Entrevista | José Roberto O´Shea

"Huck Finn é um curso de ética"

IRINÊO BAPTISTA NETTO

José Roberto O’Shea mal pôde acreditar quando foi convidado pelo editor Rodrigo Lacerda, da Zahar, para traduzir As Aventuras de Huckleberry Finn. Lacerda não sabia, mas a obra-prima de Mark Twain é um dos livros favoritos do tradutor. 

“Na nossa primeira conversa, eu disse: ‘Vou pegar pelo chifre a questão da variedade linguística. E vou fundo’. O Rodrigo me deu carta branca”, diz o professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), conhecido por estudar e traduzir obras de Shakespeare, Joseph Conrad e Flannery O’Connor. Leia abaixo alguns trechos da entrevista que ele concedeu ao Cândido.

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Ilustrações originais de As Aventuras de Huckleberry Finn, assinadas pelo artista norte-americano E.W. Kemble (1861-1933).

O senhor buscou referências para elaborar as falas dos personagens iletrados e semiletrados em Huck Finn?
Dei uma olhada em traduções de textos de autores do sul dos Estados Unidos [William Faulkner, por exemplo, traduzido por Paulo Henriques Britto] e usei minha experiência com a obra de Flannery O’Connor [outra escritora americana do Sul]. Em última instância, criei as gradações a partir da minha intuição linguística, de falante nativo. Não quero que ninguém pegue a tradução e leve para um laboratório de fonética e fonologia. Não é uma tese de dialetologia, é uma obra artística que busca um efeito estético.

O que explica a demora para Huck Finn ganhar uma edição de porte no Brasil — elegante, com capa dura, notas, ilustrações e outros aparatos de leitura — como essa que a Zahar acabou de publicar?
Entendo que possa ser uma questão da relativa timidez das editoras e dos tradutores diante de uma obra em que, a rigor, não existe norma culta. Como lidar com isso sem regularizar o texto e acabar com toda a construção do personagem?

Qual é sua opinião sobre as adaptações que simplificam textos como os de Mark Twain?
Não tenho uma visão purista quanto a essas adaptações. Se o objetivo for disseminar, popularizar e cativar jovens leitores que não teriam saco de ler 4 mil versos em pentâmetros iâmbicos, num inglês elisabetano, sem entender bulhufas… Quem sabe, mais adiante, esses leitores busquem o original como ele é? Não vejo problema. Se for para conquistar novos leitores para Shakespeare, Mark Twain, [Jonathan] Swift, deixa quieto, não vejo problema.

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Por que ler Huck Finn?
Por causa da questão da ética pessoal, sem sombra de dúvida. Aquilo ali é um exemplo de como um ser humano é perfeitamente capaz de chegar à sua própria verdade por meio da reflexão, da observação do mundo, da sensibilidade, indo na contramão das leis, da religião, das instituições. Ele [Huck Finn] chega à sua própria verdade e diz: “Não vou delatar meu amigo”. Meu Deus. O livro é um curso de ética. Porque a ética é a base de tudo. E é um tema complicadíssimo. Sob o ponto de vista religioso, ele tem certeza de que está condenado ao inferno. Como ele diz: “Tá bem, então, eu vou pro inferno”. Se você é um ateu que não acredita em inferno, não faz diferença. Mas se você acha que o inferno existe e que você vai para o inferno por causa de uma decisão sua, não é mole. Isso tudo só aumenta a gravidade e a importância da decisão desse moleque. O filho do bêbado da cidade. Não foi do pai que ele adquiriu essa ética. Não foi das aulas de catecismo. Ele valoriza o direito natural sobre o direito da propriedade, que é uma questão bastante complexa da filosofia do direito. E ele chega a isso sozinho. Com a própria consciência. Acho que essa obra-prima valoriza a autorreflexão, a capacidade crítica do indivíduo, a capacidade que o ser humano tem de aferir determinadas situações, de avaliar determinados contextos e dizer: “Isso eu não vou fazer”.

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