Em busca de Curitiba | Sérgio Medeiros

O mistério dos dois japoneses


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De manhã cedo o céu de Curitiba se nublou. Creio que caíram algumas gotas. Pelo menos na minha camisa branca. Eu caminhava no meu jardinzinho. Ia e vinha com a cuia de mate na mão.

Tenho um antigo pinheiro em casa. Desses que parecem esticar ao máximo todos os galhos altos. Depositei a cuia na mesinha ao lado da térmica e comecei a me exercitar sob o pinheiro. Estiquei os meus braços tanto quanto pude. Faço exercícios sob o pinheiro toda manhã.

Então alguém me chamou da calçada. Era uma moça que morava no meu bairro.

— Posso falar com o senhor? – ela perguntou.

— Entre – eu respondi abrindo o portão. – Entre.

Ela agradeceu. Ficamos conversando na varanda. Ela contou que tinha pressa.

— O meu assunto é árvore – ela disse olhando para o meu pinheiro.

Olhei também para o meu pinheiro. É a minha árvore favorita.

— Não vendo – eu disse brincando. – Nem doo.

— Falo de outra árvore – ela explicou. – Uma bem pequena.

— Um bonsai! – eu exclamei fingindo desprezo. – O seu dá frutas?

— Nunca deu porque é jovem – respondeu a mocinha olhando para o relógio. – Uma jabuticabeira.

Notei que ela carregava uma mochila nas costas.

— A senhorita vai viajar?

— Pois é – ela respondeu um tanto contrariada. – O meu novo emprego me obriga a ir a Londrina frequentemente.

— Mas isso é ótimo! – exclamei para animá-la.

— Mas essas viagens vão matar o meu bonsai.

— A senhorita o deixa fechado em casa?

— Há uma semana eu o deixei na casa de um japonês que é mais ou menos meu vizinho – ela confessou mordendo os lábios. – Pedi que ele o molhasse todos os dias.

— Nem precisava pedir – eu comentei. – Um japonês sabe como tratar dele.

— Foi o que eu pensei... – ela respondeu desconsolada.

— Não me diga que o japonês não molhou o seu bonsai todos os dias! – eu exclamei fingindo grande assombro. – Mas isso é impossível!

— Não é bem assim – ela disse secando com um dedo cheio de anéis uma súbita gota que rolou pela sua bochecha rosada. – O bonsai sumiu!

Ela então abaixou a cabeça.

— Compreendo a sua tristeza – me solidarizei com ela enquanto olhava de soslaio para o pinheiro que jamais sairia dali.

— O bonsai sumiu – ela repetiu. – Quando voltei de viagem não o encontrei mais.

— Que coisa!

— Eu o havia deixado num cantinho da sala do japonês e quando voltei lá ontem à tarde encontrei o cantinho vazio.

Assobiei baixinho.

— A sala estava até sem os móveis – ela acrescentou com indignação.

— O que o japonês lhe disse sobre o bonsai?

— Não disse nada – ela choramingou. – Ele não fala português e aparentemente mora sozinho.

— O caso é mais complicado do que eu imaginava – comentei depois de tomar mais um gole de mate.

— Parece que ele não fala nem japonês! – revelou a mocinha já à beira do desespero. – Veio muito bebezinho do Japão e nunca conseguiu aprender a nossa língua.

— É o que dizem por aí?

— Sim – respondeu a mocinha. – Ele não fala língua nenhuma!

Depois de uma pausa e de um suspiro ela acrescentou:
— Ele só balança a cabeça e parece sorrir.

— Não é uma estátua – tentei ser espirituoso para animar a mocinha.

— Não sei se pisca os olhos.

Refleti por uns segundos e ponderei:
— Ele deve entender um pouco da nossa língua.

— Acho que entende – ela disse me estendendo a mão. – Não posso perder o meu ônibus.

Já na calçada ela me pediu um favorzinho enquanto eu fechava o portão:
— Será que o senhor não consegue descobrir onde aquele japonês enfiou o meu bonsai?

E me entregou um papel com o endereço dele. Caíam então algumas gotas grossas e frias.

— Vou tentar – prometi. – Mas o japonês não deve ser fácil.

Ela abriu o guarda-chuva e se afastou rapidamente sem olhar para trás.

2

Não sou de bisbilhotar à toa a vida das pessoas. Por isso não quis saber se a minha cliente era fiscal do governo ou vendedora de uma firma qualquer. Simplesmente decidi ajudá-la.

Quando parou de chover eu bati na porta do japonês. Ele mesmo a abriu. Sou um pinheiro. O japonês era um bonsai. E bem mais velho do que eu. Vestia roupas ocidentais.

— Será que posso falar com o senhor? – eu disse lentamente.

Seu rosto não tinha expressão. Ele parecia estar dormindo em pé. Dormindo em paz.

Moveu quase imperceptivelmente a cabeça branca. Depois me convidou a entrar afastando-se para o lado.

Na sala havia apenas um tatame onde nós dois nos sentamos quase ao mesmo tempo. Um de frente para o outro com as pernas cruzadas e sem sapatos. Já convivi muito com os japoneses do Paraná. Os tatames não me assustam mais. Mas confesso que dessa vez busquei com os olhos uma almofada à mão. Em vão.

— O que me traz aqui é o sumiço de um bonsai – eu disse sem rodeios. – Uma moça que é sua vizinha me disse que o deixou nesta sala há alguns dias...

O rosto dele continuava sem expressão. Uma máscara. Então continuei:
— Mas quando ontem à tarde ela voltou a esta casa a arvorezinha tinha sumido.

O japonês não emitiu nenhum som. Parecia mudo ou talvez de fato não falasse língua nenhuma. Assim diziam as más línguas do bairro.

Era quase certo que ele não tinha talento para línguas. Mas compreendia certamente português. Pois não só me convidara a entrar como agora me ouvia atentamente sentado diante de mim. Fez um pequeno gesto com a mão como se me pedisse calma.

Eu estava mesmo prestes a perder a paciência por causa de uma vontade premente de ir ao banheiro e exclamei:
— Onde terá ido parar esse bonsai!

O japonês então se levantou e saiu da sala em silêncio. Eu disse baixinho para mim mesmo:
— Foi buscar o bonsai.

Desdobrei as pernas e me sentei informalmente no tatame. Esfreguei as mãos nos joelhos. Tudo fora resolvido com uma conversa franca.

O japonês voltou com um bloco de papel e uma caneta. Sentou-se diante de mim e rabiscou alguma coisa numa folha. Estendi a mão. Pois percebi que aquela folha me era destinada. Ele me entregou a folha.

Pus os óculos e li nela esta frase:
“Ele o espera na casa ao lado.”

Sorri. Finalmente o caso estava resolvido e encerrado. Guardei a folha dobrada no bolso do paletó e disse ao japonês:
— O senhor escreve muito bem na nossa língua.

Ele não agradeceu o elogio.

— Já estou indo – eu disse me levantando do tatame com certa dificuldade. Calcei os sapatos e pedi para usar o banheiro.
 
O japonês me acompanhou até a porta da frente. Chuviscava. Abri o guarda-chuva e saí para a rua.

Depois bati palmas no portão da casa ao lado. Era não só idêntica à casa anterior como também estava colada nela. Quase imediatamente a porta se abriu e surgiu à minha frente outro japonês de cabeça branca. Tinha a cara enigmática ou inexpressiva do outro. E talvez a mesma idade. E a mesma altura.

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O segundo japonês vestia um quimono. Mas não foi isso o que mais me impressionou. E sim o fato de que era provavelmente irmão gêmeo do outro. Pois só gêmeos são tão parecidos entre si como aqueles dois.
A chuva engrossara de repente.

— Será que posso falar com o senhor? – eu pedi já abrindo o portão e entrando no jardinzinho da sua casa.

Depois de fechar o guarda-chuva eu acrescentei:
— Me perdoe a invasão.

O japonês parecia estar dormindo em pé. Como o outro. Dormindo em paz.

Ele se afastou da porta e eu entrei na sala depois de tirar os sapatos.

Na sala havia duas poltronas confortáveis onde nos sentamos. Eu esperava um tatame apenas. Passei os olhos pela sala. Vi num canto o bonsai. Estava no chão perto da janela fechada. Ali tomava sol e vento nos dias de bom tempo. Era uma arvorezinha de tronco curto e galhos retorcidos cobertos de folhas verdes.

Suspirei aliviado.

— Ali está o bonsai! – exclamei me erguendo da poltrona e caminhando até ele.

O japonês permaneceu sentado na sua poltrona de costas para mim.

Então me inclinei e peguei o bonsai. Não pesava nada. Depois voltei até o centro da sala. Sem me sentar na poltrona disse apenas:
— Vim buscá-lo a pedido da sua dona.

O japonês balançou duas vezes a cabeça concordando.

— Obrigado por ter tomado conta dele – disse realmente agradecido enquanto me dirigia para a porta.

O japonês me acompanhou e segurou o bonsai enquanto eu amarava o cadarço dos sapatos.

— De nada – ele disse baixinho quando me passou o bonsai. Eu já havia aberto o grande guarda-chuva negro.

— O senhor fala a nossa língua! – eu exclamei debaixo do guarda-chuva. – E sem sotaque!

— Moro no Sul há muitos anos – ele confessou.

— Mas não nos conhecíamos ainda – eu comentei voltando para mais perto da varanda.

— É que eu e meu irmão nos mudamos recentemente para esta rua.

— Os senhores moravam no interior?

— Em Maringá.

Antes de ir embora definitivamente pedi para usar o banheiro.

Então compreendi tudo.

Caminhando na calçada em direção à minha casa com o bonsai numa mão e o cabo do guarda-chuva na outra solucionei o caso definitivamente.

Pareceu-me evidente que a avoada dona do bonsai o deixara na casa do japonês falante e depois fora buscá-lo na casa do japonês mudo ou taciturno. Sem ter dado pelo engano. Completamente avoada! Ou desinformada. Pensara que só havia um japonês na rua. Mas havia dois. E um escrevia bem e o outro falava melhor ainda.

Continuei caminhando e avistei o meu pinheiro no meio da outra quadra. O bonsai me pareceu um gato. Se não estivesse chovendo ele até poderia saltar do meu braço e fugir correndo pela rua. Foi uma fantasia que logo varri da mente. O fato é que eu havia reconquistado o bonsai!

Não entendo muito de bonsai. Mas sabia que era preciso regá-lo todos os dias pela manhã. E expô-lo ao vento.

— Eis o que ganhei por ter resolvido esse caso tão cedo!

Agora não poderia mais viajar. Mas a verdade é que raramente viajo. Só temo que a sua dona se esqueça dele e não venha nunca mais buscá-lo.

Sérgio Medeiros
nasceu em Bela Vista (MS) e atualmente reside em Florianópolis (SC). Ensina literatura na Universidade Federal de Santa Catarina. Traduziu ao português, entre outros, o poema maia Popol Vuh (Iluminuras, 2007), em colaboração com Gordon Brotherston. Publicou, entre outros, os livros de poemas O sexo vegetal (2009), finalista do Prêmio Jabuti 2010, Figurantes (2011) e O choro da aranha (2013). O texto publicado nesta edição do Cândido é um fragmento do livro inédito O giro dos insetos que será publicado em 2015 pela Iluminuras.

Ilustrações: Fabiano Vianna