Conto

Um gesto raro


Tércia Montenegro

Minha mãe chegou bem cedo, para colocar as flores diante do retrato do tio Álvaro. Quando ela passou lá em casa, estava ruborizada de pressa, segurando o vaso com umas das mãos, enquanto sustentava o volante do carro com a outra: “Pegue logo isso, para não derramar!”, ela disse, assim que eu me sentei. Partimos em disparada, acho que eram umas seis da manhã, e o cemitério ficava distante. Durante todo o trajeto, ela ficou falando sobre as pessoas que deviam estar no funeral, e sempre completava: “Acho que você não lembra, era muito pequena da última vez em que nos vimos”. Eu realmente não conhecia ninguém, porque minha mãe brigara com quase toda a família quando eu tinha uns quatro ou cinco anos. Sobrara apenas uma irmã conciliadora, a única que nos visitava. Tia Maura era uma espécie de porta-voz, trazendo notícias de uns e de outros. A simples presença dela já indicava conspiração: sempre aos cochichos na sala, ela respondia às perguntas de minha mãe, que invariavelmente encerrava a conversa dizendo: “Afinal, não mudou nada!”

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Agora, alguma coisa mudaria, porque tio Álvaro estava morto. Ele era o caçula, um tio que jamais vi, porque a sua briga aconteceu antes mesmo que eu nascesse. Minha mãe costumava contar que os dois se trancaram num banheiro, ele aos gritos de que iria matá-la, ela sem se amedrontar em nenhum momento, querendo entregar uma faca para ele, gritando: “Mate agora! Mate!” Do lado de fora, meu pai batia na porta, recém-casado e tão inexperiente em confusões daquela estirpe. Devia estar assustadíssimo quando tio Álvaro saiu do banheiro, chorando de impotência, com a irmã a chamá-lo de covarde. Eu nunca soube o verdadeiro motivo para aquela cena; ficava impressionada o suficiente com a imagem dos dois aos tapas, minha mãe empurrando-lhe uma faca para que ele a matasse. Sempre me esquecia de perguntar a razão para tudo aquilo; acho que, na minha cabeça, as pessoas tinham o hábito de se trancar num banheiro, ameaçando-se como loucas.

Por intermédio de tia Maura, cresci sabendo que tio Álvaro era um gênio da informática, mas apesar disso não conseguia bons empregos, porque se recusava a receber ordens de qualquer chefia. Provavelmente a sua reação no banheiro, apesar do choro, também tinha sido um ato rebelde: ele não mataria a própria irmã, já que ela estava mandando que ele fizesse aquilo. Em última instância, eu pensava se minha mãe não conhecia o temperamento de Álvaro o bastante para saber que ele reagiria exatamente da forma contrária que ela ordenasse. Nesse caso, entregar-lhe uma faca seria a melhor maneira de permanecer viva.

É curioso como ao longo de duas décadas eu pude imaginar uma cena com tantos rostos emprestados. No banheiro, sempre se trancavam dois irmãos diferentes; a cada vez eles tinham feições novas. Mesmo que eu conhecesse fotos de minha mãe bem jovem, não conseguia colocá-la para gritar “Mate agora! Mate!” Conservava apenas o seu cabelo loiro e comprido, mas alterava a cor dos olhos, ou o formato do queixo, ou a estatura. O homem, então, aparecia nos mais diversos modelos: às vezes era negro, às vezes oriental. Por muito tempo eu lhe emprestei a fisionomia de atores que faziam o papel de vilões. Nenhum deles tinha a aparência do tio Álvaro, que agora eu via, no retrato em cima do caixão.

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O caixão estava fechado; somente o retrato identificava o morto, na capela quase vazia. Vagavam por ali dois serventes, arrumando cadeiras de plástico para a missa que iria acontecer. Minha mãe ficou paralisada, e eu imediatamente compreendi por quê: ela não lembrava como tio Álvaro e ela se assemelhavam. Na verdade, eu mesma identifiquei no retrato meus próprios olhos, sobrancelhas e lábios. Bastava retocar a imagem, acrescentando-lhe cabelos longos, para que tio Álvaro se transformasse em qualquer uma de nós.

Naquele instante, vimos chegarem outras pessoas — mais rostos familiares, não por serem próximos, mas por trazerem aquela idêntica expressão, os gestos, o modo de caminhar. Fui apresentada a alguns primos, achando todos meio ridículos, como se fossem caricaturas minhas. A fisionomia que eu enxergava no espelho de repente se repetia pelo mundo, em diversas formas levemente alteradas. Encontrei o meu nariz em pelo menos três mulheres, que não me cumprimentaram. Resolvi ficar quieta e o máximo possível escondida, para que o constrangimento passasse. Sentei-me numa cadeira, enquanto minha mãe tentava falar com toda aquela gente que a odiava. Ela ainda estava com o vaso de flores da mão, como se fosse entregá-lo, dizendo “Mate agora!”. Mas tio Álvaro já estava morto.

Alguns estranhos também entraram na capela – deviam ser amigos ou familiares do outro lado. Tia Maura havia comentado sobre o casamento de Álvaro, anos atrás. Na época dessa conversa, eu ainda morava com minha mãe e escutei os lamentos das duas na sala: “Que pena!”, “Que tragédia!”. Quando tia Maura foi embora, soube que haviam nascido gêmeas com síndrome de Down e uma delas, a mais fraquinha, morrera ainda bebê. A outra acabava de chegar para o funeral do pai.

Óbvio que era ela: uma garota grande e triste, com os olhos como fendas numa máscara. Andava pesadamente, segurando o braço da mãe. As duas sentaram-se na primeira fileira, sem falar com ninguém. O padre começou o ofício; minha mãe deu uma corridinha para colocar o vaso com flores ao pé do caixão. Ela sentou-se junto com outras pessoas e ficou fazendo sinais para que eu me aproximasse, mas fingi que não via. Estava muito bem ali, no canto mais recuado, onde tio Álvaro não passava de um retrato borrado pela distância. Ao longo de toda a missa, observei as costas de sua esposa: ela não parecia murmurar qualquer oração, nem se benzia. A menina também ficava parada, com as duas tranças imóveis, caídas sobre os ombros. Imaginei em que hora sua mãe as fizera, puxando as mechas desde o alto da cabeça, os dedos costurando os fios em voltas unidas, um ritmo de serpente até o laço na ponta. De um dos lados, a fita era azul; do outro, verde.

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Quando a missa terminou, dois serventes vieram carregar o caixão. Voltei a ignorar os gestos convulsos mandando que eu saísse do meu lugar; estava decidida a ficar por último, no final da fila que seguiria até o enterro. Minha mãe suspirou, frustrada, mas seguiu junto com tia Maura, que tinha acabado de chegar. Todo mundo caminhava com aquela lentidão fúnebre, e eu ainda nem havia me levantado da cadeira. Sabia que tinha passos largos o bastante para alcançar o grupo quando quisesse.

O retrato de tio Álvaro ficou no chão, ao lado das flores. Eu calculava que houvesse algum tipo de serviço responsável por devolver os acessórios à família; assim, não estava realmente querendo pegar a foto ou guardá-la. Andei até ela por uma simples curiosidade – mas logo me arrependi. Numa fração de segundo, a mulher entrou de volta na capela, furiosa como se fosse estapear uma herege. Não me disse nada, mas agarrou o porta-retratos e chutou o vaso, para despedaçá-lo. Em seguida, saiu, com a mesma pressa absurda com que havia entrado. A menina, entretanto, ficou mais um pouco: ela olhava para as pétalas encharcadas, os cacos de cerâmica. Depois, correu, balançando as tranças como se fossem dois lenços moles.

Tércia Montenegro é autora do livro de contos O tempo em estado sólido, 2012.

Ilustração: José Aguiar