Conto | Jacques Fux

Criação literária

1 . Entrevista
((ansiedade)) 12 de junho... acordei com uma ereção... ((suspiro)) tomei banho... passei o dia todo assim... e à noite comecei a me preocupar... ((tensão)) já era para eu ter me tocado antes... eu não tinha isso bem claro.... e começou a doer... aí eu comecei a procurar na internet — quais eram os problemas ... os riscos e tal —... fui para o hospital... não sei.... devia ter ido antes — mas não me lembro bem — ((olhar fugidio)) mas isso foi mais para frente que eu percebi... ((lástima)) assim... no começo... tudo era meio piada para mim... não compreendia muito bem o que estava acontecendo... ((tormento)) cheguei ao hospital falando que eu já estava há várias horas... que eu tinha acordado... não sabia... talvez umas vinte horas... ((respira- ção profunda)) não sei... e o médico ASSUSTOU... e a princípio todo mundo achou que eu tinha tomado Viagra... ou algum outro tipo de droga... NÃO é verdade... me levaram às pressas para uma sala para tentar fazer esse procedimento... o médico que me atendeu primeiro era bastante — era tipo — estava iniciando... era inexperiente::...((respiração ofegante)) estava um médico e um enfermeiro... — com essa história de duas agulhas... bastante dor... e apertando mesmo para ver se o sangue descia... se o sangue ia para outro lugar... — e depois de tentar tipo bastante tempo...— várias coisas assim —... várias coisas aconteceram... por exemplo... na hora de estarem apertando... PORRA... doeu pra caramba... estava apertando... puxando junto uns pentelhos... porra... DOEU muito... e os médicos falando... “NOSSA::... olha isso... nem mudou de cor... a galera — tipo — tenta ter isso e não tem... isso aqui por tanto tempo”.... um monte de histórias paralelas... chega um doutor mais experiente... eu já estava — tipo — há algum tempo fazendo o procedimento... imagino... aí ele falou... “vamos fazer outro procedimento... vamos fazer uma cirurgia” ((desolação))... um procedimento que faria mais quatro vezes... ((mudança de voz)) bom... fiquei no hospital quinze dias... ((desconsolo)) e sempre um tempo depois voltava... ((voz muito baixa)) e... nesse tempo também fizemos vários exames de sangue... vários exames tentando encontrar uma causa física para isso... e nada... NÃO tem nenhum tipo de anemia que pode dar isso ((desespero))... — não tem nenhum ( )...— e nada foi encontrado... então — tipo — propuseram que era ansiedade... uma causa psicológica... alguma coisa nesse sentido... ((lacrimejando))... ((amargura))

(...) bom... lá no hospital tava como se tudo fosse uma grande piada... ((sorriso)) o pessoal me chamava e falava... “esse negócio aí é dureza... viu” ((risada))... 

2. Pesquisa
Príapo, na mitologia grega, é o deus da fertilidade. Considerado o protetor do rebanho e de todos os produtos hortícolas, é sempre retratado com um falo imenso. Para especialistas, o mito sobre o tamanho do pê- nis de Príapo pode ser explicado a partir de sua filiação. Príapo, algumas vezes, é apresentado como filho de Afrodite e Dionísio e, em outras versões, como filho de Afrodite e Zeus. Zeus, segundo essa última variante, teria se apaixonado por Afrodite e a engravidado. Surge então Hera, a guardiã implacável dos amores legítimos que, tomada por grande ciúme de Afrodite, temeu que a estabilidade dos imortais se abalasse diante do surgimento de um novo deus, nascido com a incrível beleza da mãe e com o majestoso poder do pai. Assim, Hera teria dado um soco no ventre da rival, fazendo com que o menino Príapo nascesse com a deformidade de um pênis desproporcional ao seu corpo. Afrodite, muito receosa que ela e seu filho fossem ridicularizados e menosprezados pelos outros deuses, decide abandonar Príapo nos campos. O fragilizado menino é encontrado por pastores que se tornaram os responsáveis por sua criação.

Porém, embora nascido com um membro enorme, acredita-se que, em virtude do soco, o falo não tenha se tornado funcional. Uma outra possibilidade é que essa impotência seria causada por um castigo dos deuses aos homens. E, para se livrar desse terrível e abominável mal, iniciou-se o culto ao falo por meio da festa pagã chamada de Falofórias

Priapismo “é uma complicação, relativamente frequente, da doença falciforme” (anemia falciforme). Consiste em uma ereção peniana prolongada e dolorosa, não necessariamente acompanhada de desejo ou estímulo, que persiste por mais de quatro horas. Uma sequela comum, devido ao tratamento inadequado, é a disfunção erétil ou impotência. Essa doença foi descrita por Diggs, em 1934. 

(Freud, Petrônio, Ovídio, Rousseau, Platão, Poe, Montaigne, Dostoiévski, Lezama Lima, Bartleby, Bernardo Guimarães, Mal do Século francês, Hemingway, Joyce, Borges, Agostinho, Drummond, Pessoa, João do Rio, Bartleby, Ziraldo, Fux.) 

3.Subversão
Jamais je n’oublierai cette nuit. Jamais je n’oublierai cela, même si j’étais condamné à vivre aussi longtemps que Dieu lui-même. Jamais. Aquela noite. Aquela noite em que eu acordei para uma nova vida nunca será esquecida. Aquela noite em que eu tive que reaprender outras possibilidades de prazer e dor.  

Naquele dia, acordei homem e fui dormir na perplexidade incerta do que eu seria. Era dia 16 de junho, e eu despertei ereto, confiante de mim e pronto para dar prazer; mas fui dormir transformado em tortura. Toda minha desgraça, até então, tinha sido somente o trauma dos outros — memória herdada pelas palavras e lembranças de meu avô. Eu lia, pesquisava e ouvia as inúmeras tragédias do meu povo, mas entendo que eu não era capaz de compreender nada dessa agonia. Agora, neste momento em que o Sublime não me abandona, a dor, que naquele instante apenas se iniciava, tornara-se a erupção vivaz em meu corpo e no meu falo.

Eu era um homem qualquer: vous qui vivez en toute quiétude bien au chaud dans vos maisons, vous que trouvez le soir en rentrant la table mise et des visages amis, mas era mesmo um homem? Não sei. Hoje não tenho mais a lembrança do que eu era, de como eu era, e de como encarava meu corpo. Aquele homem que fazia poesia no ventre das mulheres teria se tornado incapaz de concretizar a prosa barbárie após a queda daquela noite?

Teria me transformado ou teria me redescoberto? E o meu eu futuro, como enfrentará esse problema? Com amor, humor, literatura ou dor? É estranho: apesar de ser eu próprio, não consigo me ver nem naquele passado e nem em um dos vários e possíveis futuros. 

E eu estava lá, com o meu corpo explodindo. Recriando mitos e histórias que nunca gostaria que fossem tatuados na minha carne. No meu falo. Até então, nunca escutara sobre Príapo e priapismo. Lembro-me de, impulsionado pelo padecimento do meu membro, procurar na Internet o que estaria se passando. Estava muito amedrontado e buscava uma solução imediata para o problema. Nem prestei atenção nas possíveis consequências daquilo. Ou, pensando bem, posso ter lido sim as terríveis sequelas que me aguardavam.

Mas confesso: cheguei ao hospital bem-humorado. Quem nunca gostaria de ter uma ereção eterna? Uma ereção descompromissada com o outro, com o momento, com os cheiros, com a embriaguez e com a ansiedade de ter e dar prazer? Teria me tornado a representação contemporânea de Príapo? Esse responsável pela fertilidade de campos e animais? Essa força fertilizadora da natureza que sempre aparece retratada como um falo gigante? Que seduzira poetas e os fizeram compor epigramas louvando essa falociosa benção? Versos que provocavam as mulheres que antes os rejeitavam? Toda literatura e poesia, não passaria de um ato de impotência? Não sei nada, desconfio, recrio, mas me lembro de chegar à clínica rindo, e de ter sido motivo de brincadeiras de médicos e enfermeiros mal informados. Mas, the secret source of humor itself is not joy but sorrow. There is no humor in heaven. Eu estava pronto, ereto, entrando nos portões do Inferno... mas abandonando toda esperança. Por esses portões me tornaria, talvez, tão nobre quanto meu avô e a história do meu povo.  

O primeiro médico, ridículo, não entendia muito bem o que estava acontecendo. Imaginou-me um drogado, um perdido, um anêmico, ou algo do tipo. A primeira seleção me apavorou. Meu avô me contava da sua sorte ao ser encaminhado para fila do “polegar para cima”. Entendo que a ignorância do primeiro médico pode ter custado o meu corpo. Não passei na minha seleção. Medidas conservadoras e medicamentosas poderiam ter sido tomadas antes das intervenções dolorosas e repetidas das quais fui cobaia. Foram os cinco dias de maior angústia da minha vida. Experimentos, especulações, intervenções. Esse período se transformaria no meu castigo, na minha damnation, na implacável vingança de Hera. Na corporificação da memória traumática herdada de meu avô. Na compreensão e edificação do meu eu.

Mas eu não sou o único. Não estou só. Tornei-me algo que outros já eram. Literatura. Para Santo Agostinho a “grande queda” adâmica teria resultado a “doença da luxúria”. Adão só tinha ereções racionalmente controladas quando vivia no Éden. Após violar as regras de Deus, o nosso pró- prio corpo passaria a nos desobedecer: “às vezes, o desejo nos controla sem ser convidado. Já em outros momentos ele abandona o amante e, embora você arda de desejo, o corpo se torna frígido”. A “autonomia do pênis” era uma desgraça que a humanidade teria que acatar. Concordo. Rousseau, em Confissões, revelou sua impotência de uma forma poética e literária: “de repente, ao invés de chamas devorando meu corpo, senti um frio mortal percorrendo minhas veias; minhas pernas tremeram e, quase desmaiando, sentei e chorei como uma criança”. Platão se lamuriava por não conseguir se controlar: “desobediente e teimoso, como uma criatura deficiente de razão”. Montaigne reclamava da rebeldia do seu petit: “é certo notar a dispensa e a desobediência desse membro que inoportunamente nos deixa na mão quando mais necessitamos”. Meu caso, muito mais importante que toda história dos outros, teria acontecido por ansiedade, incompreensão ou apenas somatização?

Sei que amei muito a menina daquela fatídica noite. Também amava muito quem eu era: poeta das ações e não das palavras. Lembro-me que vivia ansioso pelo amor. Vontade de concretizar o ato com aquela minha namorada. A gente brincava de amor, mas, tanto ela quanto eu, ainda estávamos travados. E aquele 16 de junho seria o dia especial. O dia do encontro entre nossos corpos e nossas almas. Bloomsday. E eu não soube como fazer isso. Acordei ansioso e pronto. Até demais. E dormi, dias depois, metamorfoseado. 

Mas o tempo passa, a barbárie volta e a vontade de poder ressurge. Anos depois do meu medo, do meu pânico pelo futuro, consegui. Sim. Acho que minha vontade, minha determinação e minha fé na literatura, permitiu-me sair daqueles portões que meu avô nunca conseguiu deixar. Tornei-me Bloom, com sua approximate erection: a solicitous adversion: a gradual elevation: a tentative revelation: a silent contemplation, ressignifiquei desejo/falta, vontade/ fraqueza, ereção/impotência, história/memória. Recriei minha história, meu trauma, minhas invenções. Meu mundo literário e trágico indissociável do corpo. A silent contemplation: a tentative velation: a gradual abasement: a solicitous aversion: a proximate erection. Permaneço imerso no testemunho do meu avô e na minha agonia reinventada.


JACQUES FUX é autor de Antiterapias, vencedor do Prêmio São Paulo, Literatura e matemática, finalista do Prêmio APCA, Brochadas, Prêmio Nacional Cidade de Belo Horizonte, Meshugá: um romance sobre a loucura, vencedor do Prêmio Manaus, e de Nobel. Doutor em Literatura pela Université de Lille 3 e UFMG e pós-doutor pela Universidade de Harvard e Unicamp. Seus livros serão publicados em Italiano, Espanhol e Hebraico em 2019.