Conto | Prêmio Biblioteca Digital 25/02/2021 - 22:32

Leia três contos do livro Uns, de José Roberto Torero, terceiro colocado no concurso promovido pela BPP e disponível gratuitamente em e-book

Uns, Roberto Torero
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Destino 

O goleiro olha as palmas de suas mãos e não há nada lá. Nem um traço, nem uma marca. É como se uma neblina houvesse passado por suas palmas e levasse junto a linha da vida, a linha do amor, a linha da cabeça e, claro, a linha do destino. 

Mas então ele coloca suas velhas luvas e ali estão elas, as linhas, esculpidas no couro curtido pelos anos. Inclusive, e principalmente, a do destino. 


 

O condenado 

Nereu é o melhor goleiro entre os presidiários da Penitenciária de Nossa Senhora da Glória, Sergipe. 

Ele é disputado por várias equipes, por isso cobra um alto salário, pago em cigarros, e exige jamais ter que limpar a cela. 

Nem sempre Nereu teve esta vida de luxo. 
    

Quando era jovem, tentou sem sucesso entrar em alguns dos times do estado. Mas foi rejeitado pelo Boca Junior, de Estância, e não passou do primeiro teste no River, de Teresina. 
    

Sem conseguir trabalhar como goleiro, arranjou outra função para suas mãos e começou a fazer pequenos furtos. Dos pequenos foi aos grandes, dos furtos passou ao assalto e do assalto passou à cadeia. 
 

Lá, com mais tempo para treinar e concentração constante, acabou se tornando um excelente arqueiro. 
    

Hoje é respeitado como o craque do presídio. E não quer sair de lá por nada. 
    

Porém, para seu azar, está para ganhar liberdade condicional. Na próxima quarta-feira ele deve cruzar o portão e voltar para a rua. 
    

Mas não é o que ele quer. 
    

Por isso, Nereu já decidiu: terça à noite vai matar seu companheiro de cela. 


 

O insubordinado 

Quando Ludovico ouviu a proposta de suborno, ficou em dúvida. Ele gostava de seu clube, mas, por outro lado, estava para casar e um dinheiro extra seria muito bem vindo. Ainda mais que sua futura esposa estava grávida de cinco meses. 
    

Ele pensou, pensou, pensou e aceitou. 
    

Porém, na noite anterior ao jogo, enquanto jantava com seus companheiros, um remorso começou a tomar conta de Ludovico. 
    

Como ele poderia sabotar amigos tão bons? Como poderia trair o clube em que estava desde que não tinha pelos no rosto? Como poderia trocar um campeonato por dinheiro? 
    

Ele não conseguia dormir. Revirava-se de um lado para o outro sem pegar no sono. Quando finalmente fechou os olhos, sonhou que o outro time chutava uma bola feita de notas de dinheiro e ela sempre ia parar dentro de seu gol. 
    

Ludovico acordou suado, sentindo-se o último dos homens. 
    

Foi até a cozinha da concentração e encontrou alguns jogadores. O capitão do time lhe perguntou: 

— Não consegue dormir, goleiro? 

— Não. 

— Não esquenta. Vai dar tudo certo. 

— Será? 

— Claro. Segunda-feira vamos estar com o bolso cheio de dinheiro. 
    

Ludovico pensou: “Não, não estarão. Eu vou entregar o campeonato e ninguém vai ganhar um tostão de bicho”. Mas falou: 

— Sim, claro, com o bolso cheio de dinheiro...
    

Durante o resto da noite, ele mais pensou que dormiu. E chegou à conclusão de que não deveria entregar o jogo. Sua obrigação era dar o melhor de si, jogar como nunca, ganhar o campeonato. Seu clube e seus companheiros não mereciam tamanha traição. 
    

Quando a partida começou, Ludovico mostrou que estava num grande dia. Voava atrás da bola como se fosse uma águia e atirava-se aos pés dos atacantes como se fosse um tigre. Era um daqueles jogos em que os goleiros estão perfeitos, adivinhando as intenções dos atacantes, decifrando os efeitos da bola, prevendo os morrinhos artilheiros. 
    

Seu primeiro tempo foi tão perfeito que a torcida gritou seu nome e ele teve que dar entrevista à rádio local. 
    

Na etapa final, tudo continuou na mesma. Ludovico estava mais ágil que sua própria sombra. Por outro lado, o ataque perdia gols e o meio campo não conseguia segurar a bola, o que tornava sua jornada ainda mais heroica. 
    

O zero a zero permanecia no placar, o que daria o título ao adversário. Então, no último minuto, num escanteio, Ludovico vai para a área inimiga e, coroando seu domingo perfeito, marca o gol de cabeça. 
    

O juiz nem deu a saída de bola. Acabou o jogo ali mesmo. 
    

Ludovico correu para as arquibancadas. Pulou o alambrado e foi abraçado pela multidão. Depois, molhado de suor e lágrimas, levantou a taça, deu uma volta olímpica e foi o último a entrar no vestiário. 
    

Então levou uma tremenda surra do resto do time.     


José Roberto Torero nasceu em Santos (SP), em 1963, e gostava muito de jogar como goleiro (o que seus adversários também apreciavam).

 

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