Reportagem

Escrevendo com chuteiras

Presente no imaginário nacional, o futebol também desperta cada vez mais o interesse dos escritores, a atenção do público leitor e o mercado editorial como um todo — há até quem considere que livros sobre o esporte podem se tornar porta de entrada para o universo da leitura


Murilo Basso


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O Jornalista e cronista Mario Filho, irmão de Nelson Rodrigues, é autor de O negro no futebol brasileiro, 
obra lançada em 1947 e que foi pioneira em ressaltar a importância dos descendentes de africanos para
 a originalidade do esporte mais popular do país.


O treinador Renê Simões acredita que, mais difícil do que escrever um livro sobre futebol, é encontrar um brasileiro que não tenha interesse pelo assunto. “Então, se você já tem o público, está com meio caminho andado para que o livro [sobre futebol] possa fazer sucesso”, diz o autor de Do caos ao topo, sobre a trajetória do Coritiba na Série B de 2007, e de O dia em que as mulheres viraram a cabeça dos homens, a respeito da saga da seleção feminina de futebol nas Olimpíadas de Atenas em 2004. 

Onipresente no imaginário dos brasileiros, o futebol também invadiu o mercado editorial. Uma consulta rápida no site de qualquer livraria mostra diversos títulos sobre o tema, dos já clássicos Futebol ao sol e a sombra, de Eduardo Galeano, e O negro no futebol brasileiro, de Mario Rodrigues Filho, a obras mais recentes, como Guia politicamente incorreto do futebol, de Leonardo Mendes Junior e Jones Rossi, e Glória roubada — o outro lado das copas, de Edgardo Martolio. 

De acordo com Simões, não é difícil para um livro sobre o futebol obter sucesso. Ele, inclusive, apresenta uma receita para um autor marcar o “gol”: “O segredo é ter a capacidade de fazer o leitor se inserir na cena: imagine um torcedor fanático ser transportado para dentro de um vestiário, para uma final de campeonato, para a cabeça de um treinador minutos antes de começar uma partida: é algo realmente fascinante para aqueles que amam o esporte.”

 Essa “fórmula” é a ideia que sustenta O Botafogo de 95, lançado no ano passado pelo jornalista Thales Machado. Para o autor, não se trata apenas de um livro sobre um título, mas sim um relato sobre histórias esquecidas. “Tem algo para ser contado além do trivial, além do ‘Botafogo ganhou do Santos em 1995 e foi campeão brasileiro’”, diz. 


Acesso à leitura 
Autor de O inverno da esperança: como a Copa do Mundo de 1950 chegou ao Brasil e por que ela partiu o coração do país, o jornalista Maurício Brum tem uma tese: livros a respeito de futebol podem ser uma porta de entrada para o universo da leitura. “Quantos meninos que correm com uma bola nos pés e acham literatura um tédio não pensariam diferente se o livro em questão fosse sobre um tema que lhes é
tão caro? Em vez do insuportável A moreninha [romance de Joaquim Manuel de Macedo], ofereçam nas escolas os Contos de futebol, do Aldyr Garcia Schlee. Não tenho dúvidas de que esse é um caminho para formar leitores”, argumenta. 

Marcos Neves, autor das biografias dos jogadores Heleno de Freitas, Alex e Renato Gaúcho, concorda com a tese de Brum. “Muitas crianças leem apenas por obrigação. E, para motivá- -las a ter esse contato com os livros, poderíamos apresentar obras sobre futebol. Afinal, lendo a história do seu clube ou de seus ídolos, elas poderiam desenvolver o hábito da leitura”, afirma. 

Maurício Brum analisa que esse boom de livros sobre futebol não diz respeito apenas ao fato de haver mais pessoas escrevendo sobre o tema, mas ao fato de que há mais espaço para difusão de textos a respeito desse esporte. Daniel Cassol, coautor — ao lado de Douglas Ceconello — do livro Inter hoje & sempre lembra que a ampliação de espaço para o futebol no mercado editorial também teve uma ajuda do meio acadêmico. “Com isso, o esporte vem deixando de ser um tema menor, sendo mais estudado por pesquisadores de diferentes áreas e gerando mais obras publicadas”, comenta Cassol.

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Trajetória turbulenta
Daniel Cassol cita, entre tantos títulos disponíveis a respeito do futebol, dois marcos, um diferente do outro, ambos fundamentais: Estrela solitária, a lendária biografia sobre Garrincha escrita por Ruy Castro, e O segundo tempo, ficção de Michel Laub,que apresenta a história de um adolescente que precisa contar ao irmão mais novo que a família deles está se esfacelando — isso em meio ao chamado Grenal do Século, como ficou conhecido o clássico de 12 de fevereiro de 1989, entre os os dois times gaúchos.

Mas, realmente, antes do surgimento de Estrela solitária e O segundo tempo, entre tantos títulos a respeito do futebol, muita bola rolou dentro, e fora, dos campos brasileiros desde que o esporte chegou ao Brasil no fim do século XIX. Apenas na década de 1930 começariam a acontecer os primeiros flertes entre o futebol e os escritores, que aos poucos, mais irreversivelmente, começariam a pensar e a tentar interpretar o Brasil a partir do esporte.

“Essa sinergia é fundamental. Afinal, qualquer assunto, da política à economia, pode ser traduzido à luz usando o futebol como metáfora”, avalia o professor adjunto dos programas de pós-graduação (mestrado e doutorado) em História e Educação Física da Universidade Federal do Paraná (UFPR) André Mendes Capraro.

Fora dos gramados e dos estádios, no início do século XX, a literatura brasileira também atravessava um período de transição: por um lado, influência das tendências artísticas originárias do século XIX e, do outro, a influência modernista, proporcionada pela Semana da Arte Moderna de 1922. “Em sua esfera particular, a produção literária tentava estabelecer relação com o social, a política e a realidade regional brasileira”, completa Capraro. 

Apesar de tal cenário sugerir que o futebol se tornasse assunto e até mesmo personagem de obras literárias, nem todos enxergavam o esporte positivamente. Graciliano Ramos e Lima Barreto se opunham à sua popularização. Barreto chegou a afirmar que o futebol era um mero catalisador de conflitos, que servia apenas para desperdiçar dinheiro público. “Um jogo de pés que concorre para a animosidade e a malquerença entre os filhos de uma mesma nação”, disse o autor de Triste fim de Policarpo Quaresma. Já Graciliano, em sua crônica “Traços a Esmo”, carimbou: “Futebol é fogo de palha”. Para ele, o país não tinha vocação para o esporte, e — sim — para a rasteira.


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Em Futebol ao sol e à sombra, o uruguaio Eduardo Galeano problematiza 
o futebol a partir dos conflitos e das paixões que o esporte desperta nas 
pessoas. O livro também traz ao leitor um olhar apurado de craques como
Pelé e Di Stéfano.


Memória & imagem
Quando o uruguaio Horacio Quiroga escreve um conto como “Juan Polti” — em que o personagem é inspirado em Abdón Porte, jogador do Nacional de Montevidéu que se suicidou em 1918, no estádio do clube, porque acreditava que não podia mais jogar —, ele não está apenas impedindo que a tragédia de Abdón seja esquecida, mas também revelando como o futebol era significativo na vida uruguaia, a ponto de fazer um homem tirar a sua própria vida — este, aliás, é considerado o primeiro conto sobre futebol publicado na América Latina. 

Quando Sérgio Sant’Anna escreve um conto como “Na boca do túnel”, sobre as reflexões de um treinador do São Cristóvão enquanto leva 7x1 de um grande do Rio no Maracanã, ele está narrando muito mais do que uma rodada insignificante do Campeonato Carioca: na voz do treinador são colocados pensamentos sobre a cidade do Rio de Janeiro, o futebol como instrumento de ascensão social e a cultura de bairro em uma capital. 

Nesses instantes, a literatura permite que o futebol seja explorado em todos seus aspectos, sejam eles sociais, humanos e culturais. “É possível olhar para além do jogo em si — ainda que o jogo em si também possa ser explorado pela literatura. Ela ajuda o futebol a sair de si mesmo, tornando-o eterno”, raciocina Maurício Brum, o que leva a uma frase, de Luis Fernando Verissimo: “o futebol pode não ser uma metáfora perfeita da vida, como querem seus poetas, mas pode- se recorrer a ele para símiles e imagens que nos ajudam a interpretá-la.” 


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“O Maracanazo é a grande história,
inegavelmente. Mas, como tentei mostrar no
meu livro, existe essa outra, menos lembrada,
que é o próprio processo que levou o Brasil a
se tornar a sede da Copa do Mundo. O país
tinha sede de notoriedade no cenário mundial,
dentro e fora do esporte, e a Copa surgiu
como o momento perfeito para conciliar
as duas coisas”, Mauricio Brum, autor de
O inverno da esperança: como a Copa do
Mundo de 1950 chegou ao Brasil e por que
ela partiu o coração do país.







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“Semelhança entre os três há apenas a questão do talento e que
não tiveram, digamos, sorte, em Copas do Mundo. O Heleno teve
sua melhor fase durante a II Guerra Mundial, então em 1942 e
1946 não houve Copa. O Renato, em seu melhor momento, 1986,
foi cortado às vésperas por causa de uma noitada - ele participou
em 90, mas o ataque era Muller e Careca, com Romário na
reserva, então foram apenas sete minutos em campo. Já o
Alex poderia ter ido para três Copas (2002, 2006 e 2010), mas
não foi a nenhuma. Esse é o ponto em comum entre os três,
afinal, o Heleno era de alta classe, formado em direito; Renato
era um mulherengo assumido, um brigão, enquanto o Alex era
calmíssimo, mais família”, Marcos Neves, autor das biografias dos
jogadores Alex, Heleno de Freitas e Renato Gaúcho.








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“O livro narra os feitos mais relevantes da história colorada
em cada dia do ano. Sempre havia alguma informação
disponível, o que inclusive torna o livro interessante.
Algumas datas são repletas de feitos relevantes do Inter,
principalmente em dezembro, mês em que ocorreram
partidas decisivas e conquistas dos títulos nacionais dos
anos 70, da Copa do Brasil de 92 e do Mundial em 2006.
Aliás, no livro não nos negamos a publicar as tragédias
coloradas — nós, colorados que vivemos a longa noite
dos anos 1990, achamos que é na derrota que se forja o
torcedor”, Daniel Cassol, coautor de Inter hoje & sempre.








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“Quis dar um título sugestivo para encorajar as mulheres
a ver que elas têm a capacidade de virar o jogo. Elas são
capazes de quebrar barreiras, como muitos são capazes
de fazer. A surpresa ficou nesses dois pontos: primeiro no
título e depois o tema, sobre futebol e ainda mais futebol
feminino”, Renê Simões, autor de O dia em que as mulheres
viraram a cabeça dos homens e de Do caos ao topo.










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“É um título muito marcante para mim, como criança
torcedora de futebol. Tinha oito anos em 95, talvez este
seja o ano formador do meu caráter como torcedor.
Tanto que, no lançamento do livro, uma menina disse
‘Agora vou poder afirmar que 1995 foi o ano mais feliz da
minha vida’. Perguntei o por que ela não poderia fazer tal
afirmativa antes do livro, e ela respondeu: ‘1995 foi o ano
mais feliz da minha vida, mas eu nasci em 2000’”, Thales
Machado, autor de O Botafogo de 95.