ENSAIO CRÍTICO | Miguel Bakun: Uma porção mínima do mundo 09/12/2025 - 15:26
Por Emanuel dos Santos Monteiro
É verdade que existem várias gamas expressionistas, desde a ingênua até a onírica, pois os artistas expressionistas são os rebeldes contra as formas impostas que conservam sua independência plástica num nível tão alto que por vezes
chegam à convulsão, daí a aparente deformação estilística (Adalice Araújo)¹.
A exposição "Miguel Bakun: o Olhar de uma Coleção", com curadoria da artista Eliane Prolik, teve sua abertura em 20 de março de 2025, permanecendo em cartaz até 10 de agosto, na sala 11 do Museu Oscar Niemeyer. A mostra, composta por obras do acervo do colecionador Walter Gonçalves, em diálogo com obras do acervo do museu, reuniu aproximadamente 60 itens, entre pinturas e um conjunto inédito de desenhos².
Esta exposição soma-se ao esforço de outras vozes empenhadas em iniciativas anteriores, cujo exercício intenta fazer justiça para compreendermos a importância e legado da obra de Bakun dentre os expoentes do modernismo brasileiro. De modo geral, esses esforços questionam e expõem o lugar à margem cedido na historiografia da arte brasileira para figuras que despontam fora dos grandes polos culturais e econômicos do país.
Tais esforços parecem, a meu ver, fazer coro à crítica apontada por Prolik já em 2009, na ocasião da exposição "Miguel Bakun: a natureza do destino". No texto do catálogo, a artista e curadora diz: "se até o momento não nos apropriamos verdadeiramente de seu legado, talvez seja porque o mito criado em torno da vida do artista dificultou, de certa forma, uma análise centrada em sua pintura e no que ela traz de contribuição"².
A paisagem ocupa um espaço significativo na obra de Bakun e apresenta no interior de sua produção os melhores exemplos de suas contribuições alcançadas. Darei enfoque em um aspecto percebido: a experiência de ver e fazer as coisas de perto. A partir deste dado constatado anteriormente por outros pesquisadores, desenvolvo uma hipótese das consequências disso em relação a ideais de paisagem.
Ao eleger como matéria de preocupação porções mínimas e específicas do mundo em contraposição ou de modo paralelo ao contexto próximo (no tempo e no espaço) no qual se estabeleceu como cânone a apresentação ampla do território dado à vista, tornado ícone simbólico e ideológico (o Paranismo), Bakun recusa, de forma deliberada ou intuitiva, a intenção heroica de obras que se pretendem já históricas desde sua ideação.
O modernismo tem seus temas eleitos. Os ideais de nação e seu desejo de constituição de uma identidade geral apaziguadora não escaparam da lista de tarefas da nova República. Não será diferente no caso da província (1853), e posteriormente, o Estado do Paraná (1889). Repete-se aqui, mas a seu modo, a necessidade da criação de mitos fundadores que enalteçam identidades regionais.
É curioso que, de modo geral no território nacional, a representação da diversidade étnica e da classe trabalhadora seja um dos temas e demandas recorrentes na arte moderna, bem como a assimilação e enaltecimento da cultura popular, no Paraná a aposta eleita como emblema seja justamente pinturas do gênero da paisagem³.
Isto posto, chamaram-me a atenção na recente exposição de Bakun especialmente as obras que apresentam um campo de visão mais estreito (no sentido da largura) e encurtado (no sentido da profundidade), em que a apresentação de um grande campo disponível ao olhar, e ao desejo e demonstração de posse não frutificam. A amplitude de campos abertos ou matas fechadas percebida à distância e a profundidade atmosférica construída por planos em recessão não participam, salvo algumas exceções, com protagonismo de suas investidas.
O contato com a prática fotográfica pode ter permeado estas escolhas de recortes modernos, mas me parece que antes de tudo, o que temos diante de nós é a resultante do seu contato direto com a natureza no embate de construir uma pintura, no exercício de produzir desenhos. Aquilo visto logo adiante retrabalhado aqui, entre os braços, diante do peito. No caso dos desenhos, com seus parcos instrumentos característicos (sabemos de sua paleta de cores reduzidíssima em pintura), manifesta-se uma urgência.
O motivo das folhagens (fig. 1) é tratado como trama constituída por linhas contínuas e caligráficas que atacam oscilando entre caminhos curvilíneos e arestas incisivas (o final de um galho de árvore, a grama, mais do que as folhas). Percebe-se a dobra dos caminhos na confissão que o desenho é. Entre estas folhagens com nanquim mais evidente e a parte que corresponde ao chão, a diferenciação se dá por uma sutil variação tonal resultante de diferentes cargas de tinta no bico de pena. Ou pode derivar, como sabemos, da inclinação do instrumento em contato com a superfície. Este movimento advém da relação e resposta do fenômeno observado com o corpo inteiro, que maneia buscando encontrar o ponto de encontro entre os estímulos.
À que distância e altura se encontra o observador, ou melhor, onde estamos no contexto dessa percepção? Pois se os troncos e galhos mais evidentes à direita elevando-se verticalmente em paralelo ao formato geral do desenho parecem ser encarados frontalmente, à que distância estão as coisas para que folhagens caiam pendentes de cima para baixo, ou de fora para dentro, ou se espalhem no movimento contrário, de dentro para fora nos deslimites desta empreitada? Ensaio este caminho errático, pois a ocupação total do espaço gráfico deriva justamente destas formas dinâmicas. O chão não assenta um contexto para uma cena. Ele se espraia, ergue-se e lateraliza-se para não deixar no vazio, elevadas à condição de ícones, as árvores e fragmentos de árvores representadas.
O desenho, o desejo, o olhar vão buscar alhures seus motivos de ação? A paisagem de Bakun nos apresenta a relação de um olhar intensamente implicado com o seu motivo. Diria inteiramente, pois nos apresentam a relação de um sujeito espiritual e corporalmente implicado. Recordo-me das reflexões de Paul Valery sobre a prática do desenho a partir de Edgar Degas: "O artista avança, recua, debruça-se, franze os olhos, comporta-se com todo o corpo como um acessório do olho, torna-se por inteiro órgão de mira, de pontaria, de regulagem, de focalização"⁴.
No desenho sem título, datado de 1948 (fig. 2), percebo alguns contrapontos ao exposto sobre o desenho de 1949. Feito a grafite, por sua natureza e potencialidades materiais, constitui-se por linhas aeradas e manchas incertas obtidas por esfumaçado. Não vemos o espaço tramado, mas uma clara intenção de abertura. Da porteira aberta, madeiro esculpido metamorfoseando-se em árvores que verticalizam a dinâmica, se forma o reenquadramento da árvore esguia e solitária no fundo breve. Difícil não atribuir à forma próxima ao fora de campo, do lado de cá, o reconhecimento de um pássaro. Ainda que, comparado à gramática familiar do chão ao redor, pareça ganhar ênfase e forma descritiva somente por um acento de matéria e tonalidade. Esta forma quase não figurou pássaro, mas é o suficiente para fechar a conta e estruturar pontos cardeais.
Interessante notar como, além dos motivos recorrentes como fundos de quintal, pequenas fachadas de casas com vegetações manifestam-se de forma pungente à posição oblíqua do olhar. Conforme podemos ver em outro desenho de 1948 (fig. 3) e no último desenho apresentado neste ensaio (fig. 4).
No primeiro exemplo a frontalidade da vegetação confere planaridade à imagem e abre luminosidade no campo de visualidade, recortando em formas de caules e folhagens-facas o gramado e o casebre do seu entorno imediato. A linha diagonal que divide gramado e parede desestabiliza estes movimentos verticais compostos pela bananeira. Os desenhos das tábuas que formam a fachada e ainda a forma geral da janela, tão frontalmente elaborada, parecem ignorar a perspectiva que o chão determina.
Em nosso último exemplo (fig. 4), o olhar oblíquo acompanha um possível movimento de desvio do corpo. Do contrário, para que serviria a presença de um resto de elemento arquitetônico feito de modo tão incisivo e que podemos, sem saída, perceber no canto direito do desenho? Esta estrutura me parece agir como um ponto de partida ou indicação de fuga. Em contraponto a esta construção firme e formas assertivas como a linha do telhado especialmente, agindo como uma seta, deparamo-nos novamente com esta experiência em que a natureza apresenta a possibilidade de lidar com formas que crescem à revelia. Difícil determinar aqui a diferença entre um jardim ou um canto abandonado, pois a força das tramas vai ligando as partes e os limites dos elementos formam a estrutura dos demais.
Esses arredores de Curitiba, esses fundos de quintal, porteiras, flores e árvores possibilitam o encontro do artista com sua obra no embate com a natureza, pois ao sobressair este aspecto visceral – percebido em suas pinturas de modo amplo e de certo modo também em seus desenhos, da recusa anteriormente apontada –, colhe-se como fruto não um trabalho em paisagem que dá a ver a imagem da natureza trabalhada e apresentada, mas a natureza e seus fluxos contínuos, do qual participa o artista e seus dilemas de homem e de artista. O que vemos é fruto de uma situação de interação mútua no campo de operações e batalhas que é o espaço do trabalho.
¹ REIS, Paulo (org). Visita guiada: a crítica de Adalice Araújo / organizado por Paulo Reis. - Curitiba, PR: Medusa, 2019, p. 33.
² PROLIK, Eliane. Miguel Bakun: a natureza do destino / Eliane Prolik, organizadora; textos de Eliane Prolik, Ronaldo Brito, Artur Freitas e Nelson Luz. - Curitiba: edição do autor, 2009, p. 9.
³ Esta percepção parte da tese de Geraldo Leão Veiga de Camargo como interlocução, junto à constatação de Mario de Andrade.CAMARGO, Geraldo Leão Veiga de. "Paranismo: arte, ideologia e relações sociais no Paraná 1853 - 1953". Tese. PPGH-UFPR: Curitiba, 2007, p. 10. Disponível em: <<https://hdl.handle.net/1884/46372>> acessado em 07 de nov de 2025.
⁴ VALERY, Paul. Degas dança desenho. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 66.
Emanuel dos Santos Monteiro nasceu em Londrina (PR), em 1988. Graduado em Educação Artística (UEL) e Doutor e Mestre em Artes Visuais (PPGAV-UFRGS). É artista e professor nos cursos de Artes Visuais, Bacharelado e Licenciatura (UFPR). Desenvolve pesquisa em desenho, pintura e instalação. Seus trabalhos abordam relações de experiências e conflitos entre paisagem, território, memória e esquecimento. Artista representado pela Galeria Mamute, em Porto Alegre, Florianópolis e São Paulo.














