Especial Bloomsday | Caetano Galindo

O senhor Bloom em Curitiba

A convite do Cândido, o escritor e tradutor Caetano Galindo imagina como seria um encontro com Leopold Bloom nas ruas da capital paranaense hoje — 95 anos depois de James Joyce dar vida ao seu personagem mais icônico

                            Ilustração: André Ducci
Bloom


1. 
Leopold Paula Bloom acabou de completar 151 anos de idade. Eu não sei o aniversário dele, mas sei que pela altura da metade do ano essa data já passou.

Seu aniversário na verdade é uma das pouquíssimas coisas que eu não sei a seu respeito. Nem eu nem qualquer dos outros milhares, dezenas, centenas de milhares de indivíduos que o conheceram, que entraram na sua vida e esgaravataram seu passado, seus hábitos, perversões e versões de vida. Isso desde que James Joyce, no Ulysses, resolveu se debruçar com a mais poderosa, mais atenta e mais compassiva das lentes que a literatura já desenvolveu sobre um dia da vida de Bloom.

Um dia de Leopold na Dublin de começos do século passado.

Um dia de Leo. 

O dia de Poldy. 

Bloomsday.

Dezesseis de junho de 1904, quando tanta coisa aconteceu com ele, ainda que nada do que lhe tenha acontecido possa parecer heroico, possa ser inédito, raro, especial ou épico. Seu dia é um dia da vida de um homem quase comum, um dia que é quase uma vida toda de um homem comum. Nascimento, morte, amor, traição, perda... tudo está lá. E nós podemos ver tudo bem de perto. Pelos olhos de Poldy.

Ele, claro, não existe. É um personagem.

Ele, claro, está vivo. É uma pessoa plena, toda, e por isso mesmo tantalizantemente mais inacessível. Nós sabemos tanto dele que ficamos incomodados com o que nos falta. Daí por exemplo eu lembrar, com tanta insistência, que não sei o aniversário dele.

Parece injusto.

Ainda hoje, agora há pouco, eu passei por ele na rua. Passei por todas as dezenas de versões de Bloom que surgem diante dos olhos de um leitor do Ulysses, um livro que acima de tudo parece te dizer “veja bem”, “olhe de novo”, “preste atenção”... Veja que esse mundo todo é você, veja que essas pessoas todas são exatamente iguais a você, na mesmíssima medida em que não tem nada a ver com você.

Você não é cada uma delas. 

Mas todas são Bloom. Como você. Basta olhar. Basta ouvir.

Naquele livro, no Ulysses, o leitor é como que levado pela mão por um narrador que acompanha Bloom de perto (e outras pessoas... e outros.... mas são todos Bloom? Cabem todos dentro dele). E é pelos olhos de Bloom que vemos toda a cidade. O mundo todo.

E isso muda tudo. 

Porque desse jeito, na verdade foram pelo menos três versões de Poldy que andaram comigo agora há pouco pelo centro de Curitiba.

Uma sou eu mesmo. Que aprendo a me ver, a me examinar, a me sondar como vejo Bloom se sondando. O narrador que acompanha Bloom me ensinando a ser Bloom.

Outra é o meu modo de ver os outros como ele os enxerga. De um jeito mais atento, mais curioso e mais caridoso do que eu normalmente (se estivesse sozinho) poderia ser capaz. Bloom que me acompanha me ensina a ver como Bloom.

E outra ainda é minha tentativa, parecida com a dele, de ver os outros e supor nos outros os mesmos maquinismos que o narrador me permite ver na cabeça de Bloom. O narrador que acompanha Bloom me ensina a ver Blooms.

Por tudo. 

Um mundo florido de Poldys.

Isso tudo ainda hoje, agora há pouco, subindo da Marechal pra General Carneiro, acompanhando ruas de nomes bélicos do novo mundo, nomes marciais e transatlânticos que por isso mesmo deveriam ter tão pouco a ver com o europeu e pacifista Bloom. 

Mas era ele. Juro que era ele.

Era ele que andava ali comigo. Eram os seus olhos grandes e negros sob a aba de um chapéu coco preto (ele teve que ir a um velório naquele dia 16, e por isso mesmo passa o resto desses 95 anos desde a publicação do romance andando de preto, mesmo aqui, no sol de uma Curitiba que ao menos hoje decidiu que ainda não é hora de frio), era seu olhar bondoso, bem-humorado e pleno, vivo, sacana, que me fazia ver cada coisa com mais atenção, cada figura de passagem como um leitor. Como outro Bloom.

Era ele na minha memória. Ele no meu cérebro e no meu coração reconfigurados permanentemente depois da (s) leitura (s) daquele livro que é quase mais dele do que de seu “autor”. Era ele diante dos meus olhos e por trás da minha retina.

Era Bloom que eu via e com Bloom que eu conversava. 

Era ele que me fazia ser (ou tentar ser) uma pessoa mais inteira simplesmente através da ideia revolucionária de tentar lembrar que as outras pessoas são pessoas inteiras.  

Ele, menos gente que imagem, menos persona que personagem... era ele que me fazia abandonar miragens...

2. 
Sol. Puxa vida que ninguém podia imaginar hoje cedo que ia fazer um sol desses. Coisa mais improvável. Tudo bem que já estava mais do que na hora. Semaninha mais feia. Ainda bem que eu. Antes de sair de casa. Tem dias que a gente até parece que pensa direito.

Olha. Aquela menina lá a. Como é que chamava ela. Como é que chamava mas ai que eu queria saber. Bonita ainda.

— Oi, seu Leopoldo, tudo bem com o senhor?

Sim, sim, estava tudo uma maravilha com ele. Mas fazia tempo, né? Caramba, ele nem queria pensar quanto tempo que fazia. É. Uma enormidade mesmo. Onde já se viu, não é verdade? E com ela estava tudo direitinho? Tudo correndinho na mais santa?

— Nem te conto! Sabe que a...

Mas será que ela precisava me parar aqui bem embaixo do sol? Tá duro, viu? Uma lua desgraçada! E eu com esse chocolate na mão. Vergonha de mostrar. Ela sempre tem essa cara de séria. Eu meio que toda vez fico me achando com jeito de criança. De bobão. Mas são bonitos esses olhos. Só parece que eles ficam me varando. Me vendo e me achando ralinho. Vergonha de mostrar que comprei um chocolatão desse tamanho. Homem feito e tudo mais. Sempre com vergonha das mulheres. Mas aí se eu deixar assim na mão fechada vai virar é uma maçaroca. Mão quente, coração frio. Deixa ver se consigo escorregar assim pro bolso da jaqueta sem chamar... Sem ela perceber... Tudo bem que ela está falando tanto da tal da filha e da febre e do catarro e tudo que acho que ela nem ia ver mesmo. Se bem que... Se bem que... Mulher vê tudo, meu filho! Enxerga tudo mesmo. Elas parecem de mentira até. Com isso. Mas... E..... deu! Consegui. 

— Puxa vida. Mas nem assim melhorou? Lá em casa a gente sempre dava chá de casca de laranjeira pra isso.

É. Ele devia mesmo ser uma figura. Onde já se viu recomendar chá de casca de laranjeira no ano da graça de nosso senhor de 2017? É. Ela tinha toda razão. Melhor levar no ortomolecular. Té parece.

— Mas de um jeito ou de outro eu tenho certeza que mais dia menos dia ela está supimpinha de novo. Criança é forte. Recupera rápido.

— Credo em cruz, seu Leopoldo. É bom que melhore mesmo. Mais uma noite dessas e eu te juro que viro um farrapo.

Farrapo ela não vira. Bonita. Continua bonita. Tudo bem que essas marquinhas de estofado na bochecha não são a coisa mais sedutora do mundo. Meio assim tipo um chenille. Tudo riscadinha.

— Olha, farrapo você está bem longe de ficar, menina. Mesmo com isso tudo eu posso te garantir que você está linda!

— Seu Leopoldo, o senhor continha um galanteador! 

— Só pras mocinhas que merecem, querida.

Tchau. Tchau. Beijinho. Beijinho. Boa moça ela. Boa moça. Meio exagerada. Aquele chenille ali tava na cara que queria dizer que ela estava era cochilando até agorinha no sofá. Quase hora do almoço. Tava na cara. Ehehehe. Tava mesmo.

Upa. Mas olha que é o Caetano descendo ali. Deixa ver se. Ai. Tarde demais. Já me viu. Pior que o problema é pura e simplesmente que ele gosta demais de mim. O sujeito me acha mais santo que Tolstói. Ou, pior ainda, mais santo do que o Tolstói queria se achar. Dá um trabalho manter a imagem quando eu converso com ele! Lina! Lembrei.

— Oba, seu Léo, beleza por aí?

3. 
Leopold Paula Bloom, o homem que não existe, tem 151 anos de idade. O Ulysses, o romance sem o qual nenhum outro existiria hoje, tem 95 anos. 

E os dois continuam, em mim e pra qualquer leitor que se decida a encarar a nada simples mas extremamente recompensadora tarefa de sua leitura, continuam absolutamente vivos e, mais impressionante, novos.

A cada dia 16 de junho, quando as pessoas param para comemorar mais uma edição do Bloomsday, o livro e seu “herói” mostram de novo a que vieram. E o quanto ainda estamos atrás deles, querendo compreendê-los e, quem sabe um dia, ultrapassá-los. (Será?)

O Bloomsday pode muito bem ser o único feriado literário do mundo. E é certamente o maior.

E pouco pode deixar mais clara sua beleza, mais nítida sua fertilidade, do que lembrarmos que Bloom é a palavra inglesa antiga para “flor” (a família do judeu Poldy, quando chegou da Hungria, se chamava Virág, flor), e que o “dia de Bloom”, esse “bloom’s day”, surgiu inicialmente como trocadilho com “Doom’s day”, o dia do juízo final.

Trocar o apocalipse, o fim, a morte, o caos pela beleza boba, pela singeleza linda de Poldy Bloom pode bem ser o maior dos efeitos desse livro merecidamente tido por complexo, cuja profunda e revolucionária “humanidade”, no entanto, ainda precisa ser mais divulgada.

O Ulysses, afinal, mudou a história do romance. Mudou a história da literatura.

Mas está só esperando, ainda hoje, pra mudar a tua vida de um jeito que poucos romances podem sonhar. Acredite em mim, porque eu... 

Mas espera, depois eu continuo com isso porque acabei de ver o Poldy ali na esquina acenando pra mim.


Caetano Galindo nasceu em 1973, em Curitiba (PR), onde vive. É professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Entre outras obras, traduziu Os mortos, Finn’s Hotel e Ulysses, de James Joyce. É autor de Sim, eu digo sim, um guia de leitura de Ulysses. Também é autor do livro de contos Ensaio sobre o entendimento humano, vencedor do Prêmio Paraná de Literatura em 2013.