Em busca de Curitiba - 26 dedos

Ilustração de Guile Dias
O escritor Alexandre França é o segundo convidado da nova seção do Cândido, que abre espaço para ficção inédita inspirada na Curitiba contemporânea


I

Não tinha exatamente um rosto aquele enorme pedaço de madeira podre. Ainda assim, era fácil identificar olhos e insinuações sempre que mudávamos o ponto de vista acerca da perdida criatura. Ajoelhado, coberto de curvas e setas tortas, pendia exaurido para dentro de um computador de mesa de três geração passadas. Pulsava e engolia o cinza da atmosfera de mofo. Suas artérias latejavam e empalideciam de quinze em quinze segundos, como se esperassem o lento bombear da terra regurgitando o sangue de seu funcionamento. Sua movimentação sutil não era perceptível a olhares apressados. Possuía uma estranha ondulação de lesma que nos obrigava a contemplar por horas sua dança, na escuridão latente daquele subsolo aberto ao céu nublado da madrugada. Seus vinte e seis dedos digitavam ad libtum uma redação em fluxo, como um motor recebendo curto-circuitos, em intervalos que duravam de cinco a dez minutos de pausas assustadoramente silenciosas. O monitor, preso aos galhos retorcidos da máquina orgânica, ligava sua luz azul a cada sessão de escrita. Não havia luz onde ela estivesse. Seu corpo apagava as luzes todas. Assistíamos ao seu funcionamento somente pelo brilho azulado do monitor embolorado. Não possuía cheiro ou temperatura elevada. Sua presença era igual a presença de uma rocha invisível no meio do oceano. De manhã, ao acordar, ela passou por esta máquina sem órgãos cinco ou seis vezes seguidas, procurando um objeto no chão, ou em gavetas do armário. Era impossível notar o tronco podre de madeira apagando a luz amarela da sala.

II

A tolha de mesa possui raízes que se entrelaçam entre os meus dedos enquanto escrevo o ritmo dilatado dos passos invisíveis. São folhas de samambaias bruxuleando o tambor das pulsações das palavras que me atravessam minuto após segundo após mês após ano após século. Por onde agora minhas artérias, por onde agora o meu sangue roxo de ameixas, amêndoas e amoras? Ela virá e derreterá aos meus pés sua pele doce açúcar cristalizando, o xarope para a tosse das paredes mofadas. Ela e sua distância calculada de gestos. Sua ternura fria e agasalhada com vestidos de gala em festas vazias de convidados. Sempre aquela espera no saguão e as bexigas decorativas murchando murchando esperas. Sua luz de véu me lambe os ouvidos com ideias prontas. Aquelas que construímos no inicio da nossa soldagem. Meu corpo começa a digitar no começo do sol e pausa depois de dois mergulhos do sol que nos queima as pestanas dos quadros das quinas e paredes deste labirinto retilíneo. Ouço o barulho das escadas mastigando passos. Ela virá me alimentar? Será hoje que irei sorver da água a banhar seus dedos morenos de tinta e solidão? Por hoje por hoje só por hoje escrevo como quem morre dezenas de vezes no buraco negro de seus pesadelos. Estou neles, acenando com a mão, pedindo que volte para o almoço, para o jantar, para a minha boca faminta. O céu é nosso nestas noites trancafiadas, onde as turvas linhas do destino se embaraçam de medo. Há uma câimbra castigando com agulhas e ferrões os meus vinte e seis dedos. Sinto nas articulações deles o peso dos anos. A dança dos ossos das minhas mãos, precisa-rápida-densa-e-suave, já não mais responde aos anseios subjetivos daquela mulher. Agora ela está ali. Na escuridão deste cheiro de mofo — suas córneas são faróis de socorro. Ela, estática, não parece querer travar contato com as minhas novas palavras. Nosso diálogo se dava através de novas palavras. Teria ela enjoado desta coreografia de signos de invenção de afago espiritual? Por onde andará seu alfabeto não criado? Seus olhos desapareceram entre o meu contemplar e o minuto distraído em que olhava para a tela tentando conferir o resultado oblíquo da eterna digitação desgovernada. Por onde agora te espero em meus pensamentos não concluídos? Olho novamente para ter certeza, meu terceiro nariz inventa o cheiro da água que ela posicionou na ponta da mesa tomada por trepadeiras e aranhas marrons. Meus dedos já se acostumaram com as picadas das aranhas e das vespas que rodam a casa ao lado. Há ninhos de vespas por toda a quadra. Ela poderia ter espalhado estes ninhos para a proteção da cúpula de respiração rarefeita feita com a criação das novas palavras. Por onde, por onde se move se contorce e me lembra? Ouço o ruído dos ratos que já se conformaram com a minha indigesta presença. Eles rastejam, passam ruidosos raspam o chão de madeira envelhecida, como um rio poluído por entre os meus pés aterrados. Rombo a calha que me contorcia pelas muralhas de letras das minhas sinapses. Ela não vem como vem os ratos e baratas do meu solo aterrado e gélido. Por onde agora ela deve estar combinando um novo universo de frases a meu respeito? A fala, que cor a fala dela, que cor? O gosto eu já perdi há muito e ainda estala um anúncio entre os meus lábios e salivo a procura da língua a procura do gosto a procura de sangue e açúcar e digestão. Sempre ela aqui roendo as dobras que nos fazem nômades. E o rapto do escuro no centro do seu ventre. Com uma sonda. Um buraco negro sugando a minha ideia de existência em sua mente. Em sua neblina, em sua medula. Invento os cheiros que derivam dela. É a única maneira de assistir as cores por aqui. Faz tempo, a escuridão inundou de abismo este subsolo.

III

Hoje finalmente consegui dormir — com quantos remédios poderíamos controlar a ansiedade do mundo? Carregamos a memória da existência. Sempre estes momentâneos lapsos de existência e pronto — logo acordo estriquinada frente a minha realidade. Poderia ficar mais um pouco debaixo da coberta. Me embalo. Meu casulo escuro, úmido e quente me recebe de braços abertos. Minha casa nova. Minha primeira noite. Segura. Minha nova vida dá sinais de fumaça com esta mudança de espaço. O piano foi a última coisa a chegar. Sem ele, não poderia chamar esta casa de minha. Aliás, fiz questão de não saber a história dos antigos proprietários. Agora pássaros cantam por aqui, é o que basta. E o meu desejo de exterminar os insetos do universo continua intacto. O armário está aberto, me espera ofegante. Escolho o roupão e as pantufas. Desço. Abro a geladeira e o sol empapuça de branco os azulejos da cozinha. São seis, agora. Um começo de manhã. Bem o comecinho. Posso sentir o sol rompendo o cinza da noite com seus raios alaranjados e avermelhados. Um cheiro de infância me percorre. Cheiro de mato — campo aberto. Prendo os cabelos. Sinto uma leve brisa acariciar a penugem do meu pescoço longo. Vou para a sala e começo a aquecer as mãos. Escalas maiores e menores. As teclas brancas do piano amarelaram com o sabor do meu exercício diário e constante. Como se o meu suor, a extensão do gesto sonoro, marcasse para sempre os membros pálidos daquela máquina de produzir tons. Paro. Volto à cozinha. Bebo um copo d’água e percebo o sol aumentar sua intensidade. Reviro as caixas da sala a procura de um livro de receitas. O meu primeiro sábado aqui merece um bolo de banana igualzinho ao da avó. De quem estamos falando quando olhamos pela primeira vez num espelho trincado do quarto de hóspedes? Ovos, farinha, manteiga, banana. É claro que terei que comprar os ingredientes, a geladeira está tão fria quanto vazia. Mais uma facilidade: há um mercado há quatro quadras daqui. Poderia tomar coragem e logo conversar com os vizinhos. Eles devem refletir o clima amistoso dos ipês floridos enfeitando o caminho das ruas do meu novo bairro. Pego minha bicicleta rosa com cestinha. Coloco um capacete igualmente rosa e saio pedalando até lá. Um mercadinho daqueles simpáticos, de cidade do interior. Entro no recinto e um cheiro de frutas frescas me invade, corpos quando queimam possuem esta textura de pêssego, dou bom dia à única caixa atendendo aquele horário. Ela retribui levantando o dedo polegar da mão direita. Está absorta em um catálogo de roupas íntimas. Come mecanicamente uma barra grande de chocolate diamante negro. Vou até a seção de frios. Peço algumas gramas de presunto e queijo. Compro um cacho de banana, uma caixa de ovos, farinha, manteiga, sal, açúcar, e as coisas que a vovó gosta de comer são as coisas que sua netinha também gosta, vem aqui, a vó quer te contar uma longa e assustadora história. Compro também laticínios. Uma caixa de cereal. Três barras de chocolate. Pizzas congeladas. Dois litros de coca-cola. Como levarei tantas coisas de bicicleta? A atendente demora a registrar todos os produtos. Aquilo me invade de impaciência e pânico. A próxima fase é fácil, é só você apertar enter toda vez que a pedra levantar, lembra de quando choramos no porão lá de casa? Um soco no estômago pode doer muito mais depois. E as coisas que esqueci de levar, penso que poderia encher um caminhão de comida. Volto pra casa sedenta pela construção do bolo. Tomo um iogurte de morango no caminho. Arremesso a embalagem e ela cai exatamente no meio de uma lixeira agora há dois metros de mim. Entro na sala e um odor de mofo me invade de repente. Espirro umas cinco vezes, formatando o prelúdio de uma rinite crônica. Morar numa casinha de madeira não é tão glorificante quanto promete a sua fachada. Abro as caixas, pego as panelas, quebro os ovos, entorno a farinha, misturo os ingredientes de acordo com a receita. Ouço estranhos estalos ecoando pelas ripas do telhado antigo. Não é a toa que as duas janelas principais estão levemente empenadas. Uma goteira respinga uma água turva na mistura que deveria ir ao forno em poucos segundos.



Alexandre França é autor da peça Final do mês e do livro Mata-borrão, batom. Também lançou o disco A solidão não mata, dá a ideia. Vive em Curitiba (PR).