Making Of

Odisseia editorial


Ulysses

Ulysses nasceu de um conto não incluído em Dublinenses, foi construído na cabeça de James Joyce ao longo de uma década e publicado na França por uma americana que nunca havia editado um livro sequer, para, só então, se tornar uma obra-prima de teor revolucionário


Luiz Rebinski Junior

Como uma espécie de feitiço, em que o criador é engolido pela criatura, o romance Ulysses representou, para James Joyce, uma odisseia particular tão intensa e cheia de percalços quanto a que descreve em sua obra-prima. O livro que foi descrito pela crítica da época como “um romance para acabar com todos os romances”, quase também acabou com a saúde física e financeira de quem esteve envolvido no projeto.

Joyce demorou quase oito anos para publicar o livro, mas o embrião do romance remete ao longínquo ano de 1905, quando aparece a primeira referência daquilo que viria a ser Ulysses, em uma carta do escritor endereçada ao seu irmão. A história inicialmente seria um conto, que Joyce cogitou publicar junto com as outras histórias de Dublinenses (1911).

James
O conto descreveria o que ele chamava de “As andanças do senhor Hunter”, que se baseava em um fato biográfico — como quase tudo que o Joyce escreveu —, em que, após uma noite de bebedeira, o escritor é abandonado pelos amigos, caído no chão, e é então socorrido por um amigo de seu pai, chamado Hunter. “O esqueleto do que viria a ser Ulysses já estava lá. Mas, com o fato de que ele ficou muito ocupado tentando publicar o Dublinenses e terminar o Retrato de um artista quando jovem (1913), a história ficou parada por quase uma década”, explica Caetano Galindo, responsável pela terceira tradução de Ulysses no Brasil, lançada neste ano.

Tal como tinha pensado a sinopse de seu conto, Ulysses se desenrola em um único dia, 16 de junho de 1904, transpondo para a Dublin moderna os personagens e incidentes da Odisseia, de Homero. Para isso, utiliza-se do fluxo de consciência, da paródia, de piadas e de uma gama imensa de técnicas literárias. O enredo aparentemente simples — descrever um dia na vida de Leopold Bloom, o personagem central do romance —, é apenas o mote para uma aventura literária de cunho existencialista que vai se desdobrando em uma variedade absurda de episódios até o final do romance.

Joyce postergou o início da escrita de Ulysses até 1914, quando já havia editado seus dois primeiros trabalhos em prosa, Dublinenses e Retrato de um artista quando jovem (1913). Neste ano, enfim, retoma a ideia que teve quase uma década antes e começa a escrever o romance que se tornaria um marco da literatura do século XX. Depois de um período perambulando pela Itália e Suíça, onde lecionou inglês na prestigiosa Berlitz School, Joyce parte para Paris, em 1920, onde tem contato com os intelectuais americanos e ingleses exilados na França. É quando sua mecenas Harriet Weaver apresenta-lhe Sylvia Beach, jovem livreira americana dona da Shakespeare and Company, que teria papel decisivo na edição de Ulysses.

Depois de trechos do romance serem publicados em duas revistas, sendo a principal delas The Little Review, de Nova York, Ulysses é considerado obsceno e proibido nos Estados Unidos. “Desanimado, Joyce perde a esperança de ver Ulysses publicado nos Estados Unidos ou na Inglaterra. Abatido, confessa a Sylvia: 'Ulysses jamais será publicado'”, escreve Jean-Paul Caracalla em Os exilados de Montparnasse, livro que faz um retrato da geração de intelectuais que ocupou a famosa área parisiense entre as décadas de 1920 e 1940.

“Joyce conhece Sylvia em um momento de desespero, pois ninguém queria publicar o Ulysses. Muito por questões editoriais, mas principalmente por medo de processo, pois o livro era considerado obsceno. Outro agravante era que Joyce retratava pessoas de Dublin, que tinham receio da publicação”, explica Galindo.

Atormentando Sylvia

Sem nenhuma experiência editorial, Sylvia Beach passaria meses de verdadeiro calvário até a edição definitiva do livro, em 1922. Aos poucos, Joyce toma posse da Shakespeare and Company, incrustando-se cada dia mais, segundo a própria Sylvia, para se tornar um verdadeiro “carrapato”.

Enquanto Joyce ainda escrevia e reescrevia seu romance, decidiu-se pela publicação de três edições distintas do livro: a primeira, de cem exemplares em papel Holanda, assinadas pelo autor ao preço de 350 francos; a segunda, de 150 exemplares em Vergé d’Arches, por 250 francos; o restante, ou seja, 750 exemplares, em papel tradicional, a 150 francos. O salgado preço era justificado pela editora da seguinte forma: “Levando-se em conta os sete anos que Joyce dedicou ao livro, e sua perda de visão, isso não me parece caro”.
Publicação Ulysses


Para dar contornos ainda mais épicos à edição do livro, o impressor do manuscrito, Maurice Darantière, não falava uma palavra em inglês e tinha extrema dificuldade para entender as alterações feitas de última hora por Joyce no manuscrito do livro. O que contribuiu de forma decisiva para a edição cheia de erros que veio à tona em 1922.

Para tentar amenizar o problema da letra de Joyce, copistas eram recrutadas para deixar legível os garranchos do escritor. Mas muitas, diante da monumental tarefa, sucumbiram: nove desistiram de bater o famoso capítulo de “Circe”. A mulher de um funcionário da embaixada da Inglaterra provavelmente teria conseguido se o marido, chocando-se aos ler por cima do ombro da esposa o texto que datilografava, não tivesse jogado ao fogo as páginas do manuscrito.

“Cada vez que Joyce passava a limpo uma lauda, ele a rasurava. Por isso não é possível resolver todos os erros do livro, porque não temos manuscritos confiáveis. Alguns episódios têm três manuscritos. Não existe um texto contínuo, único, revisado. O que temos é a versão da edição de 1922”, diz Galindo. O tradutor lembra que Joyce mesmo vendia páginas separadas do livro ao advogado americano John Quinn, como forma de obter alguma renda enquanto escrevia o romance, o que certamente contribuiu para que o livro não tivesse uma versão “definitiva”. Some-se a isso, o fato de que o livro passou por sete revisões a partir da entrega aos editores até a efetiva publicação. O livro cresceu em 40% e foi revisado até a última hora, dois dias antes de ser impresso.

À medida que o trabalho de Darantière ia progredindo, Joyce foi ficando cada vez mais exigente em seus pedidos à sua editora, que àquela altura temia pela saúde financeira de sua livraria, pois um fracasso na edição de Ulysses poderia significar o fim de seu pequeno comércio. Uma das reivindicações de Joyce se referia à cor do livro. Ele exigiu que a capa do romance fosse da cor da bandeira da Grécia. Nenhum outro tom de azul — mais claro ou escuro — o satisfazia. Diante da impossibilidade de achar a mesma tonalidade, Darantière teve que litografar o azul sobre cartolina branca para chegar a um resultado que agradasse o escritor.

Joyce também exigiu que o romance chagasse às livrarias no dia de seu aniversário de 40 anos, em 02 de fevereiro de 1922, fato que ajudou a incrementar a mística em torno do romance. Os mil exemplares da primeira tiragem foram insuficientes para atender a demanda e, em outubro de 1922, outros dois mil exemplares foram impressos, desta vez sob a responsabilidade do editor e escritor John Rodker que, diante da impossibilidade de corrigir os erros tipográficos da primeira versão, acrescenta ao livro uma errata. Vendido a 2, 2 dólares o exemplar, a edição logo se esgota, porém, nos principais mercados de língua inglesa, Estados Unidos e Inglaterra, o livro só seria publicado em 1933.

Apesar de Ulysses conservar uma mística grande, o romance era visto com ressalvas por parte da crítica e do público, o que só viria a mudar nos fins dos anos 1960. “O estatuto de clássico absoluto de Ulysses só existe depois da edição da Penguin, em 1969. Antes disso, a imagem de Ulysses era do livro obscuro ou obsceno. O livro teve importância, mas era apenas uma lenda. Só teve esse impacto, um livro que todos leram, depois de 1969”, explica Galindo.

Após o périplo em torno de Ulysses, Joyce empreenderia outra empreitada hercúlea, desprendendo 17 anos de sua vida na confecção de Finnegans wake. Mas aí é outra história.