Conto | Carlos Emílio Correêa Lima

Diálogo mediterrâneo anterior 

O O dia de hoje tem quimeras acondicionadas em piscinas térmicas, vozes proliferam em ramos giratórios que procuram o sol posterior dos universos... E você come as próprias mastigações do espaço como se fosse comida oriental do Vesúvio, trazida para ele em naves aéreas invisíveis. Você sabe do velho rito das térmitas, cor de sibila, ventre de pó, qualidades sem luz que almejam, simplesmente almejam. Você por ali, na boca do Vesúvio escrevendo canções na argila tensa do animal adormecido, nas bordas dele gravando e estipulando o livro sobre os alpinistas desconhecidos. Houve quarenta canções que você enfeixou num caderno primordial antes do dilúvio e que eu sempre procurei achar, eram sobre deuses da criação, deuses partidos por flores muito rápidas de aflição perdidas na atmosfera antes das primeiras escolhas urbanas da mente geográfica. São coisas que não se dizem facilmente, que precisam ser procuradas com os estiletes-ramos dessa montanha quase sucumbida em ternas mortições. Você achou, por causa de um sonho, um dos dentes secretos numa cidade intensíssima, guardado num cofre de um banco de espíritos, era um dente irrealmente gigantesco, carcomido, mas perseverando ainda inscrições remotas com listas de objetos cantados cujas funções muito raras ainda não compreendemos. Não sabemos porque aquele povo só conseguia desempenhar sua escrita na superfície comandalisada por estrelas rombudas desses dentes espalhados como sementes de futuras montanhas videntes. Esses 40 dentes enormes haviam caído na Terra em regiões sacerdotais. Tudo antes do dilúvio, antes do amortecimento dessas velhas canções ampliadíssimas. Um dente de ouro concreto, cernudo, dentro dele um dia imensamente roubado. Um dia com seu sol perpendicular e sua lua despregada com suas paliçadas a esmo. Correntezas em tiras escritas. O dente escutava tudo o que não existe, como se tivesse braços para remar em si mesmo, na sua memória de líquidos de ventilações de reflexos. Dentições de um ser-universo que não sabemos a forma, a ecosistência, a orientação de seus fluimentos, suas indizíveis e prováveis muitas cabeças à beça. E o dente era coroado à distancia, com gritos muito fios finos retilintando potências degladiando-se. Você passava a mão complexa distintiva com seus muitos dedos raiados entre os cabelos em expansão, com renitências, as pupilas se amplificando, piando. Descia do Vesúvio para almoçar na planície já com seus próprios dentes, mandíbulas pensantes, com todas aquelas imagens na cabeça. Que ser tão gigantesco fora aquele que tivera seus dentes espalhados pela Terra? Teria sido sacrificado num barco sem limites? Sua pele seria este céu que brilha por nós estrelado? Você foi mais e mais se propondo a escrever, traduzir as canções, uma canção irredutível para cada dente, remotizando aos poucos as tradições das escritas sobre o marfim sincopado de silêncios surpreendidos no ápice de sua duração, aumentados. Mas você tinha o encontro prosaico, urgia o que perfazer. Almoçar no restaurante de atmosfera congelada, perto do mar. Conversar com a amiga recém-chegada da ilha antiga, onde vivia entre tigres e pavões, num bosque no meio das águas, preparando azuis e suas músicas de povoamento estelar. Ela sabia criar novos meios de transporte camuflados dessa música, com suas peles místicas acolchoadas, elevadíssimas, sempre em suspensão de sorrisos-naves e encantações autogeradas. Agora ela chegara, a de alma submarina. Você recebera o aviso-fonema no alto do vulcão, convidando-o para a refeição de conversações giratórias onde você se ampliaria notório no meio de estórias contemplantes. Num baque de armazéns com suas vértebras de adegas. Era melhor descer das bordas do vulcão para escutar o que ela lhe tinha a dizer com suas muitas vozes de propulsão entoada. Os dentes de granito, de ouro, de prata, todas essas camadas minéreas superpostas com seus estampidos acondicionados dentro, em suspensão, os dententes chamavam de longe, em ecoações. Urgia encontrá-los, aos outros que faltavam, um por um, urgia preparar as expedições cromáticas, coribânticas em suas outras 39 direções entrelaçadas, fazer o tecido de preces, bordar com os fios dos horizontes vocálicos. Adênia chegara pra informá-lo de cada princípio de ecoação de cimos imotos, ela viera para se autodescrever como um périplo ao seu si mesmo, de perfume compresso.

Trouxera-lhe a lista que você tinha que cumprir aguardanapada, num papel de saliências e declives miniaturizados, toda uma região, topografia minuciosa de uma recurvada planície, uma “pnamide”, de antes do dilúvio na palma da mão e sobre ela a escrituração da lista ainda vaga, com as incumbências e algumas indicações sobre instrumentos raros de prospecção onírica para os preparativos da expedição simultânea a si mesma. O salão do grande hotel envidraçado estava em plena festa do meio-dia. Comeríamos medulas untadas de unguentos, azeites nos fariam cantar o hino silencioso dos ossos? Preparava-se desde ali uma construção muito sutil, quase espectral naquele restaurante à beira-mar através de refeições; toda aquela culinária e digestões resultantes seriam uma forma de construir alguma coisa muito intensamente além de si, alguma coisa até então impossível de acontecer nós preparávamos sem saber, cozinheiros, garçons, comensais, hóspedes, fumantes nas laterais do salão translúcido. O que sabíamos mesmo de qualquer coisa, de si e do mundo? O que sabíamos do que não sabíamos? Mas não fora sempre assim desde que iniciara suas idas diárias ao vulcão sonolento, pensante útero dissolvente, incandescente de tantos corpos de suicidas fugidos das palavras e de comediantes acidentados, fervendo muitas almas ali, transformadas em fumaça. Toda a semana de novembro voltava de seus passeios ígneos sozinho, e almoçava apenas com sua mente, sem sequer rabiscar anotações onduladas no guardanapo de linho dócil. Mas hoje avistara do alto do vulcão o seu balão, o elo dela, da inconquistável senhora, flutuando indicativo, provável que cheio de vogais futuras, ali, ancorado na praia, destro ao perfil náutico do hotel viajante. Ela chegara, como uma incisão no espaço, uma hélice muito rápida e profunda dinamizava-se na atmosfera, vaporizando-se a cantar e a equilibrar pássaros ao longe, aquecendo formas mais que futuras. Com suas pupilas de tilintação seus olhos exuberavam sua presença por todos os lados, os cintilantes pratos de porcelana ancestral e copos de cristal, como se cortados ao espaço, empilhados, zuniam azucrinados dela, sentiam sua presença num êxtase compressivo. Tudo que era sólido, material, se esmerilhava, se interagia com suas moléculas e com seus átomos que repercutiam mais sem hiatos, vibratoriais orações sem intervalos, todos os artefatos esmerados, tudo aquilo que fora fabricado dos proliferados materiais da Terra, ficava mais nítido, bem para dentro do into espaço, intocabilizando-se por réstias íntimas de segundos palpebrados, um vento neutral de deuses ao inverso equalizava-se com restâncias, babas, formigas sem antenas, uma vestimenta incorpórea era preparada gota a gota evaporada para toda a cidade balneária. Uma baleia viva era pouco a pouco atraída do fundo do mar por toda aquela cidade, com seu livro de tímpanos, interior, com suas páginas estomacais folheadas por intermitências de buscas ao abismo, ventiladas. 

Trouxera ela algo de novo ao espaço? A boca entreaberta pronta para a divulgação do “neome” da coisa intromissiva, desengavetada do interior químico do espaço, um bago de uva visionário, alado, saindo-lhe de entre os lábios, borrifando quandos, num vapor.

De onde viera aquela sensação de que ela era alguma coisa a mais de si mesma, assim feminina com seus vestidos auto-envolventes de dançarina súbita? Fora descendo os flancos timbrados pelas sombras das nuvens pesadas casadas com o vulcão que percebera que não a conhecia inteiramente, a essa irmã mais velha, sempre mais a leste do que ele, quase irreal porque nunca perto. E agora, essas visitações. O que desejava, ela que tanto se afastara dele todos esses tempos, pelos seus estudos de levitação, em seus estúdios arbóreos, em meio aos seus jogos metafísicos com nuvens marítimas, naquela ilha que ia construindo aos poucos extravasando os aterros ao redor como de si mesma, aracnídea, alimentando-se com o improvável de novos frutos genéticos de seu bosque palaciano, isolada no meio do grande arquipélago no golfo do mar altíssimo, acima do horizonte?

O que queria dele, mesmo, relatar? Somente dos pontos onde caíram os dentes do imenso ser de antes do dilúvio vinha ela lhe falar? Evadia-se algo dela que não percebíamos, ainda. Era preciso cautela milenar, aprendida com o sangue e com o mar.

Carlos Emílio Corrêa Lima nasceu e vive em Fortaleza (CE). É escritor, poeta, ensaísta, jornalista, professor e editor. Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, publicou os romances A cachoeira das Eras e Pedaços da história mais longe