A Cor Branca da Amizade

Paulo Venturelli

diogo


A tarde estava tão ensolarada que as janelas pareciam levitar, despregando-se das paredes. Padre Moretti, professor de português, leu para nós um poema sobre o edelvais. E nos explicou: é a flor da amizade, só dá em grandes alturas, na beira de abismos de mais de três mil metros. Colhê-la e oferecer a alguém é o maior gesto de apreço que se pode fazer a uma pessoa, pelo esforço da aventura.

No pátio, eu e Avivan comentamos a respeito do assunto. Ele era o único garoto negro do internato. Eu o adorava por sua agilidade, bom humor e auto-ironia. Apesar de ter um corpo firme, bem desenhado, quando saltava, possuía a leveza de quem se desmancha no ar. Seus olhos estanhados lembravam dois sóis. Havia comentários maldosos sobre nós:

– Tá usando o neguinho como burro de carga, é?

– Vai fazer do nego o teu escravo?

– Naquela noite, furtivo e silencioso no seu jeito, Avivan chegou até minha cama e sussurrou:

– Vou pro mundo. Quero encontrar a flor pra te trazer. Claro que vai demorar, mas não volto sem a branquinha.

Ele portava a mochila no ombro. Desapareceu na névoa em torno da única luminária acesa pelos lados do portão.

De manhã, o reitor me chamou. Havia alvoroço por causa do sumiço do “nego”. Interrogaram sobre as razões. Eu disse que não sabia de nada e o caso morreu ali mesmo.

Meses depois, foi minha vez de abandonar o colégio. Estava cansado daquilo tudo. Usei a via clássica: no gabinete solene, declarei que perdera o interesse pelos estudos. Arrumaram minha papelada, enquanto fiz as malas e mergulhei na liberdade.

Fui me virando como deu. Até concluir o curso de filosofia e me tornar professor. A vida se tornou agradável. Casei e tive dois filhos que morreram num acidente banal. Andavam de bicicleta lado a lado, resolveram se dar os braços. Talvez quisessem comprovar o quanto gostavam um do outro. As rodas se trançaram e eles caíram. O caminhão que levava flores para uma cerimônia cívica no palácio do governo esmagou os meus garotos. Quando minha mulher soube do ocorrido, não suportou a ausência e se suicidou. Acho que ela jamais soube a extensão, o vetor, a consistência, a incrível durabilidade da falta. E eu acabei por me aposentar.

Hoje, meu irmão veio falar comigo. Para ele, é um desperdício eu continuar sozinho neste casarão. Garante que pode alugá-lo para uma agência publicitária. Isso daria bom dinheiro para nós. Para nós? Diz que num asilo terei melhor atendimento e convivência para abrandar a solidão. Acho que ele jamais soube a insistência, o ferrão, a profundidade, a devoradora acidez de se estar sozinho.

Avivan nunca voltou. E o que importa isso ou uma flor? Marcou-me o seu gesto. Por ele valeu a própria vida. Que amigo hoje sai pelo mundo em busca de algo para outro amigo? Que Alpes alguém divisa em frente dos olhos?

Vou para o asilo. Lá, certamente, há janelas iluminadas e capazes de flutuar na transparência. E eu espero, pois foi esse o modo de conviver comigo mesmo e com a saudade. Não foi muito difícil.

Acho que o mundo podia ser simples assim.


Paulo Venturelli é escritor e professor universitário. É autor, entre outros, do livro de contos Fantasmas de caligem (Travessa dos Editores, 2006) e do romance Meu pai (Kafka, 2010). Vive em Curitiba (PR).

Ilustração: Diogo Salles