Romance

 

 

Além do cu do mundo

Os autores José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta voltam a escrever novo romance em parceria. O Cândido publica com exclusividade fragmento do livro, que ainda não tem editora nem data de publicação

 

alemdocudealmeida


João Missel Gigante


Tudo está em trevas e silêncio. Então surge uma pequena luz. Poderia ser um vaga-lume ou um espírito. Mas é o contrário dos dois. É um lume que vaga e um homem. João Missel Gigante carrega uma tocha enquanto atravessa charcos, pisa em pés de mandioca, afasta ramos de trigo com os braços e atravessa o corredor de uma plantação de milho.

Tudo dentro do breu, como se aquela fosse a única luz do mundo.

Três léguas depois ele chega ao rio dos Tamanduás. Fosse hoje, estaria na Avenida do Estado, em frente à igreja pentecostal Deus é Amor, que é enfeitada com um arco-íris de gosto duvidoso e possui capacidade para sessenta mil dizimistas. Como está em 1648, ele se vê apenas diante de uma colina. Lá em cima brilha a luz de umas poucas lamparinas a óleo de mamona. É a vila de São Paulo, pequeno povoado de duas mil almas.

João apaga a tocha, se inclina sobre uma bica e bebe um gole d’água. Então, de repente, sente algo cutucando seu braço. Pensa que é a língua de um tamanduá. Mas é o dedo de um amigo.

Catarro

— Quase me mataste de susto,

Catarro.

— Essa era a ideia.

— Canalha!

— Chegou o dia.

— Chegou.

— Trancaste bem a casa?

— Não tenho nada para roubarem.

— Estás com medo?

— Não. E tu?

— Estou é com sono.

— Não dormiste?

— Eu e a mulher ficamos nos despedindo a noite toda.

— Ela chorou quando te viu partir?

— Sorriu. Não sei se pela boa noite ou porque ficará uns meses livre de mim.

— Quero ver como vais fazer todo este tempo.

— Dá-se um jeito, dá-se um jeito... — disse Catarro beijando a mão direita.



Boaventura, Bandarra e outros que não interessam

João Missel e Catarro avançam pela Subida de Tabatinguera, saltam sobre restos da antiga muralha da vila e passam ao lado da Igreja de Nossa Senhora do Carmo.

Se tivessem entrado, veriam dois padres no interior dos confessionários. Um deles é gordo, tem mais de cinquenta anos, a calva lisa e a cara pelada; seu nome é Bartolomeu Boaventura. O outro aparenta trinta anos; é alto, magriço, usa barba, um corte de cabelo em forma de cuia e chama-se Simão Bandarra.

Em frente a eles há uma fileira de fiéis. Como podem morrer em breve, querem garantir um lugar no céu. Assim,

*João Francizco Saavedra confessará que se curou fazendo rezas para deuses índios;

*Juvenal Cascudo confessará que tem gosto em falar palavras impuras durante o coito;*André Saraiva confessará que é o verdadeiro pai do filho de Gregório de Uales,

*Apolonio Aleixo confessará que é o verdadeiro pai do filho de Gregório Uales;

*Gregorio de Uales dirá que roubou seus sócios André Saraiva e Apolonio Aleixo nas contas;

*Domingos Roiz Deniza confessará que não paga impostos nem dízimos à igreja, e que acha tais cobranças uma canalhice;

*João das Vacas confessará que gosta de trepar com éguas, cabras, porcas e até mesmo com galinhas, principalmente as da raça d´angola;

*Manoel Homem Albernás confessará que matou o irmão para ficar com a herança de seu pai;

*Juzarte de Campos Carvajal confessará que fez dívidas com seus amigos por achar que não voltará vivo da expedição;

*e José de Paris confessará que comete o pecado solitário pensando em freiras, ao que padre Bandarra o absolverá, dizendo que isso é coisa comum em São Paulo e que, se fosse deixar de joelhos todos os que fazem isso, não sobraria lugar na igreja.

Encerradas as confissões, os padres vão até a sacristia. Tiram seus hábitos e começam a se vestir.

— Preciso limpar a mente depois de ouvir tantos pecados — diz padre Bandarra cutucando o ouvido com o dedo mínimo.

— Pense que o arrependimento é uma semente. Se a lançarmos na terra da fé e se a regarmos com boa doutrina, ela pode crescer e se tornar uma árvore de Cristo.

— Verdade. E, de quebra, ficamos sabendo dos mexericos da vila.

— Tem prazer nisso?

— Gosto de histórias.

— Na viagem verás histórias escritas com a pena da galhofa, mas usando tinta de sangue.

— São as melhores.

— Para serem lidas, não vividas. Já guardaste as coisas no baú?

— Um incensório, um círio, os cálices e o livro de horas.— A imagem de Nossa Senhora do Carmo?

— Na outra bolsa.

— Ótimo. Lá vamos nós de novo.

— O senhor vai de novo. É minha primeira vez.

— Verás que é como qualquer viagem: vai-se e volta-se. Quer dizer, nem sempre se volta, mas assim é a vida, um ir e vir sem fim até o dia em que

apenas se vai.

Tamarutaca

Não longe da igreja, uma tropa amontoa-se na rua de Manuel Paes Linhares. Os índios chamavam esta rua de Caminho de Inhapuambuçu porque estava mesmo numa “colina grande”, mas logo ela teria o nome mudado para rua do Rosário, em devoção a Nossa Senhora; depois para rua da Imperatriz, em honra à família Imperial, e finalmente para XV de Novembro, em homenagem à república, o que mostra que, mesmo sendo reta, é uma rua que curva-se ao gosto dos tempos.

Fosse hoje, os guerreiros estariam passando em frente à Drogaria Onofre (onde poderiam comprar repelentes), à lanchonete Flor da XV (onde poderiam comer um misto quente), à Bolsa de Valores (que, assim como esta expedição, é um modo selvagem de ganhar dinheiro), à livraria Paulinas (que dificilmente venderá este livro), ao sebo Antônio Prado (onde talvez seja encontrado), à Engraxateria (onde os poucos que não caminham descalços poderiam embelezar as botas) e por agências dos bancos do Brasil, Santander, Itaú, Safra, Bradesco e Citibank, bancos de emprestar numa rua em que faltam bancos de sentar.

Mas nada disso existe ainda. Aliás, estes homens nem fazem ideia de como será São Paulo daqui a 366 anos, assim como não sabemos o que será da rua XV de Novembro em 2380, pois ela tanto pode estar cheia de carros voadores, quanto em ruínas povoadas por baratas.

O que existe, por enquanto, é uma picada de terra com esparsas casas de pau-a-pique. Neste dia, porém, ela está cheia. Mulheres, velhos, crianças e covardes dão adeus a mais de duzentos homens brancos e mais de mil índios e mamelucos que transitam com ares de quem vai à guerra. Apenas um em cada quinze voltará vivo e, para ser um destes, Bento Tamarutaca encomendou um patuá. Na bolsinha de tecido vermelho, uma índia enfiou um dente de alho, um punhado de pó de chifre de bode, um olho de piapara banhado em água benta e a oração de São Jorge.

Bento Tamarutaca tem cabelos lisos e olhos rasgados, visto que a mãe é da nação guaianá. Do pai português herdou a tez clara e uma barbela que lhe empresta o ar nobre. É um mameluco, palavra que vem do árabe mamluk e quer dizer escravo, pajem, criado. Mas isso Tamarutaca não é, já que seu pai, que era dono de sua mãe, assim que o tomou nos braços, disse: “Tem o meu nariz. Vou dar-lhe a liberdade e criá-lo como um filho legítimo. Ou quase.”

José Roberto Torero nasceu em Santos, em 1963. É autor do best-seller O Chalaça. Em 2012, venceu o Prêmio Paraná de Literatura, na categoria contos, com Papis et circensis. Vive em São Paulo (SP).

Marcus Aurelius Pimenta nasceu no Brás, na cidade de São Paulo, em 1962. Jornalista e roteirista, escreveu peças de teatro e documentários. Em parceria com José Roberto Torero, escreveu os romances Terra papagalli e Os vermes, além das peças Omelete e Romeu e Julieta: segunda parte. Vive em São Paulo (SP).