Romance | Flávio Izhaki

Tentativas de capturar o ar


      Ilustração Bianca Franco
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Eu preciso confessar minha culpa a alguém, filho, e só pode ser para você, que ainda não pode me julgar; eu me julgo de antemão, e nessa confissão me condeno. A execução da pena ficará em suspenso até o dia em que você ler esse texto e souber o que fiz. Até agora, e quando falo agora penso tanto no momento em que escrevo quanto no que você está lendo, possivelmente décadas depois, ninguém sabe o que fiz. Você, mesmo ainda na barriga da sua mãe, e talvez por isso, pode ser o ancião que escuta minha confissão na porta de Quedes. Com o que faço aqui, peço permissão para entrar no local de onde nunca mais poderei sair.

Partilhar o silêncio comigo é algo que não te peço, pois assim estaria te trazendo para dentro do inferno em que estou, e quando uso essa palavra não estou conferindo nenhum sentido religioso conhecido. Meu inferno são as trevas da culpa, do dedo apontado em minha direção, acusatório, e da certeza de que esse é o meu próprio dedo. O que faço nessa confissão com data de validade vencida é aceitar o peso do espelho que reflete minha própria mão me acusando. A condenação jurídica, então, será menor, caduca, prescrita, e caberá a você julgar se a mereço ou não, metaforicamente, continuar pagando pelos meus atos. Pelo que fiz nunca irei para a cadeia, posso afirmar de antemão. Do mundo dos homens estou para sempre protegido. 

Mas antes disso deixe-me contar o quê e como aconteceu, se tive culpa do acontecido ou só dos desdobramentos do ocorrido. Admito: uma pessoa morreu. Não vejo necessidade de nomeá-la porque precisamos que o julgamento seja cartesiano — sou culpado ou não? (e na palavra culpado penso suprajuridicamente, não estou falando em dolo e culpa, mas algo maior, metafísico); e como devo ser tratado após o reconhecimento da ação. 

Fato: atropelei uma pessoa, que faleceu ali mesmo. 

Ninguém viu, ficou sabendo, mas aconteceu. O caso não chegou aos jornais, a polícia não bateu a minha porta, não houve um inquérito propriamente dito pela morte dessa pessoa, quem sabe apenas pelo seu desaparecimento, e nisso também estou envolvido, mas ainda não é hora para que a história seja desdobrada. Uma confissão também precisa de ritmo, que seja encadeada com os fatos, e num primeiro momento apenas confesso que fui o praticante do ato, via o para-choque do meu carro. 

Escrevo-te seis meses depois do ocorrido, e você ainda nem nasceu, está na barriga de sua mãe, inocente. 

Eu, não. Penso constantemente no assunto e adianto-lhe que me condenei, e por isso meu depoimento será, sem dúvida, contaminado pela certeza da necessidade de punição. Qual? Não faço ideia. Mas preciso pagar pelo que fiz e me confessando talvez eu encontre uma possível punição. 

Queria ser cartesiano, e em alguns momentos, durante essa confissão, o serei, afastando-me totalmente do que está sendo narrado. Mas em outras fracassarei e transbordará um sentimento que julgo intrínseco ao homem, a culpa, o sentimento de culpa, e algo menor, a necessidade de perdão. 

Mas não perco de vista que a confissão de minha culpa não a expia. 

No entanto, preciso que seus olhos vejam o que aconteceu para que eu possa sentir vergonha, e daí ser condenado ou perdoado, mesmo punido. Sei que o papel que lhe cabe é inglório, pesado, injusto, mas cada um carrega o céu negro que lhe cabe na alma, e a sua já vem ao mundo turvada por uma noite escura, de um crime que eu, seu pai, cometi e não paguei.

Pois comecemos assim: situando uma data: 10 de agosto de 1988

Um carro compacto corta a estrada auxiliar, de mão dupla, entre Corrêas e Itaipava. Já passa das onze da noite, faz frio, agosto. Os vidros estão levantados ao limite, a calefação ligada, apenas o motorista no veículo. A estrada é escura, sem iluminação pública, o farol, em modulação média, bafeja luz e poeira na pista, uma dança breve de átomos de pó lambendo o capô do carro em movimento, rodopiando pelo vidro e se perdendo na escuridão. O veículo está na pista sentido Itaipava, que do lado esquerdo termina num barranco, morro, que margeia toda a estrada. Do lado direito, na qual o carro avança, um matagal, espesso em alguns pontos, rarefeito em outros.

A estrada não apresenta bom estado de conservação, rachaduras e buracos fazem o carro quicar e perder velocidade, os freios são necessários aqui e ali, reduzir a velocidade para depois aumentá-la. O motorista não corre. A velocidade permitida no trecho é de 70 km/h, e ele não passa de 60 km/h em nenhum momento. Em dois ou três pontos, três para ser mais exato, é obrigado a frear completamente para transpor um quebra- -molas construído ilegalmente pelos moradores das poucas casinhas da região. O motorista não sabe da existência das casinhas da região, nunca andou naquela estradinha, nunca mais viria a cruzá-la e, de mais a mais, as luzes das casas já estão apagadas àquela hora.

Há uma beleza singela no carro solitário que invade a escuridão e o silêncio de uma estrada deserta. Pode-se dizer que aquele veículo autentifica a existência daquele corredor de concreto no meio do nada, suas rodas deslizam na palma da mão do asfalto, criando ranhuras, linhas de expressão, sinais de velhice, memória. Mesmo uma estrada auxiliar parcamente usada tem memória, e nem todo sinal de velhice carrega uma lembrança boa. Aqui e ali uma freada brusca tatua um susto escuro na superfície naturalmente cinza, aqui e ali uma freada brusca preconiza uma lágrima de sangue no rosto da estrada.

Tudo em volta se move quando o carro passa, a marola de vento do rabo do automóvel baloiça as plantas, as folhas, quebra o silêncio ancestral do que já não é mais intocado, puro. O motorista tem o toca-fitas ligado, música clássica, “Prelúdio e fuga”, de Bach, mas o som não vaza. Dentro do carro, apenas música. Do lado de fora, o barulho do carro. Antes, dos grilos, sapos. Depois que ele passa, dos grilos, sapos. Durante é apenas um veículo fazendo zum no vento, as rodas levantando pedrinhas soltas.

O carro tem vidro fumê. O motorista não escolheu nublar sua vista com Insulfilm, o veículo foi comprado usado, a vendedora alardeou os benefícios de sua utilização no Rio de Janeiro, especialmente com mulher no volante, e ele assentiu, “Deixa então”, disse, pensando, a esposa grávida dividiria o carro com ele, a cidade de fato é perigosa, não seria o Insulfilm que mudaria muito, mas achou melhor deixar, menos uma razão para acelerar seu coração quando o telefone tocasse tarde ou cedo demais. 

Dentro daquela célula anatomicamente construída o motorista está só. Fora do carro em movimento, o mundo, mas um mundo que parece não existir, cercado de escuridão e silêncio, de vegetação e asfalto. Se ele fechar os olhos agora, com o carro em movimento, com a música em movimento, pode sentir que o mundo acabou. Mas quando seus olhos beliscarem a luz dos faróis no próximo segundo, acordados por um barulho sujo, não ritmado, jamais um Bach, ele saberá que o mundo existia lá fora, mas que ele não viu. 

Flávio Izhaki já participou de oito antologias de contos e é autor dos romances De cabeça baixa (2008) e Amanhã não tem ninguém (2013). O fragmento que o Cândido publica faz parte de Tentativas de capturar o ar, longa narrativa inédita que a Rocco publica durante o mês de julho. Nasceu e vive no Rio de Janeiro (RJ).