mãe, dona Mantinha Bracatinga, nascida já com o diminutivo. Agora à Maria dos Ipês. Era a alma amorosa que investia na coleta de passarinhos. João Bracatinga, sem dote algum pra poesia ou música, metera na cabeça que a esposa merecia composição tão bonita quanto às do Almir Sater que ele ouvia no rádio. “Você tá mais pro Sérgio Reis em tamanho, homem”, tinha dito a dona Ana Laura depois de ouvir o desejo de João Bracatinga, ela que era dona do Tombozoio, o bar do lugar, “E fazer música bonita que nem eles não é pra nós não. Aqueles lá têm alma de passarinho”. Dona Ana Laura não tava errada não, pensou. Passarinho é que canta bonito. Já saiu do bar e meteu pardal, que passou despreocupado pelo nariz dele, no bolso fundo da calça. Teve início a coleção de aves. Metia todas que achava nos bolsos da calça. Se não podia ter alma de passarinho ia ter os próprios num coral pra Maria dos Ipês. Mantinha o aviário nos bolsos em segredo.

Já temos dois segredos na história, ambos por parte de João Bracatinga: a plantação de batatas e o aviário nos bolsos. Eram segredos pequenos, frutos de desejos de surpresas agradáveis, sorrisos ternos e beijos que levariam à cama. Não eram capazes de ocasionar nenhuma tragédia. Maria dos Ipês tava acostumada com esses segredos. João Bracatinga nunca tinha mentido pra ela, “Você fala muito pouco, não ia saber mentir”, dizia aos risos. Era verdade, João Bracatinga falava pouco, era mais de escutar e montar julgamentos mudos. Gente como João Bracatinga é muito boa pra guardar segredos. Confidenciar o que for aos tagarelas é ter certeza de que a história vai se espalhar depressa, não raro com agravos postos aos gostos dos tagarelas, eles que aumentam tudo pra poder continuar falando. Maria dos Ipês tava acostumada com os segredos de João Bracatinga e as surpresas que vinham deles. Não que gostasse de todas, que isso não existe. Mas a maioria ela gostava sim. Dos dois segredos em preparação pra se fazerem surpresas e a reação de Maria dos Ipês posso dizer o seguinte: da plantação de batatas ela não vai gostar, afinal não vai nascer batata nenhuma dali, que se nascesse ela ia gostar sim, adorava sopa de batatas. Daquelas terras ia brotar outra coisa. Do coral de passarinhos ela não vai ficar sabendo por causa das não nascidas batatas, mas posso te adiantar que ela gostava muito das modas de viola.

Maria dos Ipês não gostou da plantação de batatas que nunca aconteceu pois João Bracatinga cavoucou a terra vermelha fundo demais. E revelou um terceiro segredo, bem mais profundo que os outros. E era incomum. Um segredo de Maria dos Ipês, que não era de ter mistérios. A enxada de João Bracatinga bateu em alguma coisa. Os olhos fundos e negros da caveira sorriram pra ele.

 

Rodrigo de Jesus nasceu em Ponta Grossa (PR), em 1993. Viveu em diversas cidades brasileiras antes de se fixar na capital paranaense, onde é estudante de Letras na Universidade Federal do Paraná. Tapiribi, que mescla o realismo mágico com mitos brasileiros, é seu primeiro romance publicado.

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