POESIA | Ana Botner 30/03/2023 - 11:30

Algo sobre a sincronia

 

Para Cris

 

e olhamos pela janela, a cachorra lambendo minhas pernas

enquanto

eu te via de colete vermelho, descalça

a chuva escorrendo pela varanda

e você me dizia algo sobre a sincronia

e o romantismo, e como não escapamos dele

já eu respondia com a dialética e as escolhas dos ministérios, os desastres e má estrela

mas você disse que devemos ser otimistas

já eu disse: talvez não

conversamos sobre amigos antigos

como eles estão espalhados agora

fracos, mudos

levados à loucura

com uma fome que corre nas veias

nas mãos

lembramos da fome, mas não sentimos falta

este oco

e disse: ninguém aqui vai vagar para baixo

talvez para os lados

você sempre brilha quando falamos do amor

como tentou se proteger e não deu

mas ninguém aqui vai vagar para baixo

eu falo como encontrei minha casa

e você se prepara para uma viagem

e a chuva escorre, a cachorra late

mas o brilho no seus olhos é bonito

gigante

 

*

 

Only lovers left alive

 

eu vi você tentar

desfazer tão delicadamente uma velha ferida

 

e ouvi os gritos, semelhantes a uma oração,

e sentei no musgo

até que cresceu estranho

 

eu, que desci a montanha e subi de novo esperando

o uivo geral

até que uma febre sacudiu a garganta

 

eu vi você tentar

desfazer tão delicadamente

 

no entanto, o mar está nas canelas

após tantos cigarros

e não se chora mais dentro da casa

 

mas eu e você

eu e você choramos tão bonito

 

no entanto, o céu está azul bebê

e você está deitado agora

eu, deitada do outro lado

mexendo nas suas bolas, sentindo a sua pele

 

*

 

Boom

 

é noite lá fora

eu descanso

eu seguro um oceano na palma da mão

eu queimo minha palma com cinzas

eu queimo minha palma com a mais elegante cinza

agora estou cruzando o atlântico

com a criatura lá fora

e eu me lembro de nina simone

quando ela correu para aquele rio fervendo

e pediu uma chance à Deus

mas eu não ligo muito para a água

e suas consequências

e eu penso

eu nunca sou tão metafísica

e eu penso

eu sinto sua falta agora

eu acho que

eu quero esquecer a palavra escuridão

e todas as suas crianças, embora eu saiba

como são lindas

eu fico pensando sobre aquela coisinha

em que você explode em pedacinhos

e cai na palma da mão dele

e fica olhando ele fumar

e eu acho que posso lidar com isso

existem tantos estudos sobre o amor

e alguns sobre a delícia

eu agora vejo gatos pretos e acidentes bárbaros

vejo seu santuário com poetas mortos e uma única foto de família

vejo fortes marés de fascismo

e inexplicáveis ventos de tristeza

perda

e as punições da lei

vejo cores que odeio

e muitas pessoas murmurando

eu vejo a sociedade caindo

um silêncio profundo e uma escada

as escadas não significam nada

e a fatalidade é uma marcha vitoriosa de moribundos

mas isso não é o amor

eu vejo o culto do eu devorando suas almas com dinheiro sujo

eu vejo a ambição e o espectro sem fim

que nos foi prometido no século dezenove

eu vejo você e me lembro de como você me prometeu

em um poema

de que este seria o meu século

e eu sei

agora

que posso lidar

com a explosão

 

 

 

Ana Botner (Rio de Janeiro, 1999) é graduanda em Ciência Política na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Seu primeiro livro de poemas, Andar Barato, foi publicado pela editora Urutau, em 2021.