Conto | Cláudio Portella
Ilustração Marília Costa
O trompete
A luz tênue do quarto lembra um corpo. Um corpo que lembra um mapa. A luz, a música de Chet Baker sobre os lençóis da cama e o mapa do Brazil (com z porque o corpo é viajado) tatuado na omoplata direita. Minhas mãos em sua nuca, o cabelo curto... cheiro de relva, a luz tênue... a maneira preferida de me despir, de fazer- me uno, de adentrar o mapa.
A tatuagem vista daquele ângulo traz ao centro um escrito minúsculo borrado de vermelho. Impossível de ler a olho nu. Faço um esforço tremendo para com o dedão do pé direito arrastar a lupa d’cima do criado mudo. Um deslize e nossos corpos que formam o ângulo perfeito para o desvendar do mapa do Brazil viriam abaixo. Estou estafado! Não conseguiria mais ficar firme o suficiente para o encaixe com Anete. Anete Dacas.
Quase com a lupa nas mãos e ela rola pra d’baixo da cama. Minhas costas, não aguento mais! Aguenta sim!
O esforço é redobrado. Com o pé esquerdo alcanço novamente a lupa.
Tragou-a ao olho. Lá está. Então é isso: “Joca Livros Novos & Usados Paulista 6735”. Assusto-me. Um grande estalo e sinto muita dor. Fraturo o pênis.
Subo a Paulista. O endereço é um muquifo fedorento. E, estou certo, o tatuador cometera um “engano”. Proposital? Tatuado “Livros” em vez de “Discos” na omoplata de Anete. Somente um músico, feito eu, sabendo da importância do trompete, perceberia a sutil cilada. Joca é um octogenário cheio de vigor. Me recebe com cara de poucos amigos.
O trompete? Onde está o trompete?
O que quer com ele? Você é músico? Sou.
Você não parece músico!
É que nas horas vagas sou detetive.
O trompete não está comigo.
O senhor está mentindo! — Levanto Joca com uma só mão.
Não está comigo! Não está comigo!
Mentira! Mentira, seu velhote sacana!
Maguila! Maguila! Venha aqui, temos um pretendente ao trompete!
Um gorilão salta a bancada que me separa de Joca e me atinge em cheio, bem no meio das pernas. Não bastava a fratura da noite passada? Quem deixou o zoológico aberto?
Não há dúvida, o trompete está com Joca. O problema é seu gorila. Maguila, o gorila. Lembram do desenho? A situação é semelhante: um gorila que mora numa loja com seu proprietário. Preciso da ajuda de Anete.
Onde ele escondeu a metadona? A oportunidade é essa. Grande show o de ontem à noite. Entrará pra história. Mas onde está a porra da metadona? Espero que a putinha que paguei pra segurar o Dr. no bar do hotel esteja dando conta do recado. Achei! Venha cá minha princesinha.
Desculpe, tenho que subir.
Não vá ainda, fique mais um pouco Dr.
Chet!!!
Anete Dacas é minha assistente. Uma bela morena de 1.78m de altura. Cabelo curto, pernas torneadas e uma tatuagem do mapa do Brazil na omoplata direita. Tatuagem misteriosa. Nem ela sabe como conseguira. O que lembra é que estava numa livraria e alguém começou a tocar um trompete. Acordou depois no banheiro feminino de um shopping. Em casa, ao trocar de roupa, é que percebe a tatuagem.
Você distrai o gorila e eu dou uma varredura na loja de discos. Como vou distrair um bicho daqueles? Sei lá, use seus dotes. Você não está insinuando... Pra que colocou os peitões?
O Gorilão dando um trato nos peitões de Anete, enquanto eu reviro a enésima caixa de discos.
O que faz com meus discos?
Sua coleção é impecável! Quanto quer pelo Witch doctor de Chet Baker? Procurei a vida toda por este disco! Não está à venda! Vá lá, seja razoável...
O que fez com o meu Maguila?
Está se divertindo um pouquinho.
Não estou com o trompete!
E onde está?
Não sei.
Mentiroso!
O que você quer com ele?
Tocar algumas músicas.
Não estou com o trompete!
Me ajude, confie em mim.
Por que deveria
Você não tem escolha, sabe bem o que acontece quando o trompete cai em mãos erradas.
Esse é o problema, meu jovem, temo ser tarde. Está ouvindo?
Uma música de trompete invade a loja de discos, parece vir do fundo da loja.
Rápido, tape os ouvidos! Não sabemos o que esta música é capaz de fazer conosco. Venha comigo, tem um jeito de sairmos daqui. Por aqui, venha rápido!
O velhote abre uma escotilha no chão e descemos rápido por ela.
Aonde este buraco vai dá?
Na esquina de um cruzamento, a cinco quadras daqui, na Avenida Paulista.
E minha assistente, o que será dela? Não se preocupe os gorilas são imunes à música do trompete, Maguila cuidará dela.
Uma senhora de guarda-chuva leva um susto ao vê dois homens saindo de um bueiro. São o velho vendedor de discos e o detetive.
Conte o que está acontecendo? Quem estava tocando o trompete?
Vamos beber alguma coisa? Conheço um lugar aqui pertinho que tem um bom chope.
Penso num café.
Tudo bem, vamos!
E aí?
Era ele quem tocava o trompete.
Quem é ele?
É como no disco de Chet Baker, o Dr. Desejo.
Que história maluca é essa, quem é esse Dr. Desejo?
O médico que acompanhou Chet na turnê do Brasil.
Aquela em que ele quase morreu de metadona?
Essa mesma, eu estive lá, depois do show fui ao hotel, atrás de um autógrafo do Chet. Consegui subir ao quarto dele e vi quando ele, chapadão, discutia com o Dr. Ele dizia que precisava de outra dose e o Dr. dizendo que só daria se ele, Chet, lhe dissesse onde estava o trompete. Chet diz e recebe de uma só vez uma dose cavalar de metadona na veia. Saí do hotel correndo e peguei o primeiro voo pra Nova York.
Maguila agarra Anete no colo e sai com ela pela porta de entrada da loja, derrubando pilhas de discos. Anete está catatônica, tesa. O gorilão, com ela nos braços, sai pulando por cima dos carros, congestionando o trânsito e deixando muita gente intrigada com o que vê: uma mulher de seios lindos, à mostra, carregada por um macaco.
O sinal vermelho e Maguila se vale do carro, um Monza verde, que para na faixa de pedestre. Puxa o motorista pela janela do Monza, entra, joga Anete, estática, no banco traseiro e sai pilotando o carro, furando o sinal que continua vermelho.
A partida no set de desempate. Anete possui naturalidade australiana e forma dupla com Deise. Uma experiente jogadora de vôlei de praia. Deise corta e a bola bate no campo de areia adversário em cima do trompete semi-soterrado na praia. A legítima jogadora australiana ganha o jogo com a cortada, desenterra o instrumento musical d’baixo dos olhares espantados de todos que ali estão e toca uma música brasileira.
Deise toca Brasileirinho usando apenas um pistão do trompete.
A australiana executa a canção e, repentinamente, todos que estão na quadra de areia e na arquibancada passam a fazer sexo. Quem tem parceiro faz com seu parceiro, quem se conheceu um pouco antes da partida faz entre si e quem nunca se viu até então também faz. Anete Dacas é violada por trás pelo juiz da partida.
Julio Cortázar executa uma canção com o trompete usando o pistão que faz as flores desabrocharem. Elas desabrocham e murcham em segundos. As sementes plantadas no momento germinam, crescem, brotam, desabrocham e murcham, tudo em segundos. As flores dos jardins, das sacadas dos apartamentos, das floriculturas, das estufas, as devidamente embaladas para exportação, todas, ao som de Cortázar tocando o trompete com o dedo naquele pistão, murcham. Um rapaz traz escondido às costas um belo buquê de rosas, ao estendê- lo de presente à namorada, não passa de um feio ramalhete de rosas murchas.
Jorge se tornara eunuco pela impossibilidade de ter relações sexuais com sua irmã. Anos depois ele foi violentado de forma brutal por um homem superdotado. O que se sabe é que a violência sexual teve ao fundo um solo de trompete. Foi uma barbaridade sem tamanho. Tanto o superdotado quanto Jorge pareciam hipnotizados ao som incessante do solo de trompete.
Com o acontecido, o eunuco foi colostomizado, único recurso para conservar sua vida. Agora, além de eunuco, tem o ânus costurado.
Maguila, o gorila, está em alta velocidade, ziguezagueando por entre carros. Para em frente ao zoológico, pega Anete novamente nos braços e entra. Vai para ala de funcionários da limpeza do zoo e encontra sua amiga Waleska. A amiga do gorila acomoda Anete em uma cadeira; ela volta a si e percebe que um de seus implantes de silicone nos seios está furado.
Além de trabalhar no zoológico Waleska é proprietária de uma lavanderia de roupas especializada em tirar manchas de crack. A lavanderia fica localizada no coração da Crackcolândia em São Paulo. Tem o curioso nome de Waleskalândia. Ela mesma, Waleska, é viciada em crack. Vive dizendo que a melhor solução para ela é ouvir um solo executado com o terceiro pistão do trompete. Pistão esse que não se sabe o que causa.
Talvez ainda não tenha me apresentado, meu nome é Pablo, Lamar. Pablo em homenagem ao cantor Pablo Milanés. Minha mãe o adorava. O sobrenome da família, Lamar, reza a história que um explorador espanhol teve um filho com uma índia brasileira. O curumim, toda vez que ia à praia, puxava a perna da calça do pai, apontando e dizendo “lá mar!”, “lá mar!”.
Sou trompetista e detetive nas horas vagas. Ou o contrário. O fato é que certa vez fui contratado para solucionar um mistério na Argentina. E quando descia a Avenida de Mayo, em Buenos Aires, no rastro de uma importante pista para solução do mistério, escuto, vindo de longe, um solo de trompete. O solista tem uma característica especial de tocar o instrumento. Sou apaixonado por trompetes. Esqueço o rastro da tal pista e sigo o som do trompete. Algumas quadras depois, entro em um edifício comercial e aperto o botão do décimo segundo andar no elevador. O elevador para num corredor com quatro portas, duas de cada lado. O som vem da primeira porta do lado esquerdo. Bato na porta. Adivinhem quem abre a porta segurando um trompete? Ele mesmo! Julio Cortázar!
Deise, a jogadora australiana de vôlei de praia, é filha de Chet Baker com uma hippie australiana, filha, por sua vez, de uma bruxa com um famoso escultor de metais. O escultor traíra a bruxa com uma linda jovem que o auxiliava na montagem de suas instalações de metais. A bruxa descobriu a infidelidade do marido e o amaldiçoou. A maldição foi que suas esculturas feitas em metais trariam a partir de então três tipos de desgraças.
O escultor não deu a mínima à maldição da ex-mulher e continuou produzindo suas esculturas em metais. Fez uma enorme escultura que foi comprada por um rico colecionador de arte.
Com a morte do colecionador toda sua coleção de arte fica para seu único filho, que não tem interesse na coleção. Gosta mesmo é de literatura. Vendo a enorme escultura em metal, manda que a desfaçam e com o metal contrata um renomado fabricante de instrumentos de sopros para que lhe faça um trompete.
Joca desce em Nova York, pega um táxi e pede para o motorista ir a toda velocidade ao endereço onde Julio Cortázar autografa seu mais recente livro O jogo da amarelinha. Compra um dos exemplares da edição americana e entra na fila dos autógrafos. Chega sua vez, pede para Cortázar fazer a seguinte dedicatória: “Para Joca, que procura o trompete mágico”. O escritor olha para ele com espanto, levanta e diz: venha comigo!
Minutos depois os dois estão em um pub na nona avenida:
Eu ganhei o trompete de um fã. Um filho único de um rico colecionador de arte. Ele me disse que sabendo de minha paixão por trompetes mandara confeccionar aquele para mim.
Mas você já sabe o que ele faz, não é?
Sei o que acontece quando se toca com dois dos pistões. Mas nunca toquei com o terceiro. Não sei o que pode acontecer quando se toca com ele.
Nem saberá! – Exclama o Dr. Desejo, que aparece de repente no pub, apontando uma arma.
Existem especulação e controvérsia sobre o que de fato aconteceu com Chet Baker, no hotel em Amsterdã, na madrugada de 13 de maio de 1988, quando ele despencou da janela de sua suíte, no 21º andar do hotel. Suicídio ou acidente?
Nem uma coisa, nem outra. Assassinato!
Chet está esparramado na cama, chapado de metadona. Quando, escondido no banheiro, com o trompete amaldiçoado que roubara de Cortázar, o Dr. Desejo, começa a tocar um solo justamente com o pistão que Cortázar não sabe o que acontece quando se toca com ele.
Catatônico, Chet se ergue da cama e vai, feito um zumbi, até a janela da suíte, destrava as trancas, abre por completo e se joga janela abaixo.
Então não foi acidente o que aconteceu com Chet Baker?
Não. Além de Chet ser pai de Deise, que é neta da bruxa que amaldiçoou o metal de que o trompete é feito, e o Dr. Desejo quer acabar com toda a linhagem dos que estão diretamente ligados ao trompete, ele não suportava o comportamento doentio de Chet.
E o que aconteceu com Julio Cortázar?
Fomos levados pela mira da pistola do Dr. à casa de uma irmã, que mora em Nova York, de Cortázar. Era lá que ele escondia o trompete. O Dr. Desejo pegou o trompete e deu um tiro na irmã do escritor que o atacou com uma frigideira. Felizmente o tiro atingiu de raspão.
Uma vez eu estive com Julio Cortázar em Buenos Aires.
Eu sei. Ele me falou. O que mais ele lhe falou?
Que você e eu temos que recuperar o trompete das mãos do Dr. Desejo.
Waleska termina o expediente no zoológico às 18hs. A última tarefa do dia é limpar a jaula de um velho casal de gorilas. Os pais de Maguila. Waleska roubou Maguila ainda filhote e o vendeu a Joca. Comprou crack com o dinheiro da venda.
Limpa a jaula e ao final, escondida numa gruta que há na jaula, fuma algumas pedras de crack. Ensina o casal de velhos gorilas a usar a droga. Repete esse ritual diariamente no final do expediente no zoo.
Não fora diferente naquele dia. Fuma algumas pedras na gruta junto com os gorilas. E segue, como sempre, para sua lavanderia na Crakcolândia. Restam-lhe algumas pedras na bolsa. O que trata de fumar já em sua lavanderia olhando para dentro de uma das máquinas de lavar em funcionamento.
A máquina gira, a fumaça do cachimbo sobe. No girar da máquina e no subir da fumaça, passa a ouvir a música de um trompete. A fumaça acaba, mas a máquina e a música continuam. A máquina para e a música continua insistente.
Waleska entra em transe com a música do trompete que não cessa e vai à casa do traficante vizinha à sua lavanderia. Leva a escritura da lavanderia com ela. O traficante é surdo-mudo e os dois se comunicam em Libras. Troca a lavanderia por 2 quilos de crack. Volta pra casa, e ao som do trompete, passa a fumar, sistematicamente, um pedaço de crack atrás do outro. Tem uma overdose.
Seu espírito sai de seu corpo em forma de fumaça de crack, sobe e desce vertiginoso direto para o inferno. Fica no chão seu corpo morto, enquanto o trompete executa um foxtrote.
O Dr. Desejo sabe que Joca e Pablo estão à sua espreita para recuperar o trompete. Precisa se defender. Vai ao encontro do grandalhão do eunuco, e mentindo promete a ele cirurgia capaz de devolver- lhe não apenas o cu, mas o pau também. Em troca o eunuco tem que defendê- lo, e a seu trompete, das investidas de Joca e Pablo. Quando não houver mais perigo eminente as cirurgias serão realizadas. Iludido Jorge aceita a proposta e passa à guarda-costas do Dr.
O plano é Deise e Anete seduzirem o Dr. Desejo, fazendo com que ele se descuide. Então Pablo e Joca entram em cena, pegam o trompete e prendem o Dr. Fácil prever que Deise é a próxima a ser atacada, já que é neta da bruxa. E, pelo perfil dos assassinatos anteriores, espera- se que o ataque se dê em seu apartamento, provavelmente em seu quarto.
Deise é uma mulher bonita, de corpo escultural. Anete Dacas, como sabem, não fica atrás. É mulher de seduzir gorila. E substituíra sua prótese de silicone no seio, que havia furado.
Pablo e Joca construíram um compartimento no closet do quarto de Deise. Há espaço no compartimento escondido para três, no caso: Pablo, Joca e Maguila, o gorila.
Deise e Anete estão em roupas íntimas, na cama, formando um quadro muito atraente. A esperança é que o Dr. Desejo antes de tocar o trompete com o pistão da morte, toque com o pistão do sexo e se aproveite das garotas.
Mais que uma esperança. Chet Baker revelou para filha o quanto o Doutor, na época seu médico, é pervertido. Juntos participaram de bacanais. O Doutor arrumava mulheres para Chet. Há outro ponto a favor, que a filha não revelara ao pai. Achava que o Dr. Desejo era importante no tratamento do vício em heroína do pai, e receava que Chet o demitisse. O Doutor, em ocasião na casa de Chet, quando a filha fora visitá-lo, se declarou a ela, que é loucamente seduzido por ela, que tem gravado, e vê repetidas vezes, suas partidas de vôlei de praia.
Não dá outra. As mulheres sedutoramente na cama folheando revistas, quando vindo de algum lugar do apartamento, uma música de trompete começa a soar baixinho. As mulheres se acariciam. A música se aproxima e elas se enlaçam sexualmente. A música, alta e próxima, e as duas ousadamente fazendo um 69.
Então lá está o Doutor, em pé, nu, diante da cama, tocando o trompete com uma das mãos, e com a outra acariciando seu pau duro.
Pablo e Joca de ouvidos tapados por pequenos fones. Maguila é imune à música do trompete. Os três a tudo observam pela abertura estrategicamente preparada no compartimento escondido no closet. Da abertura veem tudo que se passa na cama e no entorno.
O Dr. Desejo, sempre tocando o trompete, puxa Deise para a beirada da cama e está pronto para introduzir seu pau na buceta dela, quando os três saem do esconderijo no closet. O Doutor não se faz de rogado, e tocando o trompete, introduz o pau em Deise. Os três avançam em sua direção, quando o eunuco adentra o quarto segurando uma metralhadora.
Mate todos! — Berra o Dr. Desejo.
Jorge dispara a metralhadora e todos pulam e se protegem como podem. Maguila pula sobre o eunuco fazendo com que a arma caia disparando. Uma das balas ricocheteia na cabeceira da cama e atinge a tatuagem de Anete Dacas. O projétil faz um estrago irreparável na tatuagem, destruindo-a por completo.
Jorge é grande e forte, páreo duro, mesmo para um gorila. O eunuco desvencilha- se de Maguila e aplica-lhe um enorme soco. Um murro tão forte que joga o macaco a meio metro. O gorila se refaz rapidamente da queda e pula novamente no eunuco. Se agarram trocando socos.
O Doutor sai correndo nu com o trompete na mão, atravessa a sala do apartamento e desce pela escada de incêndio do prédio. Plabo vai atrás dele.
Deise, já consciente, ajuda Joca a levar Anete ferida para o esconderijo no closet. Maguila e Jorge lutam ferozmente.
Dr. Desejo alcança a avenida que está sendo recapeada com uma nova camada de asfalto. Pisa no asfalto ainda em brasa e tropeça deixando o trompete cair e rolar em direção a uma máquina de rolo compressor que planifica o asfalto. O rolo compressor esmaga o trompete, emoldurando-o.
O gorila e o eunuco lutam até a morte. Cessado o barulho de luta, Joca e as mulheres saem do esconderijo. No chão, agarrados, em posição fetal, mortos, Maguila e Jorge. Homem e macaco são uma só coisa, unidos na mesma árvore genealógica, que pende sem vida.
Joca e Pablo conversam na loja de discos.
Você alcançou o Dr. Desejo?
Sim, ele tropeçou na avenida em reforma.
O que farão com ele?
Está preso e responderá pelos assassinatos de Chet Baker, Waleska e pelo estupro de Jorge.
Sinto falta de Maguila.
Lamento!
E Anete, sua secretária, como está?
Bem. Até já voltou ao trabalho. Só a tatuagem ficou destruída.
Melhor assim. E o trompete?
Pedi aos operários que reformavam a avenida que o cobrisse por completo com asfalto.
É, acredito que não teremos mais problemas com ele.
Toca o celular de Plabo. Ele atende, se identifica e escuta olhando espantado para Joca.
Quem era?
A irmã de Julio Cortázar.
O que queria?
Acabaram de ler o testamento de seu irmão. Há uma carta anexa endereçada a ela que diz que o irmão também ganhou uma gaita do mesmo fã que lhe deu o trompete. E que o irmão deu de presente a gaita a Bob Dylan.
Cláudio Portella é escritor, poeta e crítico literário. Autor, entre outros, dos livros Bingo! (2003), Melhores poemas Patativa do Assaré (2006), Crack (2009) e Elíptico (2014). O livro das frases & outros diálogos (2014) e Picos Hotel (2015). Colabora em importantes publicações do Brasil e do exterior. Ganhou o concurso de conto da UBENY - União Brasileira de Escritores em Nova York. Vive em Fortaleza (CE).