Perfil do Leitor | Jorge Du Peixe

Ideias e possibilidades

Fã de ficção científica e literatura fantástica, o vocalista da Nação Zumbi fala dos livros que fizeram a cabeça dos fundadores do movimento mangue beat


Omar Godoy

Fabio Piva / Red Bull Content Pool
Jorge du Peixe


Para cada show que a gente faz em outra cidade, são quatro horas de viagem, sete no hotel e só uma hora e meia em cima do palco. Então sempre estamos lendo alguma coisa”, explica o vocalista da Nação Zumbi, Jorge Du Peixe. Conhecido por escrever letras que evocam imagens, o pernambucano bebe muito na fonte do cinema e dos quadrinhos, mas afirma que a literatura também é uma de suas inspirações — especialmente a de ficção científica.

“Ficção científica é a literatura de ideias, de possibilidades. Hoje vivemos um certo deslumbramento com a tecnologia digital, mas caras como Isaac Asimov, Philip K. Dick e William Gibson já haviam mostrado, lá atrás, como seria o mundo de hoje”, diz. Ele lembra que começou a se interessar pelo tema ainda na adolescência, quando trocou os gibis de super-heróis pelas HQs adultas publicadas em revistas como Heavy Metal e Animal. “Dos quadrinhos para os livros, foi um passo natural. Até então, eu só lia o que era indicado pela escola.”

Ainda no colégio, conheceu um clássico que considera marcante em sua formação: A metamorfose, de Kafka. “Eu tinha 16, 17 anos e ouvia muito falar desse livro. A forma como ele retrata a condição humana, aquele clima meio grotesco... Me impactou bastante e ainda hoje me fascina”, afirma. O gosto pela ficção científica e pelo universo absurdo de Kafka o empurraram para a literatura fantástica, que também influencia seu trabalho como letrista. O chileno Alejandro Jodorowski (mais famoso por sua obra cinematográfica) e o britânico Neil Gailman (egresso dos quadrinhos) são seus autores preferidos no gênero.

Outra fase de descobertas literárias aconteceu entre 1986 e 1992, quando Jorge José de Lira (seu nome de batismo) trabalhou no aeroporto do Recife, como funcionário da extinta companhia aérea Vasp. Ele conta que as jornadas eram longas, e muitos dos intervalos foram preenchidos com visitas à livraria do lugar. “Também escrevi muitas letras ali”, diz Du Peixe, que nessa época já fazia parte do grupo fundador do movimento mangue beat, ao lado de figuras como Chico Science (primeiro vocalista da Nação Zumbi, morto em 1997), Fred Zero Quatro (líder da banda Mundo Livre S/A), Renato L (jornalista) e H.d. Mabuse (designer e artista visual).

“Um dos nossos pontos de encontro era a loja Discossauro, onde trocávamos, além de LPs, muitos livros”, conta o músico, hoje com 50 anos. Segundo ele, Mabuse era o mais ligado em literatura, e o colocou em contato com as obras de autores como Raduan Nassar, Rubem Fonseca, Nelson Rodrigues, Voltaire, João Cabral de Melo Neto. Mas nada “bateu” tão forte na turma quanto a beat generation. “A prosa espontânea do Jack Kerouac, os cut ups do Burroughs... Até o nonsense daquela geração influenciou a gente. O próprio beat do nome mangue beat pode ter vindo daí”, diz.

A literatura regional também foi incorporada pelos “caranguejos com cérebro” — título de um manifesto escrito por Fred Zero Quatro em 1992 e que abriu caminho para o movimento. Especialmente a produção dos cordelistas e do escritor Josué de Castro, autor de livros como Geografia da fome, Geopolítica da fome, Sete palmos de terra e um caixão e Homens e caranguejos. “O Chico já fazia essa metáfora da lama do mangue com a fertilidade, do homem com o caranguejo, quando alguém perguntou se ele conhecia a obra do Josué de Castro. Ou seja: ele conheceu mais tarde, mas se identificou e acabou abraçando aqueles conceitos”, explica.

Entre os contemporâneos, ele cita os brasileiros Luiz Ruffato e João Paulo Cuenca e ainda destaca Linha M, mais recente livro da cantora e poeta norte-americana Patti Smith. Lançada em 2015 nos Estados Unidos, a obra traz crônicas e ensaios enxutos, escritos pela artista em cafés de várias cidades do mundo. “São fragmentos sem ordem, em que ela discorre sobre muitos assuntos, mas de uma riqueza filosófica impressionante”, define. “Esse tipo de texto mais curto me agrada. Se eu escrevesse um livro, acho que seria assim. Já recebi um convite para publicar as letras da Nação com algumas ilustrações que faço, mas o projeto acabou não indo para frente”, completa.

Quanto ao momento da Nação Zumbi, Du Peixe conta que a banda acaba de encerrar a turnê comemorativa dos 20 anos do disco Afrociberdelia e se prepara lançar um novo registro, só com versões para músicas de seus ídolos (Roberto Carlos, Gilberto Gil, Prince, David Bowie). O grupo também ensaia para se apresentar na próxima edição do Rock in Rio, em setembro, ao lado de Ney Matogrosso.

Antes de terminar a conversa, ele lembra, no susto, de um último “predileto da casa”. “Quase esqueci do [Julio] Cortázar! O jogo da amarelinha é muito importante para mim. Pela sutileza, pela identidade única. Eu não poderia dar essa entrevista e não falar desse livro.”