Entrevista | Adélia Prado

Sem ponto final

Sentindo-se uma estreante aos 80 anos, Adélia Prado lança sua Poesia reunida e comemora os 40 anos de seu livro de estreia


Luiz Rebinski


Divulgação | Record
adelia


Lançado há 40 anos, Bagagem (1976), primeiro livro de Adélia Prado, continua um marco. Maduro suficiente para Carlos Drummond de Andrade elogiá-lo à época do lançamento, segue como uma das melhores estreias poéticas da literatura nacional. 

Bagagem e outros sete livros de Adélia podem ser conferidos em Poesia reunida, um tomo de 500 páginas lançado no final de 2015 e que reúne a produção de quatro décadas de uma das poetas mais importantes da literatura brasileira em todos os tempos. 

É uma boa oportunidade para reler poemas antológicos da autora, como o despudorado “Objeto de amor”, que pega o leitor de surpresa com sua ode ao ânus (“De tal ordem é e tão precioso/ o que devo dizer-lhes/ que não posso guardá-lo/sem que me oprima a sensação de um roubo:/ cu é lindo/ fazei o que puderes com essa dádiva/ quanto a mim dou graças /pelo que agora sei/ e, mais que perdoo, eu amo”). Além disso, como toda compilação dessa natureza, Poesia reunida serve para que o leitor avalie os caminhos e mudanças de rotas na carreira da poeta. 

A leitura do conjunto de livros exalta os recursos estilísticos e a variedade de temas utilizados por Adélia ao longo da carreira. No entanto, é a religiosidade, sob viés mais metafísico que espiritual, que permeia toda a obra da autora. O que, no entanto, não reduz sua poesia à carolice. A cada virar de página, uma surpresa com a poeta do interior de Minas que consegue falar tão intensamente sobre tantas coisas, como casamento, família, cotidiano, etc. 

Hoje com 80 anos, a poeta ainda se diz “uma caloura” ao ser perguntada sobre Bagagem, livro que a revelou. Com respostas curtas, ela comenta a seguir assuntos relacionados à sua poesia, como inspiração (“Qualquer coisa é a casa da poesia”), o aspecto mais fascinante da Bíblia (“Sua poesia”), a influência de Divinópolis em sua obra (“Arte não é enredo, é forma”) e a gênese de seus poemas (“Não sei responder”). Confira o bate-papo. 

Seu primeiro livro, Bagagem (1976), foi lançado há quase quatro décadas. A coletânea foi saudada pela maturidade estética e de temas, mas também por ser o equivalente poético a um “romance de formação”. Hoje, com o distanciamento do tempo, que leitura a senhora faz daquela estreia? 
Bagagem faz 40 anos agora. Foi uma alegria enorme escrevê-lo. Mas continuo estreando, sempre me vejo como caloura. Isso me dá descanso e ao mesmo tempo o gosto de escavar palavras quando à vista de um novo livro, como um garimpeiro. É sempre novo. 

A senhora, desde o primeiro livro, sempre recebeu muita atenção da crítica e de outros grandes autores, como Drummond, Clarice Lispector e Affonso Romano de Sant’Anna, entre outros. Como lidou com essa expectativa e atenção recebida? 
Estas “atenções” me confirmaram a suspeita íntima de que eu era mesmo poeta. Ganhei a carteirinha. 

No conjunto de oito livros que compõe sua Poesia reunida, Bagagem (1976), O coração disparado (1978) e Terra de Santa Cruz (1981), os três primeiros, me parecem os livros mais “plurais” da senhora, que abarcam uma gama maior de assuntos (como relacionamentos amorosos, reminiscências da família e da infância), quando comparados ao restante de sua produção (talvez uma exceção seja A duração do dia). Isso faz sentido para a senhora? Como vê esse conjunto de livros?
Obra reunida é assim mesmo. Identidades de cada livro que se juntam para compor um livro só. Creio que um perfil possa unir suas singularidades. Todos se parecem sem anular o caráter de cada um. 

No seu primeiro livro há dois poemas que fazem referência a Carlos Drummond de Andrade. Ele foi a principal referência para a senhora naquele momento? 
Sim. 

Em Terra de Santa Cruz há um poema muito curioso sobre a existência e utilidade dos mapas (“Legenda com a palavra mapa”). Tudo, para a senhora, é poesia? 
Qualquer coisa é a casa da poesia. Ela é inclusiva por natureza. Há séculos Tomás de Aquino já ensinava: “Todo ser é belo”. 

A Bíblia sempre exerceu uma grande influência em sua escrita. Para além da religiosidade, do cristianismo, o que mais a fascina no livro? 
Sua poesia. 

A religiosidade talvez seja o traço mais marcante de sua poética. Não teve receio de que isso fosse algo que interferisse demais em sua produção, a ponto de que outros aspectos importantes de sua poética (como o amor, a oralidade, a cultura popular, o cotidiano, a lembrança, etc.) fossem ofuscados?
Nunca. Ela, a poesia, pode falar sobre qualquer coisa ou sobre uma coisa só. Os pintores que escolhem pintar apenas animais ou garrafas não por isso deixam de ser universais se são pintores de verdade. 

Nos poemas “A vida eterna” e “A bela adormecida”, do livro O pelicano (1987), a senhora reflete sobre os 50 anos. Hoje, aos 80, acha que existe uma idade em que o poeta atinge o auge de sua forma? 
Não gosto de ponto final. Amo os dois pontos. Há poetas que fizeram obras geniais aos 19 anos e depois pararam de escrever. Outros continuaram de maneira menos brilhante. Outros seguiram cada vez melhores. Não sei responder em que idade nada disso pode acontecer. 

O cotidiano das cidades do interior é bastante marcante em sua poesia, principalmente nos primeiros livros, Bagagem e O coração disparado. Em A duração do dia a senhora publicou “Divinópolis”, poema em homenagem à sua cidade. Já imaginou como seria sua poesia se tivesse vivido em um grande centro? Morar em Divinópolis (MG) foi, de alguma forma, determinante em sua trajetória? 
Minha circunstância é determinante apenas na casuística da obra, não na sua forma. Obras boas e más se escrevem na roça ou nas capitais. Arte não é enredo, é forma. 

Sua poesia, para grande parte da crítica, se absteve em falar abertamente de política. No entanto, sempre que tem oportunidade, em entrevistas, por exemplo, a senhora discorre sobre o tema. Como administrou esse assunto ao longo da carreira? Sente- -se cobrada de alguma maneira, já que, assim como no início de sua vida literária, nos anos 1970, hoje também vivemos tempos de ânimos exaltados? 
Repito que poesia não é tema. Não posso engajá-la em nada. Ela vem como vem e eu obedeço. Não tenho poderes nem vontade de torcê-la para nenhuma ideologia. Ela se recusa. Empaca como uma mula teimosa e, se me esforçar, faço um livro deplorável. Este equívoco vem do fato de se achar que o poeta é a fonte da poesia. Ele é só o “cavalo do santo”. Um livro “político” de poesia será bom se for primeiro um livro de poesia. Tudo para resumir assim: acredito em inspiração, não em esforço. 

A senhora poderia falar um pouco sobre a gênese de seus poemas? Como eles surgiam no começo de sua carreira e como surgem hoje? 
Não sei responder. 

Acha que existem grandes diferenças entre a poesia escrita por homens e a produzida por mulheres? 
Nenhuma, se homem ou mulher estão fazendo poesia mesmo. A diferença, eventualmente, será na casuística do poema, visão do mundo, experiências. 

Como a senhora gostaria que sua poesia fosse vista no futuro? 
Como foi vista em seu começo.