TRILHA SONORA | Playlist Concreta! 11/12/2025 - 10:34

Confira uma seleção musical que destaca a relação entre poesia concretista e a música popular brasileira através das décadas
 

Por Isa Honório 

 

Foi a bossa nova, a partir do final da década de 1950, que promoveu alguns dos primeiros encontros entre a poesia concreta e a música popular. O próprio Augusto de Campos apontou a influência nas canções “Desafinado" e “Samba de uma nota só", de Antônio Carlos Jobim e Newton Mendonça (1960). Posteriormente, outras aproximações entre música e literatura concretista também foram feitas, como a versão musicada do poema de Décio Pignatari "Beba Coca-Cola", que saiu em 1967 em forma de coro de vozes, por Gilberto Mendes. Mas é somente com a tropicália, e o lançamento de seu disco-manifesto em 1968, que o casamento aconteceu de fato. 

É como o que rolou na gringa entre os beatniks e o rock’ n’ roll de Bob Dylan, Patti Smith, The Velvet Underground e The Doors. Os dois movimentos de vanguarda encontraram um no outro características em comum que incentivaram o interesse mútuo, como a busca por identidade, informalidade e inovação estética. E na terra das palmeiras, onde canta o sabiá, também foi amor à primeira vista: quando os tropicalistas chegaram com suas guitarras elétricas e cabeleiras, rapidamente entraram na mira dos fundadores da Noigandres

 

playlist 1
revistarosa.com/Reprodução

 

Augusto foi o responsável por estabelecer o primeiro contato com Caetano Veloso, que não havia se aprofundado no movimento concreto até então, mas apresentava elementos análogos em suas composições que indicavam uma influência não intencional (como em "Alegria, Alegria", de 1968). Como aponta o professor de literatura brasileira Charles Perrone, em "poesia concreta e tropicalismo", o gosto pelos modernistas e pela antropofagia de Oswald de Andrade foi o suficiente para aproximar os dois. Logo começaram as referências e colaborações, e brotaram faixas inspiradas pela poesia concreta em grandes discos da época, como o autointitulado de Caetano, conhecido carinhosamente como Álbum Branco (1969) e Todos os Olhos, de Tom Zé (1973), com destaque para a faixa "Cademar". 

Assim como Allen Ginsberg, que fez sua famosa aparição no fundo do videoclipe de "Subterranean Homesick Blues", de Dylan, os encontros entre os concretos e os tropicalistas foram vários, como a vez em que Haroldo de Campos visitou Veloso durante o exílio do músico em Londres, em 1969, ou a presença de Augusto nos ensaios de João Gilberto e Gal Costa nos bastidores da TV Tupi em 1971. Inclusive, para quem se interessar por essa convergência entre as linguagens literária e musical, fica a recomendação do livro Balanço da bossa e outras bossas (1974), no qual Augusto de Campos reúne comentários sobre a música moderna e entrevistas com artistas de destaque da MPB. 

Algumas das consequências sonoras desse encontro verbivoco-musico-visual, estão reunidas nesta "Playlist Concreta!", a qual os(as) leitores(as) do Cândido estão convidados(as) a dar play enquanto aproveitam a leitura. 

 

playlist 2
Imagem: Universal Music Store / Divulgação

 

 

Aumente o som

 

Quem abre a seleção é "Bat Macumba", de Gil e Caetano, do álbum Tropicália ou Panis et Circensis (1968) e interpretada pelos compositores, Gal Costa, Gilberto Gil e Os Mutantes. Sua letra, que poderia facilmente formar um poema concreto, apresenta a repetição de palavras, o que contribui tanto com a formação visual do poema, quanto com o seu aspecto percussivo. 

Seguimos com "Acrilírico" (1969), destaque entre as composições de Veloso e marcada pelos neologismos. É o compositor, aliás, que ocupa grande parte desta lista, que também contém três faixas de seu sétimo disco, Jóia (1975): "Guá" e a dobradinha "Asa Asa" e "Lua, lua, lua, lua". O álbum, que veio logo depois de Araçá Azul (1973), é marcado pela experimentação e minimalismo, com letras que destacam a repetição. Nas décadas seguintes, Caetano continuou alimentando sua obra com poesia concreta – por exemplo, a faixa "Circuladô de Fulô", do álbum Circuladô (1991), que traz o poema homônimo de Haroldo de Campos, publicado no livro Galáxias (1984). 

batmacumba

 

Mas a influência do concretismo não se limitou ao universo da tropicália e às suas crias dos anos 1960 e 70. Arnaldo Antunes, expoente do punk e pop rock inclusive comentou sobre essa relação na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) deste ano: "Leminski era um libertário tanto na forma quanto no conteúdo. O encaixe entre a poesia concreta e a tropicália". Nos anos 1980, o multiartista levou suas influências pós-modernas aos Titãs, e fez poesia concreta com uma pitada de new wave. Um bom exemplo é a canção "O que", do terceiro disco da banda, o conceitual Cabeça Dinossauro (1986). Logo no início de sua carreira solo, Antunes reafirma seu gosto pelos concretos, como na faixa "Agora", do disco Nome (1993). A música é simples e letra é concisa – duas linhas, três palavras e seis sílabas, as quais a repetição frenética vai criando um transe linguístico/sonoro que pega o ouvinte de primeira. 

Para fechar a nossa playlist, tomei a liberdade de dar uma passadinha no planeta do audiovisual – onde som e imagem se fundem para criar uma nova linguagem. A escolha final é "Mr. Sganzerla" (1970), de Gilberto Gil – que considero muito especial porquê adici­o­na o cinema nessa feijoada verbi-voco-visual, que até então "só" tinha música e poesia. A faixa é parte do álbum Copacabana Mon Amour, que foi trilha sonora do filme de mesmo nome e ano de lançamento, de Rogério Sganzerla. No Brasil, na virada entre as décadas de 1960 e 70, a produção fílmica de vanguarda seguiu o mesmo caminho da música – e com algumas das mesmas influências. A busca por uma identidade nacional moderna e o rompimento com as tradições linguísticas, processuais e ideológicas, por exemplo, estavam todos ali. 

Quase contemporâneos, o Cinema Novo e o concretismo não são alheios um ao outro. Não à toa, em entrevista a Sganzerla em 1966, Glauber Rocha disse compreender a poesia concreta como um dos elementos fundadores do movimento cinematográfico do qual fazia parte, o que podemos conferir facilmente em um filme como Terra em Transe (1967). Também com pouco orçamento, mas com um pouco mais de cores e lou­cura, Copacabana Mon Amour pratica a simples arte-crítica do Cinema Marginal. Em "Mr. Sganzerla", assim como nos diálogos do filme, Gil repete pequenas inser­ções irônicas para criar um cenário interessante tanto pela forma quanto pelo significado, entre o "yellow green" e "descoberta do brasil" ou "delinquência juvenil". O resultado é, minimamente, peculiar – vale ouvir.

 

playlist 3
Spotify/ Reprodução

 

Clique aqui e ouça a playlist no Spotify
 

Isa Honório (São José dos Campos/SP, 2002) é formada em Jorna­lismo pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Repórter do jornal Cândido, também é escritora e compositora. Na literatura, curte dos beatniks ao jornalismo gonzo. Na música, rock' n' roll à cumbia.

GALERIA DE IMAGENS