Romance | Lewis Carroll

Era um Flizz

Tradução de Sérgio Medeiros

Na extremidade da plataforma, alguns degraus irregulares de madeira conduziam à rua — deparei ali com duas passageiras que evidentemente haviam chegado pelo trem vespertino, o que era extraordinário, pois eu não as notara entre as poucas pessoas que desceram dos vagões. Tratava-se de uma moça e de uma menina: a primeira, tal como pude deduzir de sua aparência, era uma espécie de babá ou de governanta, que conduzia a criança, cuja face delicada, mais ainda do que a roupa que usava, a colocava numa classe superior à da sua companheira.

Embora delicada, a face da criança também era macilenta e triste, revelando (pelo menos assim me pareceu) uma longa história de doença e sofrimento, suportados com paciência e doçura. Para caminhar ela se apoiava numa pequena muleta, mas se deteve diante dos degraus e os olhou pensativamente, como se reunisse coragem para iniciar a penosa ascensão.

Às vezes, dizemos coisas — ou até as realizamos — de maneira automática, por “ato reflexo”, segundo a linguagem dos fisiologistas (eles querem dizer, sem dúvida, “ação sem reflexão”, tal como se afirma que lucus deriva de non lucendo [1]). Ao fecharmos subitamente as pálpebras quando temos a impressão de que algo voa na direção dos nossos olhos, realizamos uma ação desse tipo. E o mesmo sucedeu quando eu perguntei: “Permita-me carregar nos braços a menina até a calçada?” Pois, antes de pronunciar tais palavras, a ideia de oferecer ajuda ainda não havia me ocorrido: o som da minha própria voz, e a descoberta de que tal proposição havia sido feita, é que me proporcionaram a intuição de que eu deveria prestar o meu auxílio. A babá hesitou, olhando alternadamente para nós dois; depois, voltando-se para a menina, indagou: “Você gostaria, querida?” A menina prontamente ergueu os braços na minha direção. “Sim!”, foi tudo o que ela disse, ao mesmo tempo que um sorriso débil iluminou sua face exausta. Tomei cuidadosamente nos braços a criança, que enlaçou confiante o meu pescoço.

                                                                            Ilustrações: Simon Taylor
1


Ela era extremamente leve. Para dizer a verdade, tão leve que me ocorreu a ideia insensata de que era mais fácil subir as escadas com ela nos braços do que de mãos vazias. Quando pisamos finalmente a rua — os sulcos de rodas e as pedras eram obstáculos sem dúvida formidáveis para uma criança manca —, dei-me conta de que havia afirmado: “Não gostaria de descê-la nesse terreno acidentado”, palavras que me saíram antes que eu fizesse qualquer conexão mental entre o solo ingrato e a minha gentil e diminuta carga. “Estamos lhe dando muito trabalho, Senhor!”, exclamou a babá. “Ela pode andar muito bem neste terreno plano.” Contudo, o braço que me enlaçava o pescoço estremeceu levemente a essa sugestão, levando-me a comentar: “Na verdade ela não pesa nada. Carregarei a menina um pouco mais. É o meu caminho”.

A governanta não fez nenhuma objeção. A próxima voz que ouvi foi a de um menininho descalço e de roupa esfarrapada, com uma vassoura no ombro. Ele correu à nossa frente e simulou varrer o chão seco. “Uns tocadinhos!”, o pequeno moleque suplicou, com um largo sorriso no rosto sujo.

Não lhe dê nada!”, disse a pequena lady nos meus braços. As palavras soaram duras, mas o tom era gentil. “É um garotinho preguiçoso!” E o seu riso então encheu o ar, um riso de uma doçura argentina como eu jamais ouvira em outros lábios, exceto nos de Sílvia. Para o meu assombro, o garotinho também gargalhou, como se ambos possuíssem entre si alguma afinidade sutil. A seguir, o moleque esfarrapado se afastou correndo e desapareceu numa passagem da cerca viva.

Mas retornou logo depois, sem a vassoura e carregando agora um primoroso buquê de flores, oriundo de um fornecedor misterioso. “Flor quase de graça, só um penny!”, ele anunciou com a fala arrastada e melancólica de um mendigo profissional.

Não compre!”, ordenou-me Sua Majestade, enquanto o olhava com um arrogante ar de desprezo, curiosamente matizado por um interesse terno pela esfarrapada criatura a seus pés.

Desta vez, rebelei-me e ignorei a ordem real. Aquelas flores, tão fascinantes e inusitadas, não mereciam ser abandonadas para satisfazer aos caprichos despóticos de uma pequena donzela. Comprei o buquê: o garotinho colocou a moeda na boca e deu uma cambalhota, como se desejasse verificar até que ponto esse órgão humano estava apto para ser usado como cofre.

Com deslumbramento, que crescia a cada momento, eu admirei as flores, examinando-as uma a uma: não havia entre elas uma só que me fosse familiar. Por fim, voltei-me para a babá. “Estas flores são nativas daqui? Nunca vi nada...”, mas a frase morreu nos meus lábios. A moça havia desaparecido!

“Pode descer-me agora, se quiser”, Sílvia observou tranquilamente.

2

Obedeci em silêncio, mas disse comigo mesmo: “Isso é um sonho?”, pois, nesse momento, Sílvia e Bruno caminhavam ao meu lado e seguravam as minhas mãos com a confiança própria das crianças.

“Vocês cresceram bastante ultimamente!”, eu comentei. “Na verdade, penso que deveria ser apresentado de novo a vocês. Uma grande parte dos dois eu nunca encontrei antes, não é verdade?”

“Muito bem!”, exclamou Sílvia alegremente. “Este é o Bruno. E é só, pois ele não tem outro nome!”

“É claro que tenho!”, Bruno protestou, olhando com reprovação para a Mestra de Cerimônias. “Eu sou Iluspríssimo!”

“Oh, sim, esqueci”, respondeu Sílvia. “Ilustríssimo Bruno!”

“E vocês vieram me ver, crianças?”, indaguei então.

“Você sabe que a gente disse que ia vir na terça-feira”, lembrou Sílvia. “Na sua opinião, o nosso tamanho é agora o tamanho das crianças normais?”

“Oh, sim, um tamanho bem apropriado para crianças da idade de vocês”, eu respondi, acrescentando mentalmente: “Embora vocês não sejam crianças normais, de maneira nenhuma.” Depois perguntei: “Mas que fim levou a governanta?”

“Se foi!”, Bruno respondeu solenemente. 

“Então ela não era sólida, como Sílvia e eu?” 

“Não. Cê não era capaz de tocar nela, e cê ia passar direto, se esbarrasse nela!”

“Temi que você acabasse percebendo”, disse Sílvia. “Sem querer Bruno a empurrou contra um poste telegráfico e ela se partiu em dois pedaços, sabe. Mas você estava olhando para o outro lado.”

Senti que havia perdido a oportunidade de ver um espetáculo que não ocorre duas vezes na vida: uma babá dividida ao meio!

“A que horas cê sentiu que ela era Sílvia?”, Bruno quis saber. 

“Eu só percebi que ele era sua irmã quando ela realmente se tornou a Sílvia”, eu respondi. “Mas como vocês conseguiram obter a governanta?”

“Foi obra do Bruno”, esclareceu Sílvia. “Era um Flizz.” 

“E como é que faz um Flizz, Bruno?”

“Aprendi com o Professor”, disse Bruno. “Primeiro, cê pega um monte de ar...” 

“Oh, Bruno!”, Sílvia interpôs-se. “O Professor pediu que você nunca contasse para ninguém!” 

“Mas quem fazia a voz dela?”, eu perguntei. 

“Já lhe demos muito trabalho, Senhor. Ela pode andar muito bem neste terreno plano.” 

Bruno riu alegremente quando olhei rapidamente em volta, procurando com ansiedade a minha interlocutora. “Era eu!”, ele então declarou com a sua voz normal.

“De fato, ela pode andar muito bem neste terreno plano”, eu disse. “E eu penso que o terreno plano sou eu mesmo!” 

Nesse momento, havíamos chegado ao “Hall”. “Aqui moram os meus amigos”, eu disse. “Não gostariam de entrar e tomar chá com eles?” 

Bruno deu um pequeno pulo de alegria. Sílvia então disse: “Sim, obrigada. Você adoraria, não é, Bruno? Ele nunca mais bebeu chá”, ela explicou, “depois que saímos do País do Exterior.” 

“E o chá de lá não era nada bom”, disse Bruno. “Bem fraquinho!”  


LEWIS CARROLL foi o pseudônimo literário de Charles Lutwidge Dodgson (1832-1989), um desenhista, fotógrafo, matemático, poeta e reverendo anglicano britânico. Passou toda a sua vida no Reino Unido e tornou-se célebre, principalmente, por ter escrito As aventuras de Alice no país das maravilhas, entre outros livros. O romance Sílvia e Bruno, que o Cândido publica um fragmento, está programado para sair em 2019 pela Iluminuras, em tradução de Sérgio Medeiros.

SÉRGIO MEDEIROS nasceu em Bela Vista (MS) e vive em Florianópolis (SC). Professor na Universidade Federal de Santa Catarina, traduziu ao português, entre outros, o poema maia Popol Vuh (2007), em colaboração com Gordon Brotherston. É autor, entre outros, do livro de poemas A idolatria poética ou a febre de imagens (2017), vencedor do Prêmio da Fundação Biblioteca Nacional.