Conto | Felipe Munhoz

A Vida dos Outros

ILUST

Estefania é difícil de rir, também de chorar. Pode fingir pela boca, mas o olhar continua como ônix. Negro, fundo, lapidado e brilhante. Brilho sempre natural, e sempre frio pela manhã. Insensível, inexpressivo. Levanta da cama cantarolando Chico Buarque. Ele e qualquer tom menor. Notas tristes que a acompanham até o banheiro. Espelho sentindo nada, quase retrato em branco e preto: foto armada na época dos avós. Que falta ela sente da avó; saudade, quanto tempo, é o pior castigo. No banho escorre toda a noite de sonhos — todo o sentimento — e à deriva, por inércia, está pronta para seu velho cotidiano. Sempre igual, todo dia. Camila acorda com sorriso comprido, derramando um olhar gostoso por onde passa. Abre as cortinas e, à luz do romantismo, dá bom dia para as plantas, pássaros; para sol e chuva, não importa. No calor, usa leques como se nascida em terras espanholas. Quando as nuvens escurecem o céu, abriga-se em guarda-chuva, marquises, da forma que puder, alguns pingos não fazem mal. Pode ser temporal, pode ser a gota d’água — Estefania mantém o rosto de cera, de boneca. Ódio nem lhe passa pela cabeça. Tem suas crenças, talvez não, ouviu dizer que Deus dará qualquer coisa pela frente. Boa, ruim, mas ódio nunca lhe passa pela cabeça. Caminham para o trabalho com escuros olhos preciosos, salpicados de mel, derramando tudo e nada. Estefania vai em ritmo de valsinha, mas só melodia, sem letra. Camila, cheia de vida, repete baixinho uma canção. Apenas por achar os versos bonitos.

Soy un vaso vacío.

E sobe vários lances de escada. O elevador, tal qual Estefania toma quarteirões adiante, nunca. Nem avião aterroriza tanto. Camila adora o exercício, degrau-a-degrau, mas é segredo. Não conta a ninguém: Estou cansada, que dureza, que calor. E os olhos desmentindo: rindo, rindo. Estefania passa a manhã com sorrisos esporádicos, um aqui, outro lá. Gosta de sinceridade e gente, mas só de gente sincera. Seus olhos frios pegam fogo em um piscar, congelam em outro. Mesmo assim, imensas nuances parecem sutis, tanto lhe caem bem. Esporadicamente, Camila chora. Contudo, seus olhos cheios de lágrimas secam como se o sol, de repente, entrasse inteiro ali. E são logo preenchidos diferente, com emoções além dos dicionários. Luz, amor, desvão, vida. Nem os autores românticos poderiam descrever. Um olhar que dá vontade de estampar em todo mundo, na cidade inteira. A cidade tem um pouco de Copacabana para Estefania. Ilusão. Pois Curitiba retorna triste, voraz, em um instante. Ninguém vai chegar do mar. E voltam também o trabalho, os textos. Se, por ventura, desvia a atenção para fora, finge ver a infância carioca. Almoçam por perto, sonhando, sorrindo, sonhando; belíssimas. A alegria fugaz de Estefania aparece mais frequente, e mais. Ondas que vão e vem, ela quase pode senti-las sob a mesa, dentro do prato, da alma. E o trabalho volta; burocracia, textos. Camila recorda-se da infância: é o mesmo bairro de antes, mesmo após anos. E chora, esporadicamente, um mar que vem e vai. A noite cresce, expande; fim de expediente. Os pés alcançam a calçada, rua, para casa. Estefania vai andando. Camila mantém o êxtase, poderia ser escrita por Goethe (menos os olhos). Melhor por Bécquer (quando apaixonado), como se nascida em terras espanholas. Alegra-se com a lua, com a chuva, qualquer coisa vale. Com a noite, Estefania vai andando e lembrando, revivendo, crescendo. Abre a janela por onde o tempo não passou: a janela do peito. E dança.

Vai passar, nessa avenida o samba popular.

Estefania transborda, como se o samba inteiro passasse nela, fosse ela. E ri o olhar mais bonito de todos. Em um piscar, seus olhos quentes congelam, mas em outro pegam fogo novamente. E ela vai dançando. Camila está feliz, plena. Repete baixinho algum verso em espanhol que acha bonito. Sussurram como oração na catedral. Com a brisa, Estefania — na caixinha, um samba antigo, o samba do grande amor — caminha de volta para casa, lentamente. Com lua cheia (como ela) sobre ondas, Copacabana aos pés, tão real. Tira os sapatos, sente a areia e vai feliz da vida, beira-mar.
Eu esperava sob qualquer marquise. Esperava qualquer coisa, qualquer história, com os olhos amargos de sempre. Uma vinha de cá, outra de lá. Como espelhos; uma única mulher de brilhantes olhos escuros, ônix salpicado de mel. Iguais, mas opostas. Dois espelhos opostos são suficientes para criar um labirinto, li em Borges. E eu ali, estático, extático, no meio de algo complexo: um denso labirinto que traço a traço se completa — espelhos que talvez nunca saibam disto — e eu sabia que estava perdido para sempre.


Felipe Franco Munhoz nasceu em São Paulo, em 1990. É graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Paraná. Em 2010, recebeu uma Bolsa Funarte de Criação Literária para escrever — em tempo integral — o romance Mentiras, inspirado na obra de Philip Roth. Vive em São Paulo (SP).

Ilustração: Dalts