Cenas da cidade do século XXI

A poesia urbana, visual, pop e precisa de Marcelo Montenegro é publicada pela Companhia das Letras no volume Forte apache, reunindo um livro inédito e outros dois títulos que saíram anteriormente por pequenos selos

Marcio Renato dos Santos

Foto: Marcus Steinmeyer
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Com tiragem de 2 mil exemplares, a Companhia das Letras acaba de publicar Forte apache, livro de poemas de Marcelo Montenegro, 46 anos. A obra reúne um livro inédito, Forte apache, e outros dois títulos que o poeta publicou anteriormente — Garagem lírica (2012) saiu pela Annablume e Orfanato portátil teve duas edições, inicialmente com o selo Atrito Art, em 2003, e, em 2012, via Annablume.

Marcelo Montenegro afirma que a negociação com a Companhia das Letras teve início há dois anos, por intermediação do escritor Leandro Sarmatz, na época editor na empresa. A princípio, lembra Montenegro, a obra seria uma coletânea misturando inéditos e poemas selecionados dos livros anteriores. “Cheguei a montar a coletânea, ficou bacana e tal, mas aí comecei a pensar: poxa, meus dois primeiros livros são curtos, saíram por editoras pequenas e estão esgotados. Então sugeri essa forma que o livro adquiriu: os três livros na íntegra, cada um apresentado como um capítulo”, conta.

No entanto, Leandro Sarmatz saiu da Companhia das Letras para fundar a editora Todavia, ao lado de outros editores. “Na minha cabeça, a saída do Sarmatz encerrava o processo, mas a Alice Sant’Anna, que eu já conhecia também, de alguns eventos literários e, claro, por sua poesia, de que gosto muito, assumiu o lugar dele [Sarmatz]. Ela me mandou um e-mail perguntando se eu ainda não tinha fechado com ninguém, porque a editora tinha interesse em prosseguir com o projeto, e cá estamos”, comenta Montenegro, ressaltando estar feliz por ter sua poesia publicada pela Companhia das Letras.  

A casa editorial de Luiz Schwarcz conseguiu comercializar 140 mil exemplares de Toda poesia, de Paulo Leminski, e tem no catálogo, além de nomes consagrados do Brasil e do exterior, um seleto grupo de poetas brasileiros vivos, entre os quais Armando Freitas Filho, Paulo Henriques Britto, Marilia Garcia, Angelica Freitas, Ana Martins Marques, Eucanaã Ferraz e Fabricio Corsaletti. Montenegro tem consciência de que, a partir de agora, sua poesia terá mais visibilidade. “Ao mesmo tempo, isso não significa que meu trabalho vai automaticamen te chegar às pessoas”, pondera.

O poeta analisa que o mercado editorial é uma grande loteria. Ele, inclusive, considera a situação dos best sellers bastante relativa. Um livro, salienta Montenegro, pode vender bilhões de exemplares hoje e “depois de amanhã ninguém mais sabe do que se trata”. “Ao passo que uma obra como Flores do mal (1857), de Charles Baudelaire, pode seguir ‘vendendo mal’ há mais de 100 anos”, relativiza.

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Manoel de Barros underground
O poeta Ricardo Chacal, 66 anos, salienta que a poesia de Marcelo Montenegro já devia ter sido publicada há tempos por uma grande editora. “Os poemas dele são enxutos, possuem uma força imagética fortíssima e, ao mesmo tempo, ao avesso dos beats, seu verso é seco. Sua viagem é pop. Há uma coleção de flashes poéticos de coisas inúteis, descartáveis, que servem para a poesia. Marcelo é um Manoel de Barros underground”, define Chacal, veterano da geração mimeógrafo, autor, entre outros, de Muito prazer (1972) e Tudo e mais um pouco: poesia reunida (2016).

De fato, a exemplo do que Chacal observa, há uma série de flashes poéticos, de coisas inúteis, descartáveis, que servem para a poesia nos textos de Montenegro. O poema “Bruxismo” apresenta flashes poéticos, entre os quais: “Um pote de raiva esquecido no sótão”, “Um deus discotecando instantes” e “Uma adega de ausências que o tempo elabora”. 

A viagem pop de Montenegro, mencionada por Chacal, pode ser conferida no primeiro fragmento do poema “Ensaios”: “Nelson Cavaquinho é o Ingmar Bergman do samba;/ AC/DC, os James Browns do metal;/ Marcelo Nova foi o Toquinho do Raul;/ o seu Francisco (a duas quadras daqui de casa)/ é o Shakespeare dos pastéis; Ramones/ são Beatles arruaceiros; Faulkner, um pedreiro/ experimental; Lou Reed é um Frank Sinatra/ roto; Carver é Hopper (em formato conto);/ Tom Zé é um misto de Marcel Duchamp/ com Jackson do Pandeiro; Seinfeld é Homero”.

Outras características da poesia de Montenegro destacadas por Chacal, como força imagética e texto enxuto, estão presentes, por exemplo, na segunda parte de “Ensaios”: “Beatles é uma perfeição/ a que a humanidade/ raramente chega./ É Tchékhov, Rilke, Pelé/ e Coutinho, Nonas/ Sinfonias, Ilíadas, Catherine/ Deneuves, pirâmides/ egípcias de três minutos”.

O cantor e compositor Leoni acrescenta que Marcelo Montenegro sabe encontrar poesia em qualquer detalhe do cotidiano. De acordo com Leoni, Montenegro desenterra lirismo de onde não se espera. “Sua poesia, aparentemente simples, é cheia de referências e apropriações, sem que jamais se torne arrogante. Ao contrário, misturadas ao ‘enroladinho de presunto e queijo’ e aos personagens da Corrida Maluca, às infinitas canções que tocam no fundo dos seus versos, tornam sua poesia ainda mais íntima, afetiva e surpreendente”, completa.

A imagem mencionada por Leoni, “enroladinho de presunto e queijo”, e os personagens da Corrida Maluca — “Penélopes Charmosas. Dick Vigaristas” — aparecem em “Poema estatístico”. Já as infinitas canções, elas estão presentes em praticamente toda a poesia de Montenegro.

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Acompanhado do baixista Diego Basanelli (esq.), do baterista Rick Vechionne e do guitarrista Fábio Brum, Marcelo Montenegro apresentou Tranqueiras líricas no SESC Consolação (SP) em 2011.

Tranqueiras líricas
Ainda em 2017, Marcelo Montenegro lançou Tranqueiras líricas, um álbum com 16 faixas que registra e celebra o espetáculo homônimo que ele realiza desde 2005. Acompanhado do guitarrista Fábio Brum, o poeta diz seus textos. Leoni é um apreciador das apresentações de Montenegro. “O Marcelo e o Fábio Brum inventaram algo novo. Os poemas dele [Montenegro], já bastante musicais, viram quase letra de música acompanhada de instrumentos. A abordagem dos dois, da parceria poesia/música, inova no sentido de que não há a usual preponderância da primeira sobre a última. Não se trata de um fundo musical, mas de uma outra potência, com outros significados que se agregam aos versos falados como se tivessem sempre existido juntos”, define o cantor e compositor, autor dos hits “Só pro meu prazer” e “Garotos II”, entre outras canções. 

Tranqueiras líricas, de acordo com Montenegro, é um espetáculo em que ele diz seus poemas ao som de blues, jazz e rock’n’roll. “E quando falo ‘digo meus poemas’ é exatamente isso: sou basicamente tímido. Portanto, discreto. Portanto: não faço ‘performance’, apenas digo meus poemas. E, ao longo desse tempo, evoluí no diálogo com os músicos, as pausas, as inflexões de voz”, afirma.

Mas, independentemente do espetáculo, Montenegro ressalta que todos os seus poemas são escritos, primeiro e sobretudo, para o papel — para serem lidos. A música, no entanto, sempre teve importância ‘literária’ para o poeta. “Então, o cuidado com o ritmo, por exemplo, é algo crucial no meu processo de escrita. Uso rimas também, não tenho o menor problema com elas. Por conta disso, muitos dos meus poemas também funcionam falados”, explica.

O trabalho de dizer os poemas em palcos, acompanhado de músicos, resultou, nas palavras de Montenegro, em algo com vida própria — “tanto que acabou de sair o álbum Tranqueiras líricas”. Então, continua o poeta, é natural que algumas pessoas pensem que ele escreve poemas para serem falados: “Mas tem uma coisa: não são todos que soam bem falados. É preciso estar atento a isso. Tem vários que nunca falei em público, porque, no meu entender, funcionam apenas na página”.

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O livro Forte apache e o álbum Tranqueiras líricas fecham um ciclo (e abrem outro) no percurso do poeta Marcelo Montenegro.

Refazer o mundo
Montenegro tem a sensação de que, com o álbum Tranqueiras líricas e a publicação de Forte apache, fecha-se um ciclo em sua trajetória: “Afinal, trata-se da reunião de todos meus poemas e o registro, em estúdio, de meu projeto em parceria com o Fábio Brum”. 

O título do livro também é importante para o poeta. Primeiro, ele explica, porque forte apache era sua brincadeira de infância preferida: “Eu passava horas brincando sozinho. E tem essa coisa de você ter diante de si centenas de peças para montar/ inventar mundos, etc. Então, nesse sentido, achei que funcionaria bem como título da trilogia, e não só do livro em si”, comenta Montenegro, acrescentando que, para ele, a literatura é uma espécie de continuidade lógica dessas brincadeiras solitárias da infância — “como a frase do François Truffaut que uso num poema: de ‘refazer o mundo com os nossos brinquedos’”.

No texto da orelha de Forte apache, Chacal diz que Montenegro é um artista atento aos detalhes — e outros leitores da obra do poeta também dizem o mesmo. Montenegro, por sua vez, afirma que sua poesia é urbana e cinematográfica. “Trabalho com detalhes, com pequenas cenas e sensações, uma coisa meio Short cuts, do Robert Altman. Digamos, nesse sentido, que eu esteja mais para Plotino, para quem a beleza está na parte, e menos para Aristóteles, para quem a beleza está no todo”, teoriza, para em seguida acrescentar: “Como eu vivo brincando, acho que meus poemas estão em algum ponto entre João Cabral de Melo Neto e Jerry Seinfeld”.

Montenegro conta que, antes de escrever um poema, observa, imagina, anota e vai construindo: “No caso da feitura dos poemas, embora eu mexa quase todos os dias nos textos em que estou trabalhando, é um processo no geral bastante lento — basta ver a distância de publicação entre meus livros. Nunca fiz um poema que saísse de cara, isso é impensável pra mim”.

Ele ainda observa que, ao escrever poemas, trabalha como se fosse um editor, por subtração, “cortando, cortando e cortando”. “Um amigo poeta, aliás, me disse uma vez que não gosta de mexer no que escreve. Segundo ele, o texto perde a espontaneidade inicial”, comenta Montenegro, que brincou com o amigo, “falando seríssimo”, que ele, Montenegro, mexe nos próprios poemas que nem um condenado justamente para chegar a essa “espontaneidade inicial”. Tem um verso de uma letra que Montenegro escreveu para a amiga e cantora Vanessa Bumagny que endossa essa atitude e diz o seguinte: “Ensaiar até parecer que é improviso”. 

Montenegro garante que, a exemplo de um dos destaques de Forte apache, “Poetas moram dentro de seus poemas”, ele habita seus textos poéticos. O poeta, inclusive, leu recentemente uma entrevista de Kendrick Lamar, e se apropria de uma resposta do rapper norte-americano para definir seu processo de criação: “São pedaços de mim. E como executo isso é o desafio maior. Você tem que ser muito cuidadoso. Essa merda pode se espatifar se não for executada direito”.  

MEMÓRIAS DE UM OPERADOR DE LUZ
Marcelo Montenegro nasceu e vive em São Caetano do Sul (SP). Formado em História, com pós-graduação em Comunicação e Semiótica, trabalha desde os 14 anos. Já atuou em fábrica de boné de fundo de quintal, consertou e instalou interfones, foi vendedor em loja de discos, deu aulas de História e, há uma década, é roteirista e criador de séries de ficção para a TV. Tem trabalhos em algumas das principais produtoras do país, como O2 Filmes, Mixer, Globosat e Bossa Nova.
Durante algum tempo, também atuou como iluminador e operador de som em teatro, trabalhando com diretores como Fauzi Arap, Mário Bortolotto, Hugo Possolo, Fernanda D´Umbra e Marcelo Rubens Paiva.
Em Forte apache, há um poema chamado “Memórias de um operador de luz”. O Cândido quis saber sobre a experiência e Montenegro escreveu o seguinte:

Muito raramente [ainda atuo como operador de luz em espetáculos de teatro], uma pena, porque é algo que adoro. Mas o trabalho de roteirista, que também adoro, acabou comendo — exceção à poesia — todas as minhas outras atividades profissionais. Comecei a trabalhar em teatro no fim dos anos 90/começo dos 2000, graças ao meu amigo Mário Bortolotto, que conheço praticamente desde que chegou em São Paulo. É um irmão, além de, claro, um dramaturgo, ator e escritor gigantesco. Um dia, tomando cerveja, disse a ele que acho que faria bem esse trabalho, de operar luz e som. E o Mário não só concordou como me chamou para trabalhar na peça que ele ia começar a ensaiar: Kerouac, monólogo escrito pelo Maurício Arruda Mendonça, sobre o autor de On the road, com o Mário em cena e direção de ninguém mais ninguém menos que o grande Fauzi Arap. Foi um dos grandes privilégios da minha vida, a primeira peça em que trabalhei ter sido com o Fauzi. Tive com ele uma das minhas maiores lições de linguagem.
Nos ensaios, o Fauzi dirigia com precisão mais do que cirúrgica cada movimento do Marião. A peça tem uma complexa engenharia de minúcias do início ao fim. Cada movimento, cada olhar, é tudo partiturado. Então, depois de marcar uma cena, o Fauzi chegava no Mário e dizia: “Está ótimo, Mário. É isso mesmo. Agora dá só uma ‘sujadinha’ nessa marca, para não parecer que é uma marca”. Rapaz... Isso foi uma escola. Que rigor. Que humildade. (Aliás, o que a Janet Malcom fala sobre o Mitchell vale também para o Fauzi: seu trabalho nos força “a assumir mais riscos e ser mais humildes”.) Que, diga-se, muitos gostam de chamar, numa abordagem superficial — o duro é quando soa afetada ou pedante — de “falta de linguagem”. Porque muitos, em arte, fazem questão justamente do contrário: o que importa é escancarar a marca.