Memória literária

Uma farsa sobre a província

Lançado há 20 anos, Como eu se fiz por si mesmo, de Jamil Snege, mistura memória e ficção para falar sobre o tempo e a geração da qual o autor fez parte


Luiz Rebinski


tex

Foto: Daniel Snege

Muito antes do termo auto-ficção se tornar tão presente na literatura brasileira, o escritor Jamil Snege cometeu uma obra que, em muitos aspectos, antecipou recursos que seriam usados à exaustão por escritores brasileiros contemporâneos. Trata- se de Como eu se fiz por si mesmo, um livro tão interessante quanto de difícil classificação. Memória, ensaio, auto- -narrativa, poesia em prosa, há de tudo um pouco no oitavo título do escritor paranaense, lançado em 1994.

Assim como os livros anteriores de Jamil, Como eu se fiz por si mesmo não reverberou para além de um círculo restrito de leitores de Curitiba. Mas fez a cabeça daqueles que o leram. Conhecido pela ojeriza ao esquema editorial, Jamil fez da auto-publicação um ato admirável. O que não é pouco, pois a prática costuma ser mal vista até por leitores. O escritor deveria ter lá suas razões para preterir o mercado (o próprio título do livro já é bastante revelador), mas certamente a qualidade de sua prosa garantia seu desdém às editoras.

Por isso, conta Fábio Campana, foi tão difícil convencer Jamil a publicar Como eu se fiz por si mesmo. O livro, que Campana classifica como uma “ficção de memória”, saiu pela Travessa dos Editores depois de quase dez anos de trabalho. “Essa narrativa foi escrita uma década antes. Eu vivia insistindo para que a publicássemos, o Jamil relutou muito, mas em 1994 o convenci. O Turco era extremamente perfeccionista, sempre tentando encontrar a melhor forma para o texto.”

Mas o que faz de um livro autorreferente, quase memorialístico, escrito por um autor ainda obscuro ser relevante hoje? Como eu se fiz por si mesmo é uma prosa anárquica em muitos sentidos. As lembranças do autor, da tenra idade até a vida profissional, são submetidas a uma calculada bagunça literária, onde reminiscências da adolescência são permeadas por espasmos de prosa poética e flashs oníricos. O que afasta o livro de qualquer onanismo literário ou algo como “lamentações de um autor que não teve o talento reconhecido”.

Personagem e inconfidências

Certo dia o tradutor e escritor Ernani Ssó recebeu em casa Como eu se fiz por mim mesmo. O livro foi enviado pelo próprio Jamil por sugestão do poeta e crítico Paulo Hecker Filho. Ssó até então não conhecia a obra do escritor curitibano. Hoje, mais de 20 anos depois daquela leitura, o livro ainda parece bastante fresco na memória do escritor gaúcho. “Conhecer um escritor, num mundo cheio de redatores, não é moleza, não. Fiquei impressionado com o Jamil, a fluência dele, a ironia, o bom humor, a grande naturalidade. Mas, acima de tudo, o que marcou foi a criação do personagem Jamil Snege”, diz o tradutor de Dom Quixote.

À prosa extremamente clara e econômica, Jamil acrescenta doses generosas de um humor ácido, corrosivo, que não poupa nada nem ninguém, onde, claro, não há espaço para autocomiseração. Assim ele vai narrando a infância de classe média baixa, o primeiro emprego na “baiúca” do pai (uma confecção de blocos para jogo-do-bicho), os anos no exército, as experiências no jornalismo e o circuito quase amador da propaganda profissional da Curitiba dos anos 1970.

Em meio à invenção do personagem, é possível identificar traços da personalidade do autor, segundo as lendas que ainda correm em Curitiba após dez anos de sua morte. “Desde cedo desenvolvi o humor, a ironia, o cinismo e passei a usá-los sem piedade. Ainda que de forma intuitiva, aprendi a identificar as instâncias na qual se manifestava a ideologia dominante”, diz um dos trechos reveladores de Como eu se fiz por si mesmo.

A oração acima seria seguida à risca na vida e na literatura do autor. O que quer dizer que o tratamento aos outros personagens do livro se manteve o mesmo: ninguém foi poupado. Sobre o hoje consagrado autor de O filho eterno, com quem Jamil teve grande interlocução e foi tratado como guru, escreveu: “Cristovão Tezza é um adolescente pentelho, gravidozinho de literatura, em busca de um guru”. E confessava, com o ego inflado, que gostava de exercer o guruato. “As conversas com o discípulo instigavam-me.”

Como Tezza, muitas outras figuras que conviveram com o Turco viraram personagens do livro. O próprio Fábio Campana aparece em um dos capítulos. Segundo Jamil, o editor da Travessa teria feito um pacto com Dalton Trevisan envolvendo o livro Sonata ao luar, que o Vampiro escreveu e renegou ainda nos anos 1940: a cada exemplar furtado por Campana da Biblioteca Pública do Paraná, Dalton daria um de seus livros mais recentes autografado. “Tudo mentira do Turco”, diz Campana. “Por conta dessas e de outras histórias, muita gente ficou na bronca com ele, mas isso tudo vai pra conta da ficção.”

Como eu se fiz por si mesmo — ainda que a ficção prevaleça — é também o retrato de uma época. “Esse livro foi escrito no tempo do face a face. O Jamil é um escritor do contato com o real. Hoje os escritores escrevem a partir do que leem. Ou seja, estão reescrevendo a literatura”, diz Fábio Campana.

Sobre a opção de não submeter seus escritos ao crivo de editoras, há um trecho em que Jamil conta sobre uma oferta de Domingos Pellegrini, que teria se prontificado a intermediar, junto à editora Civilização Brasileira, a publicação dos livros do amigo. “Mando não, Pellegrini. Estou cada vez mais provinciano. Ainda vou escrever um livro para ser lido só por quem frequenta minha cama.”

Mesmo desconhecido fora de Curitiba, há ecos de Como eu se fiz por si mesmo em duas obras que repercutiram nacionalmente: O filho eterno, de Cristovão Tezza, e Chove sobre minha infância, de Miguel Sanches Neto. Não por acaso, dois autores que tiveram, em algum momento da vida, interlocução com Jamil.

Campana, que também editou Os verões da grande leitoa branca, uma coletânea de contos de Jamil, lembra que Como eu se fiz por si mesmo é a única narrativa longa do escritor e assim como seus textos curtos, a motivação do autor para escrevê-lo não estava na linguagem literária, mas em uma vontade de se manifestar de forma sarcástica e com humor. “É um livro fundamental para conhecer a obra do Jamil e ele mesmo como personagem. Um falso relato memorialístico, uma verdadeira farsa sobre a província.”