ENTREVISTA | A comunidade como inspiração, periferia em evidência 10/12/2025 - 11:55

Por Bianca Weiss

O autor de O sol na cabeça (2018) – leitura obrigatória do vestibular da UFPR – conta ao Cândido sobre seu percurso na literatura, de tentar não ser "exotizado" e a relação da canção "As Caravanas" de Chico Buarque e seu conto "Rolezim"


Geovani Martins nasceu em 1991, em Bangu, no Rio de Janeiro. Entre trabalhos como "homem-placa", e atendente de lanchonete e de barraca de praia, acumulou experiências que somaram depois em sua escrita, do estilo às inspirações. Em dois anos, 2013 e 2015, participou de oficinas da Flup (Festa Literária das Periferias), festival literário realizado anualmente em comunidades do Rio de Janeiro. 
Foi ao publicar alguns de seus contos na revista Setor X que surgiu o convite para integrar a programação paralela da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Seu livro de estreia, a coletânea de contos O sol na cabeça, foi lançado pela Companhia das Letras em 2018. Em 2022, lançou Via Apia pela mesma editora, seu primeiro romance. 
Nesta edição, o Cândido entrevista Geovani Martins sobre seus processos de escrita, a importância da oralidade e a ligação de sua obra com suas raízes da favela.

 

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Acervo pessoal/ Geovani Martins

 

 

O território é quase um personagem nos seus livros. O que significa, para você, escrever a partir da favela e não apenas sobre a favela?

Minha entrada para a prosa se deu pela crônica. Desde criança, lia os grandes cronistas brasileiros e aprendia com eles. Então, quando comecei a escrever foi natural lidar com o ambiente que me rodeava. A construção do ponto de vista estético e político de qualquer artista vai passar pelos espaços sociais nas quais se está inserido. No meu caso, aprendi a olhar pro mundo a partir das favelas onde morei durante toda a vida. Quer dizer, escrever a partir da favela é para mim algo absolutamente natural. E hoje em dia, mesmo quando escrevo sobre outros espaços de convívio, esse ponto de partida não se altera. 
Acho muito interessante pensar por exemplo na canção "As Caravanas" de Chico Buarque e no meu conto "Rolezim", são dois textos que tratam exatamente da mesmíssima coisa, mas que as diferentes construções de nossos pontos de vista permitem abordagem estéticas completamente diferentes. 

 

Há um conflito entre memória e documentação quando você escreve sobre esses espaços que conversam tanto com suas vivências? Como lida com isso?

Não vejo nenhum conflito. Como artista, estou sempre mais preocupado com a verossimilhança do que com a verdade. Uso todas as referências possíveis para contar as histórias. Desde experiências pessoais, de pessoas próximas, de pessoas desconhecidas, até a recons­trução de uma notícia de jornal, a conversa com outras obras literárias, outras artes. Acredito que o grande diferencial de cada artista é justamente conseguir metabolizar suas vivências com suas referências formais para criar algo que faça sentido com seu tempo. Então, lido com tudo isso como matéria-prima para os meus livros. Meu único compromisso é com o texto, o único conflito é encontrar a melhor maneira de dizer o que preciso dizer. 
Como tem sido sua relação com o campo literário brasileiro, que historicamente é marcado por uma elite cultural? Tem percebido mudanças?
Infelizmente, minha relação com o campo literário é de um constante esforço para não ser exotizado. Isso mos­tra como, mesmo com importantes mudanças na cena literária, ainda falamos de um espaço muito elitizado. Quando pensamos na maior parte da população brasileira, seus dramas, suas alegrias, sua língua; esse povo continua sub-representado.

 

A gíria e os registros de oralidade da favela são marcantes na sua obra como maneira de linguagem. Você vê sua presença na literatura como um contribuinte para legitimar esses falares dentro do campo literário? Como enxerga esse movimento de representar o Brasil na literatura?

Acredito que a oralidade tem muito mais força de contribuição para a literatura do que o contrário. Então, vejo meu projeto ligado como uma forma de tentar explorar um pouco desse terreno, tão rico em musicalidade, estranhezas e complexidades. 

 

Existe uma necessidade de equilibrar a função política da literatura com a arte em suas obras? Ou você encara elas como coisas complementares?

Quando falamos da arte das palavras, esse lugar de criação dos imaginários, não acredito realmente que seja possível separar uma coisa da outra. Por exemplo, como a gente poderia separar a obra de Machado de Assis dos processos de escravização sobre o qual o Bra­sil foi construído? Os efeitos do patriarcado nos livros de Virginia Woolf? Ou mesmo retirar a Primeira Guerra Mundial de A terra devastada de T.S Eliot? É impossível. Seja consciente ou inconscientemente, o escritor (e seu universo ficcional) sempre vai ser afetado pela política de seu tempo.

 

o sol na cabeça
Companhia das Letras
via ápia

 

O que O sol na cabeça representou para você como o primeiro livro publicado e uma porta de entrada para você na literatura? 

Acho que foi uma boa estreia. Durante todo processo de escrita do livro, pensava nele como um tipo de cartão de visitas. Esse pensamento ajudou a pautar várias das minhas escolhas estéticas. Como, por exemplo, quando escolho transitar entre linguagem informal e linguagem formal, era uma forma de dizer: "Olhem, eu domino essa língua e não vou permitir que me reduzam ao simples relato pessoal."
Enquanto trabalhava no livro, pensava nele como um primeiro passo para uma carreira longeva como escritor. O livro acabou alcançando um sucesso muito maior do que eu podia imaginar naquela época e me colocou numa situação muito mais confortável do que eu esperava com um primeiro livro. Mas para além de retorno midiático e financeiro, olho para O sol na cabeça hoje em dia com bastante carinho, por todo o trabalho que tive para fazê-lo, por tudo o que aprendi en­quan­to fazia.

 

Conte um pouco sobre suas inspirações que te incentivaram a adentrar o meio literário.

Por uma questão financeira, fui formado basicamente por clássicos da literatura brasileira. Machado de Assis, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Lima Barreto, etc., tudo isso era muito acessível nos sebos e feiras de rua que frequento desde a minha infância. Então, nessa minha primeira fase como leitor, devorei tudo isso. Junto com a música e com os contadores de histórias da minha rua, esses autores foram minhas principais inspirações.

 

O que você sentiu de mudança ao comparar os processos de escrever O sol na cabeça e Via Ápia?

Escrevi O sol na cabeça num período de muita incerteza. Na época, eu não tinha como saber se a carreira de escritor seria sonho ou realidade. Todo o processo de composição do livro foi atravessado pelo medo, pelo desespero. Hoje quando olho para esses textos, consigo identificar muitos desses sentimentos. No ritmo, nas tramas e dilemas dos personagens. Foi um momento difícil, mas ao mesmo tempo foi um momento de muita dedicação e inspiração. Estive muito na rua, conversando com as pessoas, coletando histórias, linguagens, modos de narrar. 
No processo de escrita de Via Ápia, a vida se apresentava muito mais estável. Eu tinha um bom espaço para escrever, tinha tempo e a certeza de que iria publicar. O grande fator complicador foi a pandemia. Foi muito difícil escrever quase o livro inteiro em confinamento, sem contato direto com as pessoas. Além da incerteza do que seria a nossa sociedade depois da pandemia. Por tudo isso, considero Via Ápia um livro mais introspectivo e melancólico do que o que planejava fazer lá no início da jornada. O que foi bem interessante no processo de escrita do romance foi ter tido a oportunidade de ler e de ser influenciado por novos autores, a grande maioria africanos como Abasse Ndione [A vida em espiral], Chinua Achebe [A flecha de Deus] e Chimamanda Ngozi Adichie [Meio Sol Amarelo] e muitos outros.

 

 

Bianca Weiss nasceu em Arapongas, no norte do Paraná. Formou-se em Jornalismo na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e colabora com o jornal Cândido. Publicou o conto "Paranoias de Papel" na coletânea Todas as histórias monocromáticas que contamos (2024), organizada pelo Selo Editorial Coletivo Cine-Fórum.

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