Pensata | Luiz Rebinski

Duas vozes

A coluna Pensata abre espaço para que autores, tradutores, jornalistas e pesquisadores reflitam sobre temas ligados à literatura, livro e leitura. Nesta edição, Luiz Rebinski sugere que uma voz literária própria pode se transformar em uma armadilha para o autor.

 

A chamada voz própria é o que todo escritor almeja. Mais do que vendas, é o que um artista de verdade quer. É o que o crítico espera: encontrar um criador com dicção original para avaliá-lo. É o que todo leitor necessita, um autor singular para se deleitar. Muitos escritores conseguem, a esmagadora maioria não.

Mas quando esse brilho surge, a mágica acontece, o que fazer? Para um autor é como ganhar na loteria, só precisa administrar, continuar na mesma toada e receber os louros da glória. Será? 

A voz literária, em muitos casos, pode se transformar em uma receita perigosa, que mantém o escritor enclausurado na própria criação. Vou dar o exemplo de dois autores de língua inglesa que admiro, mas que seguiram caminhos diferentes nessa questão.

O escocês Irvine Welsh virou uma celebridade literária em 1993, quando lançou um livro underground que já trazia estranheza no próprio título: Trainspotting (uma gíria intraduzível, algo como perder tempo com banalidades). O livro fez tanto sucesso que anos depois entrou em uma curiosa lista de títulos que os jovens britânicos mentiam já ter lido, mas que na verdade só haviam visto a adaptação do romance para o cinema, dirigida por Danny Boyle (aliás, um grande filme). Ele estava ao lado de clássicos como Dom Quixote. Isso dá a dimensão de culto que o livro ganhou, ainda que por vias tortas no caso da pesquisa.  

Com uma trupe encantadora de personagens (Renton, Sick Boy, Franco Begbie e Spud, entre outros), Welsh criou um verdadeiro livro geracional, com uma linguagem desabrida, que conjugava jogos de palavras, gírias, palavrões, cultura livresca e lixo midiático. Tudo embalado por drogas que davam sentido à vida de jovens da classe média baixa de Edimburgo, cenário do romance. Além disso, o livro trazia uma espécie de manifesto contra a vida burguesa de classe média padrão (que é igual em todo lugar, seja em Curitiba ou Londres), que os personagens, todos à margem, lutavam contra. Então era muita coisa legal em um só livro, que teve o merecido sucesso.

 

 Bárbara Scarambone

Ilustração de Barbara Scarambone

 

 

Logo depois da apoteótica estreia, Welsh lançou livros de contos, novelas e outros romances. Todos reafirmando que ele realmente era um autor muito criativo e imaginativo. Mas nenhum dos livros tinha o brilho da estreia. Então, em 2002, o autor lançou uma sequência de Trainspotting. Pornô mostrava, 10 anos depois, o que tinha acontecido com a turma de (ex) amigos. Para falar a verdade, acho esse calhamaço de quase 500 páginas melhor, em muitos sentidos, que a obra inicial. Welsh, mais experiente, amarra diversas histórias e personagens em uma narrativa vibrante e comovente. O mesmo acontece com Skagboys, lançado em 2012 (mais um ciclo de uma década), em que é mostrada a raiz dos problemas: como jovens promissores se transformaram em desajustados sociais convictos. O humor corrosivo e a linguagem ágil estão de volta, um tipo de narrativa moldada à imagem dos personagens de Welsh. Nem a grande extensão do romance é capaz de tirar o leitor do prumo.

Não que os outros livros do autor não tragam sua marca narrativa (o livro de contos Se Você Gostou da Escola, Vai Adorar Trabalhar tem excelentes momentos), mas ela é diluída em histórias que às vezes parecem distantes do métier do autor: é o caso de livros como Crime, que tem um policial escocês de férias na Flórida como protagonista (espécie de obra irmã de Filth, que virou filme), e A Vida Sexual das Gêmeas Siamesas, narrado na voz pouco convincente de uma mulher (apesar de a história ter algum brilho, mesmo sendo fantasiosa demais em muitos trechos). 

Os romances mais recentes, que se passam em Miami, onde o autor vive atualmente, são fracos em sua essência. Ou seja, o melhor de Welsh é quando ele retoma a turma do Leith, o bairro portuário onde se passa a trilogia iniciada com Trainspotting. Talvez não seja culpa de Welsh, pois ele até tenta outros caminhos, como o romance policial. Isso, portanto, pode ter mais a ver com a própria essência do autor.  

Já o britânico Martin Amis tomou um rumo totalmente oposto em sua carreira. Desde a publicação de seu primeiro sucesso, o romance Grana, em que pela primeira vez se desgarra da influência literária do pai, o também escritor Kingsley Amis, Martin vem construindo uma bibliografia marcada pela mudança constante de rota. Do hedonista e totalmente inescrupuloso John Self, protagonista de Grana, a Josef Stalin, no romance Koba the Dread (um de seus fracassos de crítica), ele se especializou em personagens complexos, experimentado formatos e temas de modo incessante. Nem mesmo a influência narrativa de seu mestre literário, Saul Bellow, se manteve firme diante da inquietação artística do inglês.

Em A Informação, um de seus melhores livros, ele se lança no caos pós-moderno, se aproximando da literatura de Don Dellilo, outro inquieto por natureza. A impressão que se tem é que Amis nunca quer se repetir, apesar de lidar com alguns temas recorrentes em sua obra, como sexo e política. Aliás, sua atuação como comentarista em jornais certamente dá a medida de que é um intelectual cujo campo de visão é amplo (mesmo que muitas de suas análises dividam opiniões). 

Mas um dos livros mais representativos desse caleidoscópio criativo é o irreverente Lionel Asbo — Estado da Inglaterra, em que as veredas literárias de sua obra se encontram em um romance hilário, com o famoso humor inglês dando as caras na história de um hooligan (Lionel) acostumado a frequentar a cadeia. Inesperadamente, ele ganha na loteria e vê sua vida dar uma guinada grande, mas ainda assim insuficiente para mudar sua essência e de sua problemática família. Uma fábula moderna, cujo humor é o fio condutor para chegar a assuntos sérios. Algo que o próprio Irvine Welsh fez em seus melhores momentos. A diferença é que Amis encarnou a persona do escritor inquieto e ambicioso, enquanto Welsh tomava mais um pint em um pub do Leith.


LUIZ REBINSKI é jornalista e autor do romance Um Pouco Mais ao Sul. Editou o Cândido desde sua criação, em 2011, até junho de 2019.