POEMAS | Jennifer Trajano 31/05/2021 - 13:06

consciência 

acordei olhando
os olhos de vovó 
e debulhei as marcas
da escavada velhice 
cravada na pele 

vi ali os restos 
das vendas 
nas fendas 
das pretas 
maltratadas 

acordei com as vozes
negras espancadas, veio
na veia a velha vontade 
de remar, queimar 
os barcos no mar 

acordei olhando 
os raios solares 
baterem à porta 
da catarata de vovó
inundei de coragem

ela na cicatriz faz nó
em ancoragem
tira o véu
olha pro céu
dentro do sol

e me acorda dizendo
nalgum lugar, lá onde 
sempre estive, a carne  
mais barata do mercado 
não é a carne negra

 

nebulosa 
A Sérgio de Castro Pinto 

do olhar de baixo:
voa o papagaio
com o olho
cabisbaixo  
ao voo, em dis-
tante raio, feito 
flecha ao vento

sem tempo
, demora 
contando 
as brechas 
do céu, a cor 
da hora
e ao lado 

de fora 
faz eco como 
quem ecoa 
estrelas
pedindo 
falas, indo
nebulá-las

quereria não
partir as asas
não compensa 
repetir palavras 
sem entendê-las 
só por assim
dizerem sê-las

do olhar de cima: 
lá do azul 
que não sai
águia o vê e voa
guiada. já sem rima
a guia vê-se
no olhar torto 

enfim vai-se um bi-
cho dentro do outro 
regresso ao ventre e 
ao osso, donde restos 
de estrelas lembram 
ao fim que nada, nada 
é tão livre assim


o fim começa

no começo
o mar é ventre 
que me infinda 
o rio é cobra que me 
enrosca em todos os leitos
nasço, renasço em hiatos
respiro com ou sem nó 
os farelos das estrelas
no fim busco torná-las 
tornando-me redemoinho
a fim de buscá-las 
porque começo
quando me termino
olha: falta ar
falta mar
falta corda
mas não falta vida 
mesmo quando finda
por isso explodo, morro 
e vivo ao penetrá-la

 

tecer 

tua presença é luz
no túnel desses tempos 
toca nalgum sol que me 
toca vestindo orquestras
invadidas por auroras

o encanto das futuras horas
pede que o tempo passe 
e que os olhos teus 
me sejam passados de
presente tal qual os meus

que verás ao dilatares 
a pupila mirando a linha 
de ternura na costura
do meu corpo que desata
no destino das tuas mãos

 

retrato 

me atraio pelo mesmo 
motivo que não deveria 

e queria não ser a criança curiosa 
o cão que late ao vulto 
a voz incontida em tumulto 

mas teu perfil é sonho de sonho 
esquecido voltando à realidade

olho de pálpebra cerrada 
de modo mudo, cercada

e ao ver-me em teu vidro fundo 
: flash ao mundo, registro a chegada: 
te atraio quando não deveria

 


Natural de João Pessoal (PB), Jennifer Trajano é professora de língua portuguesa, revisora textual e autora do livro de poemas Latíbulos (Editora Escaleras, 2019). Também participou de antologias poéticas como Um Girassol nos teus Cabelos: Poemas para Marielle Franco (2018) e CULT Antologia Poética #3: Poemas Para Fazer o Luto Desse Tempo (2020).