ESPECIAL NICOLAU | Sonhos verbais de Dante 20/12/2023 - 12:52

O Cândido seleciona para esta edição de dezembro a tradução de Aurora Bernardini, do escritor italiano Dante Alighieri (1265-1321), publicada originalmente no ano de 1994. Considerado um dos mais importantes escritores humanistas do renascimento literário, sua obra mais conhecida é o poema intitulado “A Divina Comédia”.

Aurora Bernardini nasceu na Itália, se formou em Letras pela Universidade de São Paulo, onde fez carreira acadêmica, tornando-se professora titular do Departamento de Letras Orientais. Traduziu grandes autores da literatura universal, como Khlébnikov, Pasternak, Pirandello, Ungaretti, entre outros.

Publicada originalmente no Nicolau, suplemento bimestral editado pela Secretaria da Cultura (SEEC). Março — Abril de 1994, ano VII, número 52 *publicamos todas as edições do Jornal Nicolau em sua versão original, inclusive com o acordo ortográfico vigente na época e a biografia dos autores(as).

Publicamos todas as edições do Jornal Nicolau em sua versão original, inclusive com o acordo ortográfico vigente na época e a biografia dos autores(as).

 

Obra-prima de efeitos lingüísticos do séc. XII, a escritura de Dante Alighieri — ainda hoje — assusta e fascina.

Aqui, a tradutora Aurora F. Bernardini recria alguns sonhos verbais do mestre italiano

 

rime dubbie
VIII

Nulla mi parve mai più crudel cosa
    di lei per cui servir la vita [smago],
    ché 'l suo desio nel congelato lago
    ed in foco d'amore il mio si posa.  
              4
Di così spietata e disdegnosa
    la gran bellezza di veder m'appago;
    e tanto son del mio tormento vago,
    ch'altro piacere a li occhi miei non osa.
             8
Né quella ch'a veder lo sol si gira,
    e 'l non mutato amor mutata serba,
    ebbe quant'io già mai fortuna acerba.
           11
Dunque, Giannin, quando questa superba
    convegno amar fin che la vita spira,
    alquanto per pietà con me sospira.    
      14

 

rimas dúbias
VIII

Nada pareceu-me jamais tão cruel cousa
    que ela, por quem servir a vida anseio,
    pois seu desejo em congelado meio,
    e no fogo do amor o meu, se pousa.             4
De tão desapiedada e desenhosa
    tanta beldade vislumbrar sou pago;
    e tanto me agrada esse tormento vago,
    que outro prazer vir-me aos olhos não ousa.         8
Nem aquela que a mirar o sol se vire
    e que o não mudado amor guarde mudada
    jamais teve quant'eu fortuna tão malvada.           11
Então, Giannino, a esta afetada
    consinto amar até que a vida expire,
    conquanto que de dó por mim suspire.           14

 

XI

Se 'l viso mio a la terra si china
e di vedervi non si rassicura,
io vi dico, madonna, che paura
lo face, che di me si fa regina;                
4
perché la biltà vostra, peregrina
qua giù fra noi, soverchia mia natura,
tanto che quando ven per avventura
vi miro, tutta mia vertù ruina:                
8
sì che la morte, che porto vestita,
combatte dentro a quel poco valore
che mi rimane, con piogge di troni.              
11
Allor comincia a pianger dentro al core
lo spirito vezzoso de la vita
e dice: "Amore, o perché m'abbandoni?". 
          14

XI

Se meu rosto até o chão se inclina
e por ver-vos não se reassegura,
eu vos digo, madona, que à paúra
o devo, que de mim se faz rainha;                 4
porque vossa beldade, peregrina
aqui entre nós, sobrepuja a natura
que eu tenho, tanto, que se porventura
vos contemplo, toda minha virtude se arruína:         8
de tal modo que a morte que trago vestida,
combate dentro daquela pouca valentia
que me resta, com chuvas e trovões.           11
Então no coração a chorar principia
o airoso espírito da vida
e diz: "Amor, por que longe de mim te pões?".           14


inferno
Canto V

E quella a me: "Nessun maggior dolore
che ricordarsi del tempo felice
ne la miseria; e ciò sa 'l tuo dottore.               
123
Ma s'a conoscer la prima radice
del nostro amor tu hai cotanto affetto,
dirò come colui che piange e dice.   
            126

inferno
Canto V

E ela a mim: "Não há mais forte dor
do que lembrar-se do tempo feliz
na miséria; bem sabe disso o teu Doutor.           123
Mas se em saber a primeira raiz
de nosso amor tu tens tamanho gosto,
farei como quem chorando diz.               126


purgatorio
Canto XXIV

Né'l dir l'andar, né l'andar lui più lento
facea, ma ragionando andavam forte,
si come nave pinta da buon vento;               
3
e l'ombre, che parean cose rimorte,
per le fosse deli occhi ammirazione
tracan di me, di mio vivere accorte.       
        6

purgatório
Canto XXIV

Nem o dizer o andar, nem o andar mais lento
o fazia mais raciocinando íamos forte,
tal como nave tangida por bom vento;           3
e as sombras, que pareciam vindas da morte,
pelas fossas dos olhos admiração
tinham por mim, ao ver que eu tinha vivo o porte. 6


paradiso
Canto XXXIII

Nel suo profondo vidi che s'interna,
legato con amore in un volume,
ciò che per l'universo si squaderna:                      
87
sustanze e accidenti e lor costume
quasi conflati insieme, per tal modo
che ciò ch'i' dico è un semplice lume.           
           90

paraíso
Canto XXXIII

Em seu profundo eu vi como se interna,
ligado com amor em um volume;
aquilo que no universo descaderna:           87
substâncias e acidentes e o costume
quase conflados juntos, de tal modo
que aquilo que eu digo é um simples lume.           90

 

um olho imenso

Dante, nome afetivo de Durante, nasceu numa casa de pedras na periferia de Florença/ltália, no ano de 1265. Descendente de guelfos da pequena nobreza, a primeira fase de sua formação (75 — 86) — a retórico-gramatical — encerra-se quando casa com Gemma Donatti, com quem teve três filhos. Em 87 esteve em Bolonha, para afinar sua cultura no então célebre Studio. Entre 87 — 90 compôs // Flore e Detto d'Amore (poemas). De volta a Florença, aprofundou estudos de filosofia fre­qüentando a "escola para religiosos" e "le disputazioni degli filosofanti" em Santa Maria Novella e Santa Croce. Nos anos de 92 e 93 escreveu Vita Nuova, onde relata seu amor ideal por Beatrice, que na época tinha 14 anos. Iniciou carreira política no momento em que o papa Bonifácio VIII principiava manobras expansionistas na região de Toscana, e na cidade de Florença o partido dos guelfos, que se opunha aos gibelinos, se dividia em duas facções: a dos "brancos" (por quem Dante simpatizava) e a dos "negros". Apesar dos encargos públicos (fez parte, entre outros, do Conselho dos Cem) e dos reveses financeiros, Dante compôs, entre 96 e 98, as rimas petrosas e outros versos de caráter doutrinário. No ano seguinte participou de uma delegação de governantes florentinos a Roma: no decurso de sua ausência os "negros" tomaram o poder e Dante foi acusado de peculato e favorecimento de interesses particulares e acabou sendo condenado à morte. Começaram aí as peregrinações de exilado por várias cidades italianas. Permaneceu algum tempo em Lucca. É nesse período que compõe De Vulgari Eloquentia e Convivio, ambos interrompidos pelo nascimento das primeiras linhas da Commedia, formada pelo Inferno (1304 — 1305), seguido do Purgatorio (1308 — 1312). Quando o imperador Arrigo VII esteve na ltália em 1310, Dante o apoiou. A derrota e a repentina morte de Arrigo (1313) fizeram com que o poeta florentino se refugiasse em Verona, onde escreveu a mais epifânica obra sonhada por um ser humano — e conclusão da Commedia —, o Paradiso. Voltando de uma viagem a Veneza — onde tinha ido conhecer as gôndolas e aper­feiçoar o texto de alguns poemas — Dante Alighieri contraiu malária e faleceu numa caleça na noite tem­pestuosa de 14 de setembro do ano de 1321.

AURORA F. BERNARDINI, nascida em Domodossola Novara/ltália, é professora de Russo e Literatura Comparada na USP. Doutora em Língua e Literatura Italiana. Autora, entre outros livros, de Henrique IV e Pirandello (ensaio). De suas traduções destaca-se Ka, de Velímir Khlébnikov. Está traduzindo um romance do pintor italiano Giorgio de Chirico, intitulado Hibdomero, com publicação prevista para outubro, pela editora Nova Ale­xandria. (Ano de 1994)