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Pra cima com o Salinger, moçada

O autor de O apanhador no campo de centeio produziu uma obra pouco extensa, porém notável. Recluso e sem publicar por quase meio século, morreu em 2010. Desde então, cresceram as especulações sobre os livros que ele teria escrito durante as décadas de autoexílio. O jornalista Roberto Muggiati comenta sobre o que pode acontecer com o legado do escritor


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Salinger


Até morrer em 2010, aos 91 anos e 26 dias, Jerome David Salinger foi o mais zeloso guardião de sua obra. Com seu desaparecimento, começaram as especulações de que pudesse ocorrer um relaxamento da sua proibição taxativa de transformarem seus livros em filmes e de que também viessem à tona alguns dos textos que alegava escrever diariamente no seu bunker em Cornish, New Hampshire, desde sua última publicação — a novela Hapworth 16, 1924, em 1965 — até 2008. Já imaginaram quantos livros dariam seus 43 anos de trabalho literário intenso?

Mas a cereja do bolo de uma nova onda salingeriana seria a versão filmada de O apanhador no campo de centeio. A relação de Salinger com o cinema sempre foi rica e complexa. Ele viveu a adolescência nos empolgantes primeiros anos dos filmes falados — os talkies — que, com o rádio e as revistas ilustradas eram as maiores formas de divertimento contra as agruras da depressão econômica. Uma lenda atribui o nome do personagem Holden Caulfied à visão que Salinger teve de uma marquise de cinema anunciando Dear Ruth (1947), estrelado por William Holden e Joan Caulfield. Acontece que a primeira história figurando Holden, I’m Crazy, foi publicada na revista Collier’s em 22 de dezembro de 1945, um ano e meio antes do lançamento do longa. E, antes de pontificar em O apanhador, o personagem aparece ainda, com o nome completo de Holden Morrissey Caulfied num conto de dezembro de 1941, o primeiro que Salinger teve aceitado pela prestigiosa New Yorker, “Slight rebellion off madison”. (Com o ataque japonês a Pearl Harbor e a entrada dos EUA na guerra, a New Yorker só publicaria a história em 22 de dezembro de 1946.) E, ainda, num conto de outubro de 1945, na revista Esquire, “This sandwich has no mayonnaise”, Holden Caulfield é dado como desaparecido em ação na guerra.

Como consolação, depois da morte de Salinger, começaram a aparecer (e estão disponíveis no YouTube), versões isoladas de seus contos, particularmente “Peixebanana” e “Para Esmé – com amor e sordidez”.

Traumas cinematográficos

J.D. Salinger sofreu dois traumas relacionados com o cinema. Em 1942, aos 24 anos, ele começou a se encontrar com a filha do dramaturgo Eugene O’Neill, Oona O’Neill, de 17 anos, a Debutante do Ano daquela temporada no Stork Club de NY. Antes dele, Oona já tinha namorado o cartunista Peter Arno e o cineasta Orson Welles. Embora comentasse com um amigo que “a pequena Oona está loucamente apaixonada pela pequena Oona”, Salinger ficou apaixonado pela moça e só a guerra os separou, mas a troca de cartas continuou intensa, até que um dia ela parou de responder. Foi pelos jornais, já no exército dos Estados Unidos, que ficou sabendo do casamento dela, um mês depois de completar 18 anos, com o Rei do Cinema, Charles Chaplin, então com 54 anos. Uma carta da época dá uma medida da mágoa de Salinger: “Posso vê- -los nas noitadas caseiras. Chaplin agachado cinzento e nu, em cima da cômoda, balançando sua tireoide ao redor da cabeça com a bengalinha de bambu, como um rato morto. Oona, num vestido água-marinha, aplaudindo loucamente do banheiro.”

O segundo problema teve a ver com a adaptação de um conto seu para as telas. Os irmãos Julius e Philip Epstein (do roteiro de Casablanca) sugeriram ao produtor Samuel Goldwyn a compra do conto de Salinger “Uncle wiggily in Connecticut”, publicado na New Yorker de 20 de março de 1948. Salinger vendeu os direitos. Os Epstein roteirizaram e Mark Robson dirigiu o filme My foolish heart/Meu maior amor, estrelado por Dana Andrews e Susan Hayward. Foi uma tentativa honesta, mas como encher hora e meia de projeção com uma história de menos de 20 páginas? A magia dos contos de Salinger reside justamente no que fica de fora, na economia de meios narrativos e no poder da sugestão. My foolish heart decepcionou na bilheteria e foi açoitado pela crítica. Talvez a contribuição maior da fita tenha sido a canção-título, música de Victor Young e letra de Ned Washington, que seria imediatamente adotada como uma favorita dos jazzistas, Bill Evans que o diga. Já Salinger detestou e jurou que nunca mais venderia um texto para Hollywood.

Após o lançamento do Apanhador, Salinger seria assediado com propostas de adaptação para o cinema. O próprio Sam Goldwyn foi de novo à carga. O ator Jerry Lewis tentou conseguir o papel durante anos e outros se candidataram, como Marlon Brando, Tobey Maguire, John Cusack, Leonardo DiCaprio e Jack Nicholson (que aparece lendo o Apanhador no filme O iluminado.) Bob Dylan foi muito falado para o papel nos anos 1960. Diretores como Billy Wilder e Steven Spielberg também correram atrás; Elia Kazan quis adaptá-lo para a Broadway. Já pensaram num Holden Caulfield, o Musical? Salinger descartou a ideia com ironia. Sugeriu que ele mesmo montaria a peça, figurando no papel de Holden com a atriz-mirim Margaret O’Brien.

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Salinger guerra

Salinger lutou na Segunda Guerra Mundial e participou do desembarque à Normandia, no famoso Dia D, em 6 de junho de 1944.

Quase tudo igual

Depois da morte de Salinger em 2010, Phyllis Westberg, agente do escritor, disse que nada havia mudado quanto ao licenciamento de suas obras para teatro, cinema ou TV. Mais recentemente, foi publicada uma carta de Salinger, escrita em 1957, que muda um pouco as coisas. “É possível que um dia os direitos do Apanhador sejam vendidos. Como existe uma forte perspectiva de que eu não venha a morrer rico, brinco seriamente com a ideia de deixar os direitos para minha mulher e filha como uma espécie de apólice de seguro. Isso não me dá nenhum prazer. Mas, felizmente, não verei os resultados da transação. O único teatro para o qual quero escrever é aquele palco maravilhoso dentro da cabeça de cada leitor.”

Novas histórias?

Outra interrogação importante é se teremos acesso a novos textos de Salinger. Sua última história, Hapworth 16, 1924, foi publicada na revista The New Yorker em 19 de junho de 1965, ocupando quase toda a edição com suas 80 páginas. Salinger, em 1996, tomou a iniciativa de publicá- -la na forma de livro por uma pequena editora da Virginia. Foi até lá pesquisar detalhes como tipologia e pano da capa, mas quando a mídia criou um estardalhaço, com os livros já impressos e prontos para distribuição, ele abortou a publicação. Curiosamente, este último texto publicado de Salinger termina pelo começo de tudo, uma carta do menino de sete anos Seymour Glass para a família contando sobre suas férias num acampamento de verão. A estreia de Seymour como personagem começou pelo fim, com seu suicídio aos 31 anos em “Um dia perfeito para peixebanana”, publicado em 1948. 

Joyce Maynard, que teve uma relação amorosa de nove meses com Salinger (ela com 18 anos, ele 53), e tratou do caso no livro Abandonada no campo de centeio, disse que ele continuava trabalhando disciplinadamente algumas horas toda manhã e que, em 1972, tinha completado dois romances. Em 1974, Salinger pegou o telefone e ligou para uma repórter do New York Times. Numa rara entrevista — a primeira em 21 anos —, ele se mostrava preocupado com versões pirateadas de seus contos avulsos publicados em revistas. Obteve o que queria: uma matéria na capa do jornal e, com a colaboração do FBI, o pronto recolhimento dos contos (22 no total) que não queria ver publicados (“gaucheries of my youth” — bobagens da minha juventude). Na ocasião, ele revelou à repórter: “Existe uma rara paz em não publicar... Gosto de escrever. Adoro escrever. Mas escrevo só para mim mesmo e para meu prazer.” Segundo Maynard, ele encarava a publicação como uma tremenda interrupção, uma invasão de sua privacidade.

Mas Salinger não se mostraria tão radical com o avanço da idade. No seu livro de memórias Dream catcher/Guardião dos sonhos (2000), a filha de escritor, Margaret, diz que ele criou um sistema de arquivamento detalhado para seus manuscritos inéditos: “Uma marca vermelha significava, se eu morrer antes de terminar meu trabalho, publiquem isso ‘como estiver’; azul significava publiquem, mas editem primeiro, e assim por diante.” Um vizinho comentou que o autor havia lhe dito que já escrevera 15 romances inéditos.

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O empresário Donald Hartog e J. D. Salinger posam em Londres, em 1989.

Ponto de virada

O verdadeiro divisor de águas na vida de Salinger ocorreu quando ele deixou Nova York em 1953 e foi morar, pelo resto dos seus dias, em Cornish, New Hampshire. Dois anos depois, aos 36 de idade, casou com Claire Douglas, 20 anos, que seria a mãe de seus filhos Margaret (1955) e Matthew (1960). Claire era filha de um famoso crítico de arte britânico e Salinger a conheceu numa festa em Cambridge. Ela inspirou o marido a criar o personagem Franny, do livro Franny e Zooey (1961). Publicado primeiro na New Yorker de 7 de fevereiro de 1955, Franny foi o presente de casamento de Salinger a ela.

No início da relação, o casal empreendeu uma verdadeira maratona de busca religiosa, passando por coisas como a Paramahansa Yogananda, o Kriya Yoga, a Dianetica — precursora da Cientologia (conheceram até seu fundador, L. Ron Hubbard) — e uma sequência de crenças médicas, espirituais e nutricionais que incluíam Edgar Cayce, a Ciência Cristã, macrobiótica, acupuntura e homeopatia. Salinger sofreu também a influência do budismo Zen. A epígrafe de Nove estórias é um koan — espécie de charada — do Zen: “Conhecemos o som de duas mãos batendo palmas, mas qual é o som de uma mão batendo palma?”

A esta altura, Salinger tinha construído um bunker, uma estrutura de concreto afastada da casa principal onde começou a se trancar dias seguidos só para escrever. Uma ex-empregada relatou: “Ele nunca estava em casa. Tinha um estúdio a uns trezentos metros da casa e ficava lá o tempo todo, às vezes duas semanas seguidas. Tinha um pequeno fogão em que podia esquentar comida. Acho que era duro para Claire. Enquanto trabalhei lá, Jerry estava sempre no seu quartinho de escrever.”

Contam os biógrafos de Salinger, David Shields e Shane Salerno: “Ninguém podia entrar no bunker. Era o lugar seguro e um lugar sagrado para ele. Instalou ganchos nos quais pendurava cenas que havia escrito. Havia notas pregadas nas paredes. Era o lugar em que Salinger se tornava seus personagens (...) Nas histórias da família Glass, o conceito do Karma-ioga oriundo do Bhagavad Gita reza que você deveria fazer seu trabalho com tanta perfeição quanto pudesse, sem nenhum pensamento de recompensa, e só assim poderia ser uma pessoa realmente feliz.”

Segundo Claire “ele passava semanas lá e voltava com o texto que devia estar terminando todo rasgado ou destruído e algum novo ‘ismo’ religioso para seguirmos.” Aquela rotina tornou um inferno a vida de Claire. Em seu livro de memórias, a filha do casal, Margaret Salinger, revelou que a mãe admitiu, anos depois, que estava à beira da loucura em 1957 e pensou em matar a filha e se suicidar. Mas Claire suportou a situação até 1966. O médico que a examinou na época, Dr. Gerard Gaudrault, escreveu: “Queixava-se de tensão nervosa, insônia, perda de peso e que tais problemas eram causados por sua situação conjugal. O laudo médico levou Claire a pedir divórcio em 1967. Além de um breve caso com a escritora Joyce Maynard em 1972 e outro com a atriz de TV Elaine Joyce, nos anos 1980, Salinger casou-se em 1988 com Colleen O’Neill, enfermeira que também fazia artesanato de colchas, 40 anos mais moça, união que durou até a morte do escritor.

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A casa do escritor em Cornish, cidade em que se refugiou em 1953.

Existe ainda o misterioso primeiro casamento de Salinger, com a alemã Sylvia Welter, que expôs Salinger ao risco de corte marcial. Ele a levou para os Estados Unidos em abril de 1946, mas o casamento só durou oito meses. Em 1972 sua filha Margaret estava com ele quando recebeu uma carta de Sylvia. Rasgou o envelope sem abrir. Era a primeira vez que ela dava notícias depois da separação, mas, segundo Margaret, “quando ele terminava com uma pessoa, terminava mesmo, para sempre.”

Um livro sobre sua relação telepática com Sylvia e o segredo de guerra que o levou a acabar o casamento é uma das cinco obras (leia box "Salinger inédito" abaixo) com publicação prevista entre 2015 e 2020, O polêmico livro de Joyce Mainard, ex-amante de Salinger. Duas biografias sobre o escritor publicadas recentemente no Brasil. segundo instruções deixadas pelo próprio Salinger para a liberação de obras póstumas. A revelação foi feita pelo escritor David Shields e pelo cineasta Shane Salerno, na biografia conjunta de Salinger em livro e DVD.

A certa altura de O apanhador, Holden Caulfield monologa: “O que realmente me toca é um livro que, quando você acabou de ler, lhe dá o desejo de que o autor fosse um tremendo amigo seu e que você pudesse telefonar para ele sempre que sentisse vontade.” Ironicamente, Salinger-o-autor escolheu exatamente o oposto: o silêncio e o afastamento dos seus leitores. A se confirmar a concretização de suas disposições póstumas, com a publicação de textos inéditos, poderemos todos nós que o amamos, finalmente ouvir o som de uma mão batendo palma.


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O polêmico livro de Joyce Mainard, ex-amante de Salinger e duas biografias sobre o escritor publicadas recentemente no Brasil.


Salinger e eu

Roberto Muggiati

Em 1962, investi na redação da Senhor, em Copacabana, e ofereci ao chefe de redação, Paulo Francis, minha tradução do conto de J.D. Salinger Um dia perfeito para peixebanana. A revista publicou no número seguinte e tornei-me o primeiro a traduzir Salinger para o português, embora sem receber o devido crédito. (Tempos depois, para efeitos de aposentadoria, obtive uma carta do editor da revista, Reinaldo Jardim, atestando que a tradução era minha.) A publicação do conto na Senhor era uma amostra dos tempos que vivíamos, sem pecado abaixo do Equador: publicava-se Salinger na marra — logo ele — sem pagar direitos autorais. 

Reclamei o crédito e a Senhor expiou sua culpa publicando em outubro do mesmo ano meu ensaio Os moralistas corruptores, sobre uma turma bem mais da pesada do que JD — Sade, Lawrence, Miller, Mailer & Cia. Assinado, desta vez. Entrei assim para a galáxia da revista mais sofisticada que o Brasil já teve, apesar de sua trajetória — para insistir na terminologia dos astros — meteórica. A Senhor durou cinco anos, de março de 1959 a janeiro de 1964. 

Outro episódio que vivi com o peixebanana foi quando a revista da editora Brasiliense me pediu um texto sobre o conto e resolvi escrevê-lo na forma de um peixebanana. Depois de datilografar o texto, cortei com tesoura palavra por palavra e, com cola sobre papel, fui compondo manualmente o artigo em forma de peixe (imagem abaixo). A reação do editor: “Mas não dá para ler assim.” E publicou o texto no formato protocolar de retângulo vertical, com duas silhuetas em grisê do meu peixe gorduchinho ao fundo. O artigo intitulava-se Seymour, ou O dia em que o peixebanana saiu da água (alusão ao título de um filme da época). Eu chamava Holden Caulfield de “o Pequeno Príncipe dos rebeldes sem causa, que fez a cabeça da geração silenciosa dos anos 1950 e da geração ruidosa dos anos 1960.” 

Reação parecida teve o editor novaiorquino Robert Giroux em 1951 quando Jack Kerouac colocou em suas mãos a primeira versão de On the road, um só parágrafo datilografado em espaço simples num único rolo de papel de 40 metros de comprimento. “Mas não vai dar para fazer a revisão assim.” Kerouac pegou o rolo e se mandou. Menciono este incidente porque Giroux entrou para a história: além de perder On the road, também perdeu The catcher in the rye, ao insinuar a Salinger que o livro precisaria ser reescrito. Ou seja, deixou escorrer por entre seus dedos os dois grandes heróis cult da America do século XX: Dean Moriarty e Holden Caulfield.

Salinger


Salinger inédito

Ao longo de nove anos, Shane Salerno e David Shields entrevistaram mais de 200 pessoas ligadas a Salinger e reuniram relatos reveladores sobre as diversas facetas do notório recluso. O resultado do trabalho está na biografia Salinger, publicada no Brasil pela editora Intrínseca, em 2014. Com vasto material inédito, o livro especula sobre possíveis novos lançamentos com a assinatura de J.D. Salinger:

1) Cinco novas histórias sobre os sete irmãos da família Glass — focalizada anteriormente no conto “Um dia perfeito para peixebanana”, nos livros “Franny e Zooey” e “Pra cima com a viga moçada e Seymour: uma introdução” e na novela “Hapworth 16, 1924”. Para Salinger, os Glass são até mais importantes do que a família Caulfield. 
2) Um manual de histórias sobre o ramo religioso hinduísta Vedanta, incluindo contos e parábolas. 
3) O diário de um agente da contrainteligência americana no processo de desnazificação da Alemanha após o fim da guerra, cargo que Salinger exerceu, tendo sido um dos primeiros a entrar em contato físico com a mortandade nos campos de concentração e os horrores do Holocausto. Uma frase de Salinger: “Você nunca esquece o cheiro de carne queimada, ele fica em suas narinas até o resto da vida.” 
4) Peterpans é o título de cinco histórias sobre a infância de Holden Caulfield, o “apanhador” no campo de centeio.


Roberto Muggiati nasceu em Curitiba, em 1938, e começou a carreira na redação do jornal Gazeta do Povo. Estudou no Centre de Formation des Journalistes, em Paris, trabalhou na BBC de Londres e na revista Senhor, além de atuar como editor das revistas Manchete, Veja e Fatos e Fotos. É autor dos livros Mao e a China (1968), Improvisando soluções (2008), Rock/O grito e o mito (1973) e A contorcionista mongol (2000, romance). Muggiati vive no Rio de Janeiro (RJ).