POEMA | Meu fantasma vir de longe... vejo 19/11/2024 - 17:07
Cândido publica o primeiro poema do livro Por que você deixou o cavalo sozinho, do autor palestino Mahmud Darwich, ainda inédito no Brasil, com lançamento previsto para abril de 2025, pela editora Tabla.
A tradução da obra é de Michel Sleiman, que comenta sobre o processo da tradução do poema: “Fiz um Darwich cantado, como ele é. Inclusive metrificado, mas de captação pouco óbvia, como é o ritmo na poesia dele, isso confessadamente dito, aqui e ali, pelo poeta. Particularmente a parte final do poema... são sequências encadeadas de dodecassílabos, decassílabos, hexassílabos, pentassílabos... e aquela dança de sons, imagens, repetições, elipses, desenhando a epifania de onde o poeta catou seu arco-íris fúlgico transfulgicizado aqui em nosso muito querido (embora colonial arghhhh) português, quiçá em primeira vez para qualquer língua de tradução em que se verteu esse belo poema”.
Michel Sleiman é poeta, editor, tradutor e professor nascido em Santa Rosa (RS). Reside em São Paulo desde 1991, onde ensina Língua e Literatura Árabes na Universidade de São Paulo e orienta estudos de pós-graduação em Letras Estrangeiras e Tradução. Coordena um grupo de tradução de poesia árabe, que reúne pesquisadores interessados na transposição crítico-criativa dessa poesia ao sistema literário brasileiro. Desenvolve estudos em tradução crítica do Alcorão e da poesia oriental e andalusina. Como poeta publicou San Tá Cidade (1984), O Quarto Movimento e E da Rosa (UFSM, 1985), Do amor e da areia (1993) e Ínula Niúla (Ateliê, 2009). Traduziu para a Editora Tabla Ode à errância, do poeta sírio Adonis, Umm Saad, de Ghassan Kanafani, Onze astros, de Mahmud Darwich (tradução vencedora do prêmio Turjuman 2022), Poema dos árabes, de Chânfara, e O pequeno lampião, Ghassan Kanafani.
Meu fantasma vir de longe... vejo
Varanda de uma casa, eu, vejo o que desejo
vejo meus amigos trazerem nas mãos o correio noturno:
o vinho, o pão
as histórias, os discos
vejo uma gaivota e caminhões do exército
mudarem as árvores deste lugar
vejo o cão do meu vizinho
migrado há um ano e meio do Canadá
vejo Almutanabbi
da Tabariyya ao Egito
vir montado no dorso da canção.
vejo a rosa-da-pérsia trepar
a cerquinha de ferro
varanda de uma casa, eu, vejo o que desejo
*
Vejo árvores protegerem a noite em si mesma
e o sono daqueles que me amam morto
vejo o vento procurar em si mesmo
a pátria do vento
vejo uma mulher em si mesma se banhar de sol
vejo uma procissão de profetas antigos
subirem descalços a Jerusalém
e pergunto: O novo tempo já
tem seu novo profeta?
*
Varanda de uma casa, eu, vejo o que desejo
vejo minha foto fugir de si mesma
até a escadaria de pedra levando o xale de minha mãe
e tremulando ao vento: O que aconteceria se eu
[voltasse
a ser criança? Eu voltei para você, você voltou para
[mim
vejo o tronco da oliveira que escondeu Zacarias
vejo palavras desaparecidas no Lisan Alarab
vejo os persas, os romanos, os sumérios
os novos refugiados
vejo as contas do colar de uma pobre de Tagore
moídas pela carruagem do belo príncipe
vejo uma poupa cansada das censuras do rei
e vejo o que há além da natureza:
o que virá, o que virá depois das cinzas?
meu corpo com medo de longe vejo
varanda de uma casa, eu, vejo o que desejo
*
Vejo minha língua passado um par de dias. Basta uma
[curta ausência
para Ésquilo abrir a porta para a paz
basta
um breve discurso para Antônio incendiar a guerra
basta a mão de uma mulher na minha
para eu abraçar minha liberdade e
meu corpo reiniciar seu fluxo e refluxo
*
Varanda de uma casa, eu, vejo o que desejo
meu fantasma
vir de
longe...
vejo
Mahmud Darwich nasceu na aldeia de Albirwe, na Galileia (Aljalil), Palestina, em 13 de março de 1941. Poeta da solidão, do exílio, da interioridade, da transcendência, mas também da resistência, é considerado um dos maiores escritores de língua árabe.
Admirado também em muitos países onde sua extensa obra chegou pela tradução. No Brasil, a editora Tabla publicou os seguintes livros do autor: Da presença da ausência (2006), Onze astros (2021), Memória para o esquecimento (2021) e Diário da tristeza (2024).