Em Busca de Curitiba | Antonio Cescatto

Isso não é um conto

Guilherme Caldas

1.
Ana está pensando. E no que ela pensa, exatamente? Ora, no que todos pensam quando refletem sobre esse tipo de coisa: amor, traição, banalidades. É assim que a coisa vem para Ana: confusa, desarticulada, imprevisível. Principalmente quando se trata dela e de João.

Sentada na mesa da sala, com as mãos nos olhos, ela não vê os prédios empilhando- se no Champagnat. Ana olha para dentro, articula, levanta hipóteses, tira conclusões. Entre todas, a conclusão que lhe parece mais importante neste momento é esta: João é um paradoxo.

Sim, essa é a melhor explicação, se é que explicação é uma palavra que se aplica a um paradoxo. João. Um paradoxo. Não há outra forma de defini-lo.

Ele sempre parece certo; até que é tomado pela dúvida. Então torna-se irritado, impaciente. Já tiveram várias fases. Teve aquela do não sei porque estamos juntos. Depois veio a outra, a do aonde vai nos levar essa coisa toda?

Nesse instante, eu não sei o que dizer para João, ela pensa. Tenho vontade de mandá-lo ir tomar um banho, preparar alguma coisa, mas prefiro não dizer nada. Vou lá e faço. Antes assim.

Pronto. O macarrão está na mesa. Alho e óleo, como você gosta. Não vem jantar? Pelo menos abra o vinho. Não é isso que cabe a um homem: o vinho, as contas — e o que mais, mesmo? Carmenére? Sim, gosto. Prefiro aos mais densos, disso ele sabe. Uva leve.

João come sem olhar para mim. No que ele pensa? Que importa. Já não ligo para o que ele pensa ou deixa de pensar. Ou pelo menos gosto de acreditar nisso.

Quem disse que vida a dois é fácil? Mas também é melhor do que viver sozinho.

Será mesmo?

Às vezes penso que não. Mas quando olho essa gente triste, com seus gatos, ou suas viagens intermináveis — bem, tem gente que diz que não troca isso por nada.

Já quem vive a dois prefere não abrir a boca (na maior parte das vezes, se você me entende). Melhor do que ficar revelando cobras e lagartos, correr o risco dos clichês, tudo tão patético.

Nunca são apenas dois. São, no mínimo, seis. O casal e os casais de cada respectivo. Isso, pai e mãe, se você me entende. E tudo que ficou guardado nas gavetas.

Porque existem as gavetas. Tem a gaveta do positivo e a gaveta do negativo. O problema é que os conteúdos das gavetas se misturam. Foi uma boa explicação, essa do Doutor Magno. Os conteúdos se misturam e as gavetas começam a atirá- -los na sua cara. Um tiroteio, se você me entende. Você recebe petardo dos dois lados, não sabe mais o que é da sua gaveta e o que é da gaveta dele.

Tão simples a fórmula: o positivo e o negativo. Até que se misturam. O bóson de Higgs, não é isso?, que explode em milhares de estilhaços.

Somos nós.

Os dois, agora, estatelados na frente da TV. Deutsche Welle.

O programa é sobre turismo. Turistas visitando castelos alemães. Aparece o casal-guia da excursão. Uma japonesa e um alemão. Falando português. No canal alemão. Bizarro.

A explicação (teimei com essa palavra, não sai da minha cabeça): ela, japonesa de São Paulo. Liberdade. Ele, de Dusseldorf. Casaram. Ele aprendeu a língua dela (português, no caso). Férias na Alemanha. Guias da Deutsche Welle.

O mundo é cada vez mais bizarro.

Imagine a cena, João: uma família no carro, entrada de shopping. Homem aperta botão, sai o cartão e a voz gravada: “Sejam bem-vindos ao shopping tal…”. Só que em japonês. Não seria um bom comercial?

João a olha de lado.

Porque você insiste em ser criativa? Não é a tua área. Não é a tua praia, se é que você me entende. E ele diz isso com uma ponta de ironia nos lábios, como se denunciasse a minha expressão favorita.

Tá, eu admito que uso muito isso — se você me entende. E que a tradução do inglês é chula. If you know me é bem diferente de Se é que você me entende. Mas não vamos cair naquele porre de discutir o que é e o que não é tradução. Transdução, qualquer dia vão inventar o termo.

Papo de universidade. Conversa de professor. Palavras são coisas diferentes em línguas diferentes. Não podem dizer a mesma coisa para um brasileiro e para um americano, ou para um inglês, se você me entende.

Tudo isso eu digo para mim.

Prefiro não dizer para ele.

Bebemos o último gole de vinho e vamos para a cama. Ele pega um livro de aforismos e começa a ler. No terceiro aforismo já está dormindo. Coitado, trabalha tanto. Virou duas noites por causa de uma campanha. Estranho isso, virou duas noites. Eles adoram. Sentem-se mais potentes, poderosos, se você me entende.

Eu fico olhando pro teto tentando entender a que me leva tudo isso. Por que eu não tenho vontade de dizer nada para o João.

O que vou fazer amanhã?

Tem o banco, tem a máquina de lavar roupa, tem aquela reunião chata com aquele cliente insuportável. E tem o almoço. Não posso esquecer de ligar.

De repente começo a sentir tesão, não sei porque, não sei de onde, não sei o motivo. Eu não deveria sentir tesão assim, sem o menor motivo. Talvez fosse melhor esquecer, apagar, dormir. Mas meu dedo age em direção contrária. A excitação vai aumentando. Nem o ronco de João é capaz de me perturbar. Ele nunca vai curar desse ronco, mesmo. Tudo que eu sugeri pra ele fazer, ele não fez. Pensei até em camas separadas, mas essa cama é tão boa e comprar outra igual é muita grana. Começo a gemer baixinho; meu corpo dobra; seguro o gemido pra não gritar quando começo a gozar. João se vira na cama. Para de roncar. Mas continua dormindo. Eu viro para o lado e durmo também.

2.
Sabe o que eu mais admiro em você?, João pergunta, no momento em que Bárbara larga a aquarela e senta na cama. Não, Bárbara responde, mexendo nos cabelos, me diga. Você não tem pena de ninguém.

João tinha acabado de contar a história triste de um amigo cujas fontes seguras de renda haviam se evaporado com as mudanças eleitorais recentes, deixando- o diante de um labirinto insuperável; Bárbara não tinha movido um músculo com a história: e ainda fez questão de perguntar: E qual o teu grau de felicidade diante disso?

João sentiu-se no ar diante da reação. Era ele, afinal, que tinha falado tão mal do amigo durante toda a campanha, queixando-se das artimanhas que ele utilizava para definir o rumo de alguns programas. Por que vinha agora com aquela conversa fiada sobre a situação periclitante?, ela parecia dizer.

Era isso que o atraía nela. Não tinha complacência com os sentimentos verdadeiros. Via, dentro deles, um movimento de massas disformes, sem controle, disfarçadas por preocupações nobres com o outro. Ora, o outro deixava de existir quando ela vinha com seus aforismos de perplexidade, sua forma rude de desmontar as máquinas humanas mais complexas. João sentia–se desarmado e forte ao mesmo tempo. Comparada a Ana, ela era instigante, contundente, mordaz. Não sabia porque, mas aquilo exercia um poder muito forte sobre ele.

Com uma simples palavra, ou mesmo com um silêncio, seguido daquele olhar desconcertante, Bárbara o hipnotizava. Era essa a a palavra: hipnotismo. Ela não se importava em olhar nos olhos depois de dizer o que dizia. E o olhar de Bárbara, naqueles momentos, era como uma lâmina fina que o perfurasse e drenasse o foco inflamado. Não havia exagero nessa metáfora médica; era isso que ele sentia: dor e alívio ao mesmo tempo; a insegurança e o conforto. Deparar-se com a futilidade de seus grandes personagens era o que Bárbara provocava, bem ao contrário de Ana.

Ana não o via. Ou talvez fosse melhor dizer que ele não via esse olhar nela. Ana dispersava-se em outros mundos; Ana ligava a televisão; depois, dizia qualquer besteira; ria-se da própria piada; ignorava-o. Bárbara tinha outro jeito de se comportar diante das coisas. Suas palavras eram ditas no tom certo, na modulação exata e na pressão infalível — ou infalável, ela uma vez havia definido. Ana protestaria, gritaria, então entraria em longos períodos de distanciamento, como se afundasse em um torpor de náufrago que se despreende da tábua, depois de horas grudadas nela. Bárbara não sucumbia sem lutar. Seu silêncio era um desafio. Prostrava-se diante dele e olhava-o nos olhos, emparedando-o. Ana era a certeza; Bárbara era o perigo. Entre as duas, ele não tinha dúvida sobre a que preferia.

3.
João está pensando. E no que ele pensa, exatamente? Ora, no que todos pensam quando refletem sobre esse tipo de coisa: amor, traição, banalidades. É assim que a coisa vem para João: confusa, desarticulada, imprevisível. Principalmente quando se trata dele e de Ana. Porque entre ele e Ana existe Bárbara. Porque entre ele e Bárbara existe Ana.

Sentado à mesa da sala, com as mãos nos olhos, ele não vê os prédios antigos da Comendador Araújo. João olha para dentro, articula, levanta hipóteses, tira conclusões. Entre todas, a que lhe parece mais importante neste momento é esta: isso é um paradoxo. Ou será esquizofrenia?

Eu sempre tive dúvidas.

Tinha certeza que não pensaria duas vezes quando encontrasse alguém como Bárbara.

Então encontrei Bárbara.

E não sei o que fazer com Ana, isto é, não sei o que fazer com Ana dentro de mim. De repente sinto vontade de voltar para ela e ficar apenas lá, com ela.

4.
João é um paradoxo.

Ana é um paradoxo.

E Bárbara, é o quê?

5.
João despede-se de Bárbara. Sabe que é a última vez, mas não diz. Enquanto isso, Ana coloca água na panela grande. Ele que decida do que vai ser o macarrão, ela pensa. Depois disso, ligamos a Deutsche Welle e damos alguma risada. Daí então a gente vai dormir.

6.
Quando conversam, à noite, João fala pela primeira vez na vontade de ter um filho.

Olhando a Deutsche Welle.

Fala assim, sem alterar o tom de voz.

 Ana vira o rosto para João.

Ele não pode estar falando sério.

Volta a olhar a Deutsche Welle.

E volta a olhar para João.

Ele está falando sério.

Sim, eu gostaria, ela diz.

E talvez até com você.

Se você me entende, claro


Antonio Cescatto é escritor e poeta. Autor do romance O mundo não é redondo, também publicou as novelas Preponderância do pequeno e Cloaca. Nasceu e vive em Curitiba (PR).

Ilustração: Guilherme Caldas