Contos | Estevão Azevedo

Duas bocas e um ouvido

                                                                           Ilustrações André Ducci
andré ducci

De Antirésio dizia-se que sabia ouvir. Fosse qual fosse a confidência, o povo de Quetatá logo recomendava: “Diga a Antirésio, pois ele, sim, entende o que a gente fala”. E, sem demora, ávidos por alguém que ouvisse suas longuíssimas lamúrias com ouvidos de quem sabe o que fazer, partiam em direção à casa que ficava no pequeno vale, a poucos quilômetros da cidade. Seu Antirésio, como era respeitosamente chamado, era um sujeito reservado, de pouca prosa e avesso a futilidades. Pelo menos era o que comentavam as senhoras, do alto de suas janelas, vigiando sem o menor constrangimento a rotina das pessoas. Nunca fora visto desperdiçando palavras entre uma jogada e outra de dominó, na praça central. Limitava-se a prestar atenção ao adversário, esse tão voltado a si mesmo que invariavelmente perdia o jogo. Outros incautos, que mal sabiam as regras do jogo de tranca, aventuravam-se à mesa somente para ter a oportunidade de estar ao seu lado.

A filha estava grávida e o pai era desconhecido: “Vá ter com Antirésio!”. O gado subitamente adoecia: “Não demore a contar a Antirésio”. Um menino viu descer do céu uma nave brilhante que desapareceu à chegada dos pais: “Esperem só até seu Antirésio saber!”.

O pároco, injuriado, percebeu seu rebanho cada vez mais pastando em torno do velho Antirésio e decretou confissão obrigatória toda semana. Com as espiãs sempre a postos nas janelas, ai de quem desobedecesse ao pedido de Deus e evitasse o confessionário. Aconteceu que os métodos do pároco não agradaram à população de Quetatá. Quando as histórias de suas aventuras rotineiras e de seus comemorados pecados chegavam àquele ponto em que os olhos brilham pelo simples ato de rememorar, lá vinha o padre, presença inoportuna, perguntar se estavam arrependidos e recomendar algumas ave-marias ou alguns pais-nosso. Insatisfeitos pelas interrupções, os fiéis corriam para a casa de Antirésio e não saíam antes de a escuridão se derramar sobre o vale. 

O próprio padre, desesperado com a ineficácia de suas palavras, rendeu-se. Se era Antirésio quem eles ouviam, iria ouvi-lo também, para saber o que fazer. Nessa noite, Antirésio, bombardeado com palavras santas, apenas curvava levemente a cabeça, concordando cada vez mais e sempre com o vigário. Ele encantou-se de tal modo com a própria confissão que, desde então, multiplicaram-se em Quetatá os boatos de que uma alma penada de capa preta e crucifixo é vista rondando a pequena estradinha de terra, todas as noites. 

Os ouvidos que aguentavam choro de pobre também toleravam desalento de rico. O prefeito de Quetatá envolveu-se em um escândalo e, acuado, decidiu recorrer aos ouvidos de Antirésio. Sua esposa, preocupada com a reputação dos filhos na escola, questionou: e se ele contasse a alguém? Estariam acabados. O prefeito sorriu de orelha a orelha e bradou: “Pois saiba você que eu mais de mil vezes estive naquela casa e nunca ouvi uma palavra sequer da boca do velho! Ele é um túmulo”. E era. Assim que chegava à praça, aglomeravam-se à sua volta os desocupados em busca de conselhos. O primeiro a falar, quer por ter gritado mais alto, quer por ameaça física, quando se calava e se preparava para escutar o comentário final e definitivo, ouvia do meio da multidão uma segunda voz, que logo iniciava sua história e que, ao término, também era surpreendida por um terceiro falante; e assim seguiam-se, até que seu Antirésio se espreguiçasse, levantasse e fosse embora.

Na ânsia de serem ajudadas, as pessoas passavam o dia a contar pormenores e, no fim do invariavelmente longo monólogo, insistiam para que o velho esperasse até o dia seguinte para aconselhar, pois amanhã lhe explicariam melhor os pontos obscuros e trariam novos detalhes importantes. No dia seguinte, ao verem mais uma tarde findando, lembravam-se de nuances que levariam a outra fala e outra e outra e outra.

E outra e outra, até que certa tarde, com centenas de histórias ainda incompletas, seu Antirésio sentiu-se mal e subitamente fechou os ouvidos para sempre. A comoção foi geral, o prefeito decretou feriado e o padre fez um discurso emocionado, que terminava solenemente assim: “Quetatá perde seu mais ilustre e sábio cidadão, que com suas iluminadas palavras fez de nós o que somos hoje. Que elas não sejam jamais esquecidas. Amém”.


O paladar de Rabelar 

andré ducci


Para bom entendedor, meia mordida basta. Estivesse faminto, para Rabelar meia mordida era mais que suficiente para começar a receber, não sabia se vindas do estômago, informações sobre a vida passada, presente ou futura do cozinheiro. Não se considerava um paranormal, tampouco creditava à intuição o fluxo de dados que lhe vinha à mente ao mordiscar a pontinha de uma rabanada. Acreditava em algo físico, que do cozinheiro passava para a comida e que somente seu paladar decodificava. Seus pais, da geração paz, amor e uma folhinha de alface sem tempero, haviam-no condicionado a uma vida frugal. Nos tempos idos, comia com remorso qualquer coisa que tivesse sido esquentada por mais de cinco minutos.

Mais velho, já morando sozinho, instintos primitivos se apoderaram de Rabelar, que não resistiu aos encantos da chuleta, do toicinho e do galeto. Seu dom começou a manifestar-se. No início, na forma de uma leve empatia, uma sensação agradável de que a figura de avental engordurado diante da chapa era um velho amigo de infância, tal a impressão de já conhecê-lo. Logo percebeu as dimensões do legado. Não resistiu à tentação de dizer à senhora japonesa da barraca de pastéis que fechasse meia hora mais cedo, a tempo de chegar em casa e ver seu marido preparando a massa da vizinha. 

Ele mesmo não sabia cozinhar nada. Quando tentou aprender, assustou-se. Comer o próprio ovo frito era uma experiência de autoconhecimento. Os boatos de que o rapaz da casa da esquina lia a sorte nos alimentos fez com que surgissem os primeiros movimentos em sua porta. Logo, a coisa tomou tal proporção que, já pela manhã, da esquina de baixo era possível sentir o aroma dos pudins de leite, rissoles, brigadeiros e outras delícias que o povo da fila trazia para Rabelar. Ele recebia a todos, até que em seu estômago não coubesse nem mais um grão de arroz. E lá se iam as pessoas que não tinham conseguido ser atendidas, tristes com os quitutes intactos, que fariam a alegria dos parentes ou dos amigos de trabalho. No dia seguinte, mais uma vez, estariam lá com seu frango com polenta, seu rocambole de doce de leite, atrás de palavras que os fizessem entender um pouco melhor as receitas de suas vidas.

O número de pessoas contempladas a cada dia dependia de inúmeros fatores, o que tornava a espera imprevisível. Se, digamos, logo de manhã, Rabelar estivesse de barriga vazia e a primeira pessoa da fila lhe trouxesse magníficos croissants, mal saídos do forno e ainda cheirando a manteiga derretida, seria impossível não se empanturrar, o que condicionaria as próximas visitas à eficiência de sua digestão. Ou, então, se um dos desesperados exigisse uma informação muito remota, de ingredientes raros, seria preciso uma farta porção para que as respostas viessem à mente de Rabelar. Em qualquer desses casos, a insatisfação na fila cresceria, mas a fidelidade ao visionário permaneceria a mesma. 

Como todo fenômeno, Rabelar provocou controvérsias. Certa dona de casa, ao sair realizada graças ao acerto de suas confortantes palavras, espalhou na fila o boato de que o manjericão, combinado com outras dezesseis ervas, aguçava sobremaneira as qualidades do oráculo. E passou a vender a receita na fila, inicialmente de pessoa em pessoa, depois em uma barraquinha modesta, até que, por força da propaganda, foi chamada por uma editora para lançar um livro de culinária espiritual, com receitas que amplificavam o poder de previsão e aconselhamentos. Estudando o livro, nasceram os primeiros discípulos de Rabelar, sem nenhuma autorização ou repreensão do original, que preferia manter-se independente dos pais e continuar a usufruir das refeições gratuitas. Poucos, entretanto, lograram sucesso na concorrência ao modelo. Não conseguiam resistir à vontade, quase visceral, de criticar os pratos preparados pelos fiéis, e, ao invés de falar de amores, carreiras e famílias, aconselhavam mais uma pitada de sal ou uma clara para dar liga.

Não é exagero, como dizem os incrédulos, atribuir a harmonia de vários casamentos a Rabelar. Os maridos, desejosos de saber sobre a vitória do time no campeonato ou a verdade sobre a história do amigo que dizia ter um caso com a gostosa do RH, aprendiam a fazer suas primeiras gororobas. Suas mulheres, felizes, incentivavam, afirmando com todas as letras da sopa que só assim eles seriam recebidos pelo mestre. 

Quis o destino que, aos trinta e três anos, Rabelar tivesse a última passagem livre em uma artéria entupida pela gordura da picanha que comera no almoço daquele dia. Ao sentir o latejar no peito, o mal-estar e o estômago trabalhando, Rabelar ainda era capaz de balbuciar palavras sobre o passado, o presente e o futuro do ilustre churrasqueiro que matara o grande mestre. 


Estevão Azevedo nasceu em Natal (RN) e é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP). É editor e escritor. Seu romance Nunca o nome do menino (Terceiro Nome, 2008, Record, 2016) foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2009. Tempo de espalhar pedras (CosacNaify, 2014), também lançado na Itália, foi eleito romance do ano pelo prêmio São Paulo de Literatura 2015.