Especial Capa: Jornal da guerra contra a gente mesmo

Luiz Andrioli

Te conheci pela fresta da porta. Foi no meio da fuzarca de uma produtora de vídeo que fazia a campanha política de um candidato. Estávamos na Curitiba da década de 1990. Eu devia pegar uma fita em uma das ilhas de edição. Meu cicerone, depois de me apresentar algumas figuras do local, apontou de longe: e ali está o Karam. Um porto no meio da histeria com o objetivo de fazer o próximo prefeito da capital ecológica. Soube então que era você quem escrevia o plano de governo. Aquilo ficou me incomodando por um bom tempo. Eu, ainda um estudante de jornalismo, via na literatura um escape, uma fonte de digressão, rebeldia e tudo mais que não poderia caber nas pesquisas que definem uma vitória política.

karam
O que fazia um escritor do seu estilo no meio de tantos interesses?

Junto com a pergunta, fiquei com a imagem daquele jeitão taciturno por trás da barba branca entre os gritos dos marqueteiros do comitê. Existia, sem dúvida, um jeito Karam inabalável dentro daquilo tudo que ainda não me descia.

Sim. “Ainda não me descia”. Já te falo por quê.

Meio que sem querer, virei repórter de TV uns anos depois. E totalmente de paraquedas caí em uma redação chefiada por você. Daria para preencher algumas páginas com passagens cheias daquele seu humor fino que deixava a gente em suspenso uns dois ou três segundos. Todas as seguranças dos manuais de redação (que ensinam a escrever por vias previsíveis) poderiam ser solenemente ignoradas em nosso jornal. O laboratório estava formado. Uma turma ainda aprendendo a empunhar microfones e outra já tendo rodado os quilômetros das redações tradicionais e cansada de fazer o que sempre foi feito. Tínhamos tudo para realizar um bom trabalho, brincar, inovar, propor um jeitão de abordar a notícia fora do esperado.

E fizemos um bom trabalho. Só que ninguém percebeu. Estávamos em uma emissora pública de pouca audiência. Traço, pra falar a verdade, na maioria das vezes.

Ei, Karam, lembrei das verdinhas! Sim, as Heineken`s... Lembra daquele calendário que a gente mantinha na redação com a foto de um garrafão de água cheio de cerveja? Que sobriedade pretendíamos imprimir para o ambiente de trabalho, não? Aliás, acho que te levei a sério no começo. Durou mais ou menos uns dez minutos esta sensação. Gente de barba branca sempre me fez pensar em sobriedade.

Escrevia minhas matérias naquela época, quando era seu repórter, com a sensação de que você me espiava por trás do ombro. Aliás, tive a mesma impressão agora, já quase finalizando este texto... Queria (e quero!) uma aprovação. Na minha época da reportagem, sabia da inglória tarefa de comparar a escrita para a TV com o que você fazia nos livros. Eram outros critérios os seus de escritor, é claro. Mas a sua liberdade nas páginas me indicou outros tantos caminhos, seja nas histórias imaginadas, presenciadas e criadas — cada qual contaminando as outras em medidas não quantificáveis.

Ok. Admito que dei minhas espiadas na tela do seu computador também.

Há algum tempo sentei naquela mesma cadeira em que você escrevia os sonhos de uma nova cidade. Nessa coisa de caminhar pelas trilhas de quem a gente segue, fui escrever o plano de governo de um candidato com a mesma turma que já estava se acostumando a não te ter por perto. Em alguns meses, pensei projetos de educação, saúde, segurança pública e outros temas que poderiam deixar o mundo de um jeitão melhor. Tentei chegar como um técnico, reunindo informações, fontes, procurando mazelas levantadas em alguns anos de reportagem. Em pouco tempo, no meio de toda aquela histeria da qual você se preservava tão bem, entendi qual era o seu papel. Lembrei de Pablo Neruda, que também transitou na política levando consigo a pena do escritor. “Muitas vezes os governantes têm comunicações públicas com seus povos. A poesia tem uma comunicação secreta com os sofrimentos do homem. Há que ouvir os poetas”, dizia o chileno. Quando o laptop do jornalista abriu espaço para alguns devaneios do escritor, a postura serena do Karam frente aos interesses de um comitê eleitoral fez sentido na minha cabeça.

Sonhei sonhos possíveis, imaginados, criados, calculados, negociados, alimentados, pesquisados... Não por acaso, nos intervalos daquele trabalho, nos meses em que fiquei confinado no comitê, ainda sobrou fôlego para dar um trato final em um livro de contos e revisar outro de poemas. A energia que movia as tarefas era a mesma: a de quem cria tendo como fonte justamente o ambiente, as histerias e histórias cruzadas; cacos de dramas pegos pela rabeira, com toda a fartura de passionalidades.

Você, de certa forma, criava seu porto seguro nas redações em que trabalhava, mas tinha ouvidos afinados à comunicação secreta com os dramas da alma.

Cheguei a fazer uma reportagem falando sobre a inauguração da Casa da Leitura Manoel Carlos Karam, que guarda o acervo que foi seu. Fica aqui pertinho do meu apartamento, aquele cujas prestações paguei com a ajuda dos bicos que você me arrumou em uma produtora de vídeo. Sabe que eu passo lá para pegar livros que às vezes nem leio? É tipo uma lembrança que levo pra casa e devolvo no prazo. Parece que estou emprestando da sua estante, como poderia estar fazendo hoje, se você não tivesse esta mania chatinha de deixar a gente tão cedo.

Luiz Andrioli é escritor e jornalista. Autor de O circo e a cidade. Mantém o site www.luizandrioli.com