RETRANCA | Poesia, despoesia, pós-poemas: Augusto de Campos 10/12/2025 - 14:31
Por Claudio Daniel
O poeta paulistano Augusto de Campos publicou recentemente o livro Pós-poemas, que integra uma tetralogia formada por três outros livros (ou antilivros): Despoesia (1994), Não (2003) e Outro (2015). Os títulos dessas obras já questionam o próprio conceito da arte poética, pelo menos em seu sentido de construção exclusivamente verbal. Todas as composições desta série notável de obras, embora mantenham o uso da palavra, ao mesmo tempo a redimensionam, não apenas pelo uso diferenciado da espacialização e das fontes, mas sobretudo pelo uso dos recursos das tecnologias digitais. Foram realizadas diretamente no computador, e não mais na máquina de escrever ou com recursos artesanais ou semiartesanais, como as dobraduras de papel e a aplicação da letraset, que o poeta utilizou na época do surgimento da Poesia Concreta, por exemplo em Poetamenos (1953), série de poemas coloridos inspirados na melodia de timbres do compositor austríaco Anton Webern, ou em Poemóbiles (1974), conjunto de doze poemas-objeto coloridos tridimensionais, desenvolvidos em parceria com Júlio Plaza. Conforme diz Augusto de Campos, em entrevista que realizei com ele em 2015 para a revista CULT, tanto Despoesia (1994) quanto os livros seguintes, Não (2003) e Outro (2015) "foram inteiramente produzidos em meu computador e assinalam o meu ingresso, sem volta, no mundo da linguagem digital". Já em outra entrevista que realizei com Augusto de Campos, desta vez para o Portal Vermelho, o poeta declara:
No universo digital, as imagens se interpenetram cada vez mais com as palavras (...). E em vez de se deixar atropelar pelas imagens, é mais interessante trazê-las para o mundo da poesia, que, segundo Pound, está mais próxima da pintura e da música do que da prosa. A tecnologia nos fornece as ferramentas para essa inflexão icônica no discurso. É pegar ou largar. A poesia já não pode ser a mesma.
E numa terceira entrevista, mais antiga, para o Suplemento Literário de Minas Gerais, publicada em 1999, o poeta já dizia:
Nesse contexto, a palavra não deixa de ter lugar, mas tem que ser reciclada, entrando em contato direto com a dimensão não-verbal, as imagens e os sons, e passa a ser interdisciplinar, intertextual e muitas vezes interativa, além de projetar-se em parâmetros materiais mais amplos, que devem levar em conta critérios de forma, cor, espaço e movimento. Não há porque excluir o livro ou outros suportes matéricos e textuais, que seguem o seu curso e até se beneficiam da tecnologia digital no processo de sua feitura. O que ocorre é a abertura insopitável para o universo virtual, em situações em que a palavra, potencializada em todos os seus parâmetros, já não cabe no livro.
Em Pós-poemas, seu mais novo trabalho autoral, Augusto de Campos retoma e leva ao limite as experiências realizadas nos três livros anteriores. Conforme escreve Carlos Adriano, no texto de "orelha" da obra: "Este livro compila trabalhos realizados de 2005 a 2024 e radicaliza a depuração rigorosa da condensação que demarca a poética de Augusto de Campos. O recurso da concisão é correlato ao transladar e decupar por estranhamento a palavra ou frase do senso comum, em intervenção meticulosa que gira sentidos insuspeitos a partir do elementar espanto do alumbramento⁴". Dividido em cinco partes, o volume inclui, além das composições verbivocovisuais do próprio poeta, "intraduções" de Omar Fitzgerald, o genial tradutor inglês que reinventou as quadras (rubáis) do persa Omar Kahhayam, poemas de Iliazd, Marcel Duchamp, Gerasim Luca e Emily Dickinson, esta última reimaginada em paralelo com a lembrança da companheira do poeta, Lygia de Azeredo Campos, falecida em 2024 aos 92 anos de idade, cujos poemas foram reunidos postumamente no volume Adormeço. Mereço? (2025), publicado por Vanderley Mendonça pela editora Cobalto. Pós-poemas apresenta ainda uma seção intitulada Profilogramas, com homenagens poéticas aos já referidos Emily Dickinson e Marcel Duchamp, e também a James Joyce, Fernando Pessoa e Giuseppe Ungaretti, este último traduzido por Haroldo de Campos e Aurora Bernardini no livro intitulado Daquela estrela à outra (2004). A intertextualidade, portanto, permanece nessa obra como uma das pedras-de-toque fundamentais da poética de Augusto de Campos, que desde o seu primeiro livro publicado, O rei menos o reino (1951), já dialogava com Lautréamont, Mário de Sá Carneiro e outros poetas que o marcaram na mocidade. Um bom exemplo de (re)criação intertextual, em Pós-poemas, é a composição intitulada "poematemáticas 2" (2016):
Este poema é um ready-made composto de frases ou pedaços de frases de autores como Lautréamont ("matemáticas severas, quanto eu vos amo") e Emily Dickinson ("matemática é mágica"), combinados a termos inseridos pelo próprio Augusto de Campos, numa algaravia visual ou texto-palimpsesto quase ilegível, pela sobreposição de palavras e letras estilizadas em sete cores (ou timbres, à maneira de Webern). Esta quase-equação poética celebra a síntese entre o rigor matemático e a sensibilidade estética, algo reivindicado pelos concretistas desde o seu surgimento, e antecipado por autores como Paul Valéry, que escreveu: "Todo dispositivo poético repousa sobre um fato matemático encoberto" e Ezra Pound, autor da sentença "Poesia, matemática inspirada", sem nos esquecermos de Vladimir Maiakovski e o seu poema "V Internacional", que diz:
Eu
à poesia
só permito uma forma:
concisão,
precisão das fórmulas
matemáticas.
Às parlengas poéticas estou acostumado,
eu ainda falo versos e não fatos.
Porém
se eu falo
"A"
este "a"
é uma trombeta-alarma para a Humanidade.
Se eu falo
"B"
é uma nova bomba na batalha do homem.
Tradução: Augusto de Campos
A poesia é pensada por estes autores não como resultado da "inspiração" ou do "sentimento", mas como algo pensado, planejado, com o rigor das fórmulas matemáticas, sem excluir a beleza estética e a experiência da subjetividade. O advento das tecnologias digitais realiza, assim, um sonho dos poetas mais radicais do romantismo, do simbolismo e da modernidade, que desejaram construir poemas como objetos ao mesmo tempo sensíveis, rigorosos, precisos e concisos.
Pós-poemas não é só a continuidade de um percurso criativo, nem o encerramento da produção do poeta: é talvez o marco inicial de uma nova vereda experimental inventiva em que o próprio conceito tradicional de poesia é superado, em prol de uma arte eletrônica interativa, realizada pela somatória de todas as linguagens artísticas, num contexto digital – algo já presente nos poemas cinéticos elaborados pelo próprio Augusto de Campos em seu website (augustodecampos.com.br/poemas.htm) e por Arnaldo Antunes (este último no trabalho Nome).
Este é o legado visionário do poeta mais inovador da literatura brasileira, que ousou "desafinar o coro dos contentes" e dar vivas à vaia, para jogar os dados em direção a um futuro desconhecido.
Claudio Daniel é poeta, romancista, crítico literário e professor de literatura. Nasceu em 1962, na cidade de São Paulo (SP). Cursou o mestrado e o doutorado em Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo (USP). Realizou o pós-doutorado em Teoria Literária pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Foi diretor adjunto da Casa das Rosas, Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, curador de Literatura no Centro Cultural São Paulo e colunista da revista CULT. Foi editor, por vinte anos, da revista eletrônica Zunái. Atualmente, ministra aulas online de criação literária no Laboratório de Criação Poética, é editor do Banquete, Jornal de Resenhas e Crítica Literária, e é um dos coordenadores do programa Poesia na Veia, transmitido pelo Youtube.








