Poemas | Sofia Mariutti 30/07/2021 - 13:05

alguma coisa

cintila no chão

da manhã é outono

 

cintila triângulo

sobre o cimento

queimado, craquelado

 

cintila como os triângulos

que buscava minha

avó na palma

 

da minha mão

quanto mais triângulos,

dizia, maior a espiritualidade

 

era a sua a mão mais

craquelada como esse

piso grisalho

 

a mão mais cheia de

triângulos

e espiritualidade

 

sua alma é velha

dizia, e longa

a linha da sua vida

 

*

 

no corredor de casa, perto do ponto onde as paredes se encontram

e encostam no chão, um pouco acima do rodapé

há um homúnculo de pé, as pernas levemente cruzadas no ar

o lado esquerdo encostado na esquina, se é um livro ou diário o que segura na altura do peito não sei

 

há alguns dias me faz companhia

levo-lhe chá, iogurte, frutas e nozes

ele agradece e come tudo sem jamais sair do lugar

o homúnculo só quer estar ali, pensando nos sonhos que tive de noite

para escrevê-los de dia, apesar do imperativo da convivência em família

o que ele gostava mesmo era de estar debaixo da terra, trancado num porão

 

vive bem asseado, gosta que eu abra as janelas, respira um pouco do ar do outono e então se exercita conforme um livro que já sabe de cor

me pergunta o que acho do seu reflexo se é ou não é o mais bonito que já vi

é o mais bonito e olha que já vi muitos reflexos

esse homúnculo é mesmo muito bem formado, embora alguns o tomem por uma moça de maiô, estilo pin-up, olhando para o lado

fato é que não é desse tempo

 

veja eu poderia chamá-lo homenzinho, mas o efeito não seria o mesmo

é o cúmulo do homúnculo de castigo no canto do corredor

correndo para manter em dia a correspondência

tem noite que sacrifica o sono para escrever enquanto a casa está silenciosa

e no dia seguinte falta ao trabalho não consegue ajudar a família

pobre homúnculo é preciso ser muito egoísta para escrever

 

 

Sofia Mariutti é poeta, editora e tradutora. Formou-se em Letras – Alemão pela USP e trabalhou como editora da Companhia das Letras até 2016. Publicou o livro de poemas A Orca no Avião (2017) pela editora Patuá. Vive em São Paulo.