Conto | Antonio Cestaro

Vassoura-de-bruxa

Foi morada de gente da lida, no tempo do cacau farto, das alegrias que despontavam nas cantorias, do amarelo-ouro das frutas maduras que enfeitava a cultura. Depois veio a doença das plantas e, junto, nuvens de pensamentos ruins que buliram nas histórias que eram mansas. E algumas se tornaram lendas, como a das irmãs meninas que assombram os passantes noturnos na Ponte do Sacrifício, de onde foram atiradas à correnteza para morrer de afogamento nas águas do Fundão. 

Pedi um minuto de espera e a licença de anotar. Desconfiava, pelo introito e pela sucessão dos acontecimentos do dia, que seria incerto reter na memória o enredo e a simbologia de uma narrativa incoada com tanto tempero metafísico. E o narrador prosseguiu disposto: 

Era domingo. Apertou com afinco o laço do cadarço e girou ruidosamente o trinco da porta. Fez passo de dança na saída para benzer a noite, garantir proteção e honrar as crenças de família. “Se chove, atolo os pés na baixada da Anta.” Empenhou intenção de embaraçar precipitação e investiu apuro no andamento sem mais rodeios.

Com um sorriso lacônico e boa certeza de aceitação, pensou no encanto de Carminha. Foi confioso de proferir rogo na lua nova para não minguar propósito medido, e voltava seguro de fazer enlace no maio que vinha, dormir e acordar com Carminha. Pássaro que avoa na noite é morcego. “Desgarra da minha sombra”, fez com os olhos virados para a esquerda do atalho antes de chispar pelo caminho de chão esmondado. “Se chove, atolo os pés na baixada da Anta, e é melhor que não chova.” Na dúvida, mexeu pernas num passo de dança para benzer o regresso. 

Entrou pela porta entreaberta e a água caiu no mundo lá fora. “Me caso em maio minha mãe.” O silêncio misturado ao ruído ritmado da chuvada se perdeu na modorra, e o juízo cedeu ao repouso. 

O dia nascido molhado foi trégua de esforço no ciclo que assume o serviço em nome de tudo o que cresce. “Se casa em maio, meu filho?” No fogo a água fervente, na pele enrugamento de vó. “Me caso em maio, minha mãe.” A emoção presa no resumo, arrolhada com um nó de garganta.

O intervalo esgotou ligeiro para o doze de maio da espera, que cindiu o destino com um rasgo duro de ida sem volta, sentido como um propósito de abandono. “Adeus minha mãe amada, faz de conta que fico e me põe na ave-maria das seis para falsear defeito de ausência.”

Carminha, introversa em propósitos e incertezas, repassava o trajeto até a porta do trem e depois, na cabeça, desembestava nos trilhos para aquele outro mundo que saía da boca do alheio, o mundo do sei-lá-o-que-me-espera. 

E partiram, depois de tudo o que foi conversa de Deus-lhe-proteja e de apelo para guarda de santo. Ao longe, a pintura do poente imitava cores de fogo com silhuetas de carvão a encenar, sem almas, o tanto de agonia que despontava nos afetos do par. E a noite entrou pela porta entreaberta, teimosa de ofuscar brilho de uma luz parca, já degradada. 

Chegou tempo difícil, de vassoura- de-bruxa, de cacau pouco. A apatia, como um diacho, ocupou larga o espaço do resto de bem-viver e atacou arduamente a esperança, que é energia de alma quando a matéria esmorece. 

Uns falam de uma velha caduca a perambular no mundo para tirar regularidade de solidão, e outros contam de uma suposta entrada sem volta numa caverna perto daqui, que tem saída no Peru e um intrincado de passagens que dá perda e perecimento certo aos que se atrevem a percorrê-las. Há, no entanto, quem diga que isso tudo é conversa, que ela seguiu nos rastros do filho e hoje, às portas dos oitenta, ainda circula diariamente nos areais de Saquarema a vender cangas e bonés.

E foi assim que ouvi, à guisa de explicação, das meias paredes em ruína, dos destroços de um fogão a lenha pretejado e dos cacos de telhas perdidos na vegetação rasteira. Pude também entender a significância do oratório com santinha de jacarandá e escultura gaudiana de velas queimadas em um dos lados da Ponte do Sacrifício. Fiquei ainda mais interessado na história do sacrifício, que, posteriormente, ocupou várias folhas de notas que aguardam a disposição para serem juntadas à parte pregada na lembrança, num único escrito.

Antonio Cestaro nasceu e vive em Maringá. É autor 
das coletânea de crônicas Uma porta para o quarto 
escuro e As artimanhas do Napoleão e outras 
batalhas cotidianas. Em 2016 fez sua estreia no 
romance com Arco de virar réu.