Especial Bloomsday | Dirce Waltrick do Amarante

Na cola de Joyce

A tradutora e professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Dirce Waltrick do Amarante faz um relato sobre os locais que percorreu em busca das pegadas do autor de Ulysses e de seus personagens

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Joyce e Sylvia

A editora Syvia Beach e James Joyce, em Paris, nos anos 1930.

Nunca passei o Bloomsday em Dublin, mas já visitei a cidade. Já andei por onde andou Bloom, Stephen etc., percorri as localidades do livro como Martelo Tower, Trinity School, mas sem o tumulto das pessoas que, no Bloomsday dublinense, se aglomeram nas ruas da cidade em busca de uma epifania joyciana, a visão de algo banal ou cotidiano que modifique o seu modo de ver o mundo. Uma epifania do tipo: “Uma vez ele, Stephen, tinha lavado as mãos no lavatório do Hotel Wicklow, e seu pai tinha puxado a válvula pela corrente, tendo a água começado a descer pelo buraco da pia. E, depois, quando toda a água já tinha descido vagarosamente, o buraco da bacia tinha feito um som que era direitinho essa palavra [...]. Havia dois registros que a gente virava e a água saía logo: quente e fria. [...] vira palavras impressas nas torneiras. Coisa mais esquisita”. Aliás, essa epifania é de Retrato do artista quando jovem, de 1916, romance anterior a Ulysses, de 1922 (tradução de José Geraldo Vieira). A epifania é central na obra de Joyce.

Particularmente não tive nenhuma epifania em Dublin, mas confesso que os atos banais e escatológicos narrados magicamente por Joyce, em Ulysses e em outros escritos seus, mudaram de alguma forma a minha perspectiva do cotidiano; afinal, penso que cada ato meu, por mais trivial que seja, sempre pode dar grande um romance... O problema será atingir a maestria verbal do escritor irlandês. Afinal, afirma Lyotard, a aventura do romance está na língua, na sua proliferação, na sua dispersão e na libertação de seus horizontes.

Na primeira vez que estive em Dublin, no inverno de 2000, conheci, ou achei que conheci, Earwicker, a personagem central de Finnegans Wake, Humphrey Chimpden Earwicker, romance que eu lia e do qual me dedicava a traduzir um capítulo, na época, acompanhada por uma professora de Literatura Inglesa, Joanna Parker, em Cambridge, Inglaterra.

Chegando ao aeroporto, peguei um táxi em direção ao hotel. O motorista era ear weak ou weaker (orelha fraca, ou mais fraca, numa tradução literal), ou seja, ouvia mal, de modo que lhe passei oralmente o endereço de onde iria me hospedar e fui parar em outro endereço. Tentei novamente me comunicar com ele e, quando vi que a minha fala não lhe fazia efeito, escrevi o endereço na última página do meu Finnegans Wake (livro que me acompanhava por todos os lugares). Mas não deu resultado, ele ouvia e via (talvez tivesse irite, como James Joyce) o que queria e me deixou diante do Correio Central de Dublin, o que acabou sendo interessante, já que é um dos cenários de Ulysses e seria a “casa” de Shem, um carteiro, personagem de Finnegans Wake. Diante do prédio do Correio Central, com a minha mala e o livro de Joyce na mão, decidi entrar e mandar um cartão-postal para o Sérgio Medeiros, que ainda não era meu marido e que estava na Califórnia, embora ele quisesse mesmo era estar em Dublin. Aliás, ele faz aniversário no Bloomsday e sempre ganha um bolo azul e branco (as cores da bandeira da Grécia, mas sobretudo uma homenagem ao Ulysses)! Esse foi o último cartão-postal que mandei na vida. Mas não foi a última vez que estive em Dublin, embora nunca no Bloomsday! Mas já passamos esse dia em muitos lugares.

Certo ano, passamos o Bloomsday em Londres, onde muitos estudiosos iriam se encontrar para celebrar a data, e resolvemos participar da comemoração, mas não achamos o local do evento, andamos em círculos por horas a fio e nada de encontrar nenhum joycista. Estávamos no lugar errado e na hora errada! Para nos redimirmos dessa falha, resolvemos visitar o túmulo de Joyce, em Zurique, mas a viagem ficou para fevereiro.

No túmulo de Joyce
Nevava bastante naquele fevereiro em Zurique, especialmente lá em cima, no cemitério onde está enterrado Joyce, que fica no alto de uma montanha. Entramos no cemitério sem nenhuma indicação de onde estava o seu túmulo. Perambulamos pelas ruazinhas estreitas com lápides cobertas de neve dos dois lados, parecia que estávamos no enterro do pobre Paddy Dignam, embora em Zurique e no inverno. Aliás, a neve “amontoava-se nas cruzes tortas e nas lápides, nas hastes do pequeno portão, nos espinhos estéreis” (“Os mortos”, tradução de Hamilton Trevisan), como no cemitério onde está enterrado Michael Furey. Passávamos as mãos nas lápides para conferir o nome do morto. De repente, encontramos o túmulo do Elias Canetti, ele tinha ganhado o Nobel... Joyce não... O Nobel é mesmo um prêmio muito estranho. Nessa altura, já estávamos cansados e com frio, as luvas molhadas de esfregá-las na neve que cobria as lápides.

Meu filho, Bruno Napoleão, que queria ir embora e decidiu que não daria mais um passo, pulou num monte de neve para se sentar e, para a nossa surpresa, revelou-se, por trás da neve onde ele havia se sentado, a estátua de James Joyce, justo ali, perto de Elias Canetti. Bruno Napoleão pôs um chapéu na estátua de Joyce e fez algumas esculturas ao lado dela. Nós o observamos, conversamos um pouco com o escritor irlandês, tiramos fotos e fomos embora. Joyce ficou lá, cercado de bonecos de neve e com um chapéu na cabeça, tudo obra do Bruno Napoleão.

Reprodução
Dublin
Homenagem a Joyce em Dublin, cidade presente no imaginário e na obra do autor.

Wake
Acredito não ter saído do tema do Bloomsday, embora não estivesse em Dublin, mas em Zurique, e não tenha achado a comemoração do Bloomsday em Londres.
A obra de Joyce que teria mais afinidade com Ulysses é Finnegans Wake. Por isso, talvez, seu último romance ganhe lugar especial nas celebrações do dia 16 de junho. Se Ulysses é o romance do dia, Wake é a sua versão noturna. Lembro ainda que seu romance noturno tem uma estrutura circular, a última frase do livro remete à primeira e, numa explosão, tudo reinicia, quase como o Bloomsday que se repete todos os anos numa explosão de entusiasmo dos amantes da literatura joyciana.

A propósito da carta que Joyce enviou para Harriet Weaver (sua mecenas), em que ele contava sobre o primeiro Bloomsday, o escritor, logo após mencionar que era capaz de falar com lucidez sobre Ulysses, admite: “Se por acaso agora tento explicar às pessoas o que supostamente estou escrevendo, eu vejo o assombro reduzi-las ao silêncio”. O que ele escrevia era Finnegans Wake.

A assombrosa prosa/poesia de Joyce tem sido vista como o sonho de Molly Bloom ou de Leopold Bloom. Diria que me parece mais um sonho feminino: depois de Molly ter passado o dia na cama, depois de seu longo monólogo final, ela parece adormecer e começar e sonhar e no seu sonho ela é Anna Livia, a protagonista de Wake.

Assim termina o monólogo de Molly Bloom, na tradução de Bernardina Pinheiro, já que estamos falando de uma voz feminina: “[...] sim e então ele me pediu se eu queria sim dizer sim minha flor da montanha e primeiro eu pus meus braços à sua volta sim e o arrastei para baixo sobre mim para que ele pudesse sentir meus seios todos perfume sim e seu coração disparou como louco e sim eu disse sim eu quero Sim”.

Agora, ofereço o início do monólogo de Anna Livia, na minha tradução, personagem de Wake, a versão noturna da senhora Bloom: “Poderia te guiar por aí e eu serena do seu lado na cama. Vamos lá pelo conduckto pra Dunamarca, nous? Nenhuma alma mas nós sós”.

E prossegue Anna Livia:

“Podemos nos sentar no benn urzado, eu e você, em innconsciência calma. Pra escandir e se surgir. Fora de Drumleck. Foi lá em Évora disse que eu tive o melhor. Se um dia tive mesmo. Quando a lua lamentosa se pôs e se perdeu. Sobre Glinaduna. Alone a luna. Nós, nossas almas a sós. Nas bandas do salvoceânico. [623]

Num desses belos dias, apartador orbsceno, você deve se restourar uma vez mais. [624]

Se eu perder o fôlego por um minuto ou dois não fale, recorde! Uma vez isso já aconteceu, então pode de novo. [625]

A invisão da Irlíndia. E, por Thorror, você a viu! Meus lábios ficaram lívidos da alegria do temor. Quase como agora. Como? Como você disse como você me daria as chaves do coração. E nós estaríamos casados até que o norte no céupare. Mas você tá mudando, escolta, você está mudando a partir de mim, posso sentir. Ou isso é em mim é? Estou ficando embaralhada. Clareando [626] por cima e arroxando por baixo. Sim, você tá mudando, filhesposo, e está girando, posso te sentir, para uma filhesposa das colinas de novo. Imlamaya. E ela tá chegando. Nadando no meu ultimato. Não vá partir! Sejam felizes, meus queridos. Posso até tar enganada! Pois ela será doce pra você como eu fui doce quando eu vim da minha mãe. Fiz o meu melhor quando me deixaram. Pensando sempre que se eu vou todos vão. Mil cuidados, um décimo de problemas e tem quem mentenda? Toda minha vida eu vivi entre eles mas agora eles estão se tornando avessos a mim. E eu vou detestanto seus embustizinhos acalorados. Vocês são só uns franzinos. Pra casa. Minha gente não era deste tipo até ondeu alcanço. Soletarimente na minha solidão. Por todos os seus erros. Estou esvaindo. Ó amargo fim! Escapulirei antes deles levantarem. Nunca verão. Nem saberão. Nem sentirão minha falta. E é velho e velho é triste e velho é [627] triste e cansativo eu volto pra você, meu gélido pai, meu gélido e louco pai. Vejo eles se erguerem. Salve-me daquelas trerríveis presas! Minhas folhas foram levadas pra longe de mim. Todas. Mas uma inda se agarra. Vou levá-la comigo. Pra me lembrar de. Lff! Que suave esta manhã, nossa. 

Sim. Me leve junto, popai, como você fazia de cá pra lá na feira de brinquedos! Seu vissee ele caindo sobre mim agora sob as asas abertas como se ele tivesse vindo de Ankangelus, eu afundaria eu apagaria sobre seus pés, delicadamente debilmente, só pra lavá-los. Sim, mennina. Lá é onde. Primeiro. Você atravessa a relva simlenciosamente para. Shii! Uma gaivota. Gaivotas. Longe chamam. Vindo, de longe. Finda aqui. Pra nós então. Finn, de novo! Toma. Suave sejastu, memore-me! Lavre milhões deti. Sscios. As chaves para. Dadas! Um caminho um só um último um amoroso por onde” [628]

E tudo remeça mais uma vez:

“correorrio, após Adão e Eva, da contornada costa à encurvada enseada, nos leva por um commodius vicus recirculante de volta para Howth Castle e Entornos”. [3]

Joyce
Joyce França

Joyce e retrato do autor no ano de publicação de Ulysses, em 1922, na França.


Dublin e outros lugares

Ulysses, Wake, Dublinenses, Molly, Anna Livia, Gabriel Conroy, Leopold Bloom são os muitos motivos para festejar Joyce e fazer Dublin espalharse mundo afora, num cruzamento de culturas que sempre foi muito valorizado por um exilado, por opção, como James Joyce. Apesar de exilado, a Irlanda sempre o “acompanhou” em suas andanças pela Europa continental.

O escritor costumava dizer que se um dia Dublin desaparecesse, poderia ser reconstruída das páginas de seus livros. Se Joyce fazia de Dublin o centro do mundo na sua ficção, o Bloomsday traz a Irlanda para perto de nós, todos os anos: uma Irlanda imaginária, onírica, literária, mutável e poliglota, onde se falam várias línguas, inclusive o português.

No Bloomsday, conforme se lê em Ulysses, certamente mais uma vez “a Irlanda espera que todo homem neste dia cumpra o seu dever”.

O dia 16 de junho não foi escolhido por acaso: foi nessa data que James Joyce saiu pela primeira vez com Nora Barnacle, em 1904, a grande musa do escritor, com quem ele se casaria anos mais tarde. Mas, como afirma Isaiah Sheffer, Joyce também deve ter escolhido esse dia por ele acontecer cinco dias antes do solstício de verão, quando, na latitude de Dublin, a luz do dia dura até tarde da noite.

Sérgio quer passar o Bloomsday de 2018 em Portugal para homenagear a terra de Enrique Flor, personagem português de Ulysses, que ele recriou no seu livro Totens, em que discute a música vegetal inventada por Joyce e atribuída ao músico português.

Aliás, iremos passar o Bloomsday deste ano em Dublin! Mando notícias!


Dirce Waltrick do Amarante nasceu e vive em Florianópolis (SC). Formada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), exerceu a advocacia por alguns anos, mas foi capturada pela literatura. É mestre e doutora em Teoria Literária na UFSC. Leciona no Curso de Graduação em Artes Cênicas na UFSC e atua na Pós-Graduação em Estudos da Tradução da mesma Instituição. Tem livros publicados na área de literatura, teatro e ficção. Traduziu, entre outros autores, James Joyce, Eugène Ionesco, Gertrude Stein, Edward Lear. Colabora em jornais e revistas como O Estado de S.Paulo, O Globo e Notícias do Dia.