Making Of

Jornalismo selvagem em busca do sonho americano

Medo e delírio em Las Vegas nasceu de uma encomenda jornalística a Hunter S. Thompson, que tratou de tornar a matéria uma obra-prima, forjando um estilo até então inédito de narrar

Luiz Rebinski Junior

Ilustração: Ralph Steadman

Poucos escritores do século XX foram tão inseparáveis de suas próprias histórias quanto Hunter S. Thompson. E esse traço fez do escritor americano um ícone da contracultura, mas, também, certamente foi seu gênio indomável que o levou a dar um tiro na própria cabeça, aos 64 anos, em fevereiro do 2005.

Medo e delírio em Las Vegas — uma jornada selvagem ao coração do sonho americano, seu trabalho mais conhecido, tornou-se um marco, uma obra que definiu um estilo de narrar. Repórter autodidata, Thompson começou a trabalhar em jornais e revistas obscuras no final dos anos 1960, quando imprimiu um estilo inesperado de jornalismo, fundido informações verídicas, fruto de apuração jornalística, com digressões ocasionadas pelo uso de entorpecentes e álcool. O resultado disso ele chamou de “jornalismo gonzo”. E Medo e delírio em Las Vegas é considerado o produto mais bem-sucedido desse jeitão até então singular de narrar.

O livro surgiu de uma reportagem, publicada em duas edições consecutivas da revista Rolling Stone em novembro de 1971. Mas, ao contrário do que a geração beat fez muita gente acreditar, a prosa “livre” de obras como On the road, um dos livros que influenciou Thompson, não era criada como um jorro. Havia muito trabalho na confecção do texto. Com Medo e delírio aconteceu o mesmo. Thompson trabalhou na reportagem mais de seis meses, burilando cuidadosamente a loucura do texto.

O escritor já havia publicado na Rolling Stone um texto sobre sua campanha política em Aspen — o escritor se candidatou a xerife da cidade e organizou um novo partido, chamado Freak Party (Partido Esquisito), perdendo a votação por porcentagem mínima. O estilo de Thompson fez sucesso e a revista lhe encomendara outro trabalho, dessa vez para cobrir a convenção da polícia em Las Vegas. Coincidentemente, a Sports Illustrated o contratou para visitar a mesma cidade e escrever pequenos textos para as legendas das fotos da Mint 400, tradicional corrida no deserto de Nevada. Thompson levou consigo o amigo Oscar Zeta Acosta. A empreitada já é surreal por si só: Thompson, um defensor e consumidor de todo e qualquer tipo de drogas, indo cobrir uma convenção antinarcóticos. Para a empreitada, o escritor muniu seu conversível vermelho com 75 bolinhas de mescalina, cinco folhas de ácido de alta concentração, estimulantes, tranquilizantes, um litro de tequila e outro de rum. Em Medo e delírio em Las Vegas Oscar Acosta é descrito como um advogado junkie samoano com instintos assassinos. Thompson é representado por Raoul Duke, seu alter ego. 

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Hunter Thompson trabalhando com a mulher na cozinha de sua casa.

Influências
A influência de Jack Kerouac no modo como Thompson narra as aventuras ao lado de seu parceiro fica evidente desde o primeiro parágrafo. Além disso, a pegada “pé na estrada” dá o tom do livro, cuja narrativa, em grande parte, se dá com os personagens transitando no poderoso Chevrolet conversível de Duke. “Estávamos em algum lugar perto de Barstow, à beira do deserto, quando as drogas começaram a fazer efeito. Lembro que falei algo como 'estou meio tonto: acho melhor você dirigir...' E de repente fomos cercados por um rugido terrível, o céu se encheu de algo que pareciam morcegos, imensos, descendo, guinchando e mergulhando ao redor do carro, que avançava até Las Vegas a uns 160 por hora, com capota abaixada”, descreve assim Thompson o começo de sua viagem.

Identificado com o new journalism de escritores como Truman Capote e Tom Wolfe, no entanto, Thompson trazia ao seu texto uma anarquia que fugia do refinamento dos jornalistas que publicavam seus trabalhos na revista New Yorker, o altar desse tipo de escrita. “Wolfe costumava dizer que, no new journalism, o repórter era como uma mosca pousada numa parede, captando todos os detalhes do ambiente, as minúcias do personagem, os detalhes da ação. No gonzo jornalismo, essa mosca também tem uma consciência, e ela reflete sobre o que ela vê, e ela se intromete nesta realidade”, explica André Czarnobai, que conheceu a obra de Thompson por intermédio de Daniel Pellizari, escritor gaúcho que viria a traduzir para o português os livros do autor americano. 

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“Eu o classificaria, nas palavras de Truman Capote, como um romance de não-ficção, já que quase todo ele é verdade ou de fato aconteceu. Distorci algumas coisas, mas foi um retrato bem fidedigno. Foi uma incrível façanha de equilíbrio, mais que de literatura. Foi por isso que chamei de Medo e delírio. É tão bom quanto O grande Gatsby e melhor que O sol se levanta”, assim Thompson descreveu seu principal livro em Reino do medo, coletânea que traz textos autobiográficos e de memória.

Thompson introduz sua própria personalidade nos artigos, de maneira que o narrador, o fio da história e seu autor de verdade fossem um só. Mathew Shirts é fã de longa data de Thompson. Devorou com imenso prazer Fear and Loathing on the Campaign Trail, sobre a campanha presidencial americana de 1972, e Medo e delírio em Las Vegas ainda na adolescência. Shirts acha que a força de Medo e delírio em Las Vegas está, como em quase toda a obra de Thompson, na força narrativa dos personagens, ou seja, no próprio autor. “O importante é a introdução de um narrador pouco confiável num texto jornalístico. Acho que foi a primeira vez. É uma técnica conhecida na ficção, utilizada, entre outros, por Machado de Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas”, diz o editor da versão brasileira da National Geographic.

Mas o medo e o delírio sobre os quais Thompson escreve não eram só dele. E estão associados à desilusão, a sensação que nos atormenta depois do revés de um sonho que no fim não passou de uma alucinação. O livro foi escrito e publicado durante o governo de Richard Nixon, o único presidente dos Estados Unidos a renunciar, e a Gerra do Vietnã, conflito que reverberou como poucos na sociedade e cultura norte-americana. “Basicamente ele constata que o sonho americano é realmente um sonho, um horizonte inatingível, uma ilusão. Uma cenoura presa numa corda para fazer o cavalo correr. Ao retratar uma sociedade mergulhando cada vez mais no capitalismo selvagem, um povo preso às drogas e às paranoias, escravizado pelos esportes e ainda sentindo os impactos da guerra, ele afirma que as revoluções da década de sessenta fracassaram, e que o futuro que se desenha para os Estados Unidos é negro e sombrio”, opina Czarnobai.

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Depois de Medo e delírio em Las Vegas, Thompson se utilizou da mesma “pegada” narrativa para escrever mais de dez livros ao longo de sua carreira, quase todos de reportagens alucinadas que realizou como correspondente dos mais variados jornais e revistas dos Estados Unidos. Esteve no Vietnã, Cuba e Granada, entre outros locais instáveis do globo. Medo e delírio em Las Vegas teve carreira igualmente turbulenta e de sucesso. Em 1998 o livro foi parar nas telas de cinema pelas mãos de Terry Gillian e com Johnny Depp fazendo o papel principal. A produção custou mais de US$ 18 milhões, mas arrecadou apenas US$ 10 milhões. Apesar do fracasso, o filme se tornou cult, assim como tudo que leva a marca do Gonzo maior.