PENSATA | Refazenda 09/12/2025 - 16:09
Lavoura Arcaica, obra-chave de Raduan Nassar, completa 50 anos com a força atemporal da literatura
Por Marianna Camargo
Em 1975, ano em que Gilberto Gil lançava "Refazenda" (fazer novamente, refazer ou reconstruir, especialmente em um contexto de renovação e reinvenção"), o paulista Raduan Nassar publicava seu primeiro romance, Lavoura Arcaica — obra fundamental da sua produção literária e também um marco para a cultura brasileira.
As duas obras completam 50 anos e se mantêm vivas e necessárias, no vigor das coisas feitas com profundidade.
Escrita em oito meses, Lavoura Arcaica, segundo o escritor, teria nascido de "uma vida toda", como pontuou em uma das raras entrevistas.
Ganhou os principais prêmios literários do país: melhor romance, da Academia Brasileira de Letras (ABL); o Jabuti, na categoria Autor Revelação; e uma menção honrosa da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Completa meio século, mas continua tão atual e contemporâneo quando do seu lançamento. Uma obra para quem deseja conhecer profundamente as raízes do Brasil social de ontem e de hoje.
E isso já tinha sido detectado em 2006 pelo escritor José Castello, em uma resenha publicada no jornal literário Rascunho. Sob o título de "Desabafo, Repulsa e Aversão", Castello aponta que Lavoura Arcaica foi "escrito em grande desassossego, com uma impaciência — e, em consequência, uma entrega — rara na literatura brasileira contemporânea. Mas também é um desabafo. Um livro movido pela indignação, pela repulsa, pela aversão. Uma luta feroz contra a família e seus laços petrificados, e contra a religião e a imobilidade de seus dogmas. Um livro contra as ideias fixas e que, por isso, depois de três décadas, em nosso mundo cada vez mais dogmatizado, torna-se ainda mais atual", analisa Castello.
Nassar lançou depois, Um copo de Cólera (1978) e o livro de contos Menina a caminho, que escreveu em 1970 e publicou apenas em 1997. Desistiu da literatura em 1984 para se dedicar à agricultura, na fazenda Lagoa do Sino, interior de São Paulo. Em 2011 ele a doou à Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR) e ao Movimento Sem Terra (MST).
A revista norte-americana The New Yorker publicou um perfil de Raduan Nassar em 1997 com o título: "Por que o melhor escritor brasileiro deixou de escrever?". A resposta, pela tangente, veio do próprio: "Quem sabe? Eu realmente não sei".
Avesso a entrevistas e aparições públicas, Raduan deixa pistas claras do que é importante, basta ler sua obra ou ver como trabalhou com a terra. "O que eu fiz na fazenda foi inacreditável. Aquilo virou uma fazenda-modelo.", disse à jornalista Marilene Felinto e ao cineasta Luiz Fernando Carvalho — que dirigiu o filme homônimo baseado na sua obra — em entrevista publicada na revista quatro cinco um, em 2021.
Cinquenta anos após ser publicado, Lavoura Arcaica ainda ressoa em estado bruto, fazendo as palavras saírem das cascas, como neste trecho: "o tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes mais terrível, demônio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas, é ele ainda hoje e sempre quem decide e por isso a quem me curvo cheio de medo e erguido em suspense me perguntando qual o momento, o momento preciso da transposição? que instante, que instante terrível é esse que marca o salto? que massa de vento, que fundo de espaço concorrem para levar ao limite? o limite em que as coisas já desprovidas de vibração deixam de ser simplesmente vida na corrente do dia a dia para ser vida nos subterrâneos da memória".
Raduan Nassar completou 90 anos em novembro deste ano. Assim como na música "Refazenda", de Gilberto Gil, utilizada como metáfora para a paciência, a aceitação dos ciclos naturais e a harmonia com a natureza como um processo de reconstrução pessoal e coletiva, Nassar adubou, plantou, irrigou, colheu e compartilhou — e ainda compartilha — a colheita farta.
Abacateiro
Teu recolhimento é justamente
O significado
Da palavra temporão
Enquanto o tempo
Não trouxer teu abacate
Amanhecerá tomate
E anoitecerá mamão
"Refazenda" (Gilberto Gil, 1975)
Marianna Camargo é jornalista, escritora e editora do jornal Cândido. Possui especialização em Gestão Cultural Comunitária, pela Universidade da República do Uruguai (Udelar) e Gestão de Informações Públicas e Base de Dados (Agesic/Governo Federal do Uruguai).










