VI CONCURSO LITERÁRIO LUCI COLLIN (UFPR): CRÔNICA | Norte velho, em voz alta, na frente do espelho 19/11/2024 - 16:44

Meu cachorro está velho, e não se dá conta de que, talvez, tenho ideia melhor sua hoje do que ontem, que sempre viveu em Japira. Mas com seus olhos cadu­cos e bons, dá ares de ter feito parte dessa história com mais inteireza: da perenidade, mas flutuante, dos seis anos desde que fui embora do Norte Pioneiro.

Seus olhos castanhos, de tempos em tempos esquivam e esquivaram de uma verdade que eu lhe submeto com minha volta. Seu rosto agora nessa idade si­lenciosa, guarda um segredo, ou um boato, que sem­pre suspeitei, mas só não se anuncia porque, quem sa­be, sabe tanto quanto eu, que aqui não tem futuro, ma­lemá passado ou presente, e a sua velhice repousa va­cilante num só espaço de um espaço só, a terra roxa do Norte Pioneiro.

Viajo assim no que ninguém de fora pode, à toa, reconhecer, a história pelas linhas do rosto, de bicho ou de gente, que avizinha na luta, na qual não se é o boia fria nem a lavoura, mas a conduta que rege o boia fria e a lavoura e, debaixo de sol quente, brota: olhos graúdos que, olha, tem de passagem o que tem de parado — constrangidamente.

A feição do cachorro é um supetão, me leva a lá de desde cedo, à minha avó e à minha tia, nas pupilas den­sas delas — eu vi ali os limites desse recanto nordestino, ouvi falar um idioma valioso, mas não apossei ne­nhum deles, e duvidei da vida, porque o rosto, a língua e o silêncio é tudo da história do pé vermelho. O tempo nela é tortuoso. Era o transcurso dele que eu queria escrevendo.

Coisas como tragédias, a COVID-19 e, bem antes disso, a geada de 1975, não atrapalham a contar os a­nos através dos shows nos rodeios de Pinhalão. Esses, sim, são marcantes e sólidos. Dos comércios que a­brem, as tendências que chegam; do prefeito que é eleito, preso e reconduzido, mas mudar mesmo a qualidade de vida na vila rural, ele não vai; até os ciganos que, tendo sumido da beira das estradas por anos e nos fizeram imaginar que atenderam as chances, reaparecendo para não se encaixar mais uma vez, o progresso e a esperança são safra sem seguro.

Essas promessas se viram em baixas expectativas, mas ninguém pode dizer que não sabemos louvar modernice, em curta temporada ainda, como se fossem mais um adorno, mais uma reforma na praça ou na igreja. Das dificuldades e novidades que ficaram pra trás, me resto: por que parece tão distante que já fomos tão mais pobres vinte anos atrás, e parece que me­lhorar de vida não muda a gente? A serventia e a diversão de um carro, de uma máquina de lavar, da internet e até do asfalto, não nos dá nenhuma noção gros­sa do tempo. Criava-se animais e se plantava em casa para comer, vender e se amarrar em charretes. Se nem isso proporciona o tempo, que história sem tempo é essa?

Em reuniões na porta do comércio e da casa da co­madre, amontoar é forte como visagem de zelo e desavença, que mantém tudo pertencente e agregado. Nessas horas tá o tempo, e ele voa. Quem diria: quem casou, espicha e tá juntado; quem morreu, morre mesmo; e quem foi embora, faz visita, entra pro calendário. A história acontece, com a cara do cabra na memó­ria ele envelhece, ou é nunca mais. Todo mundo que viu, dá o testemunho — que viu o Norte Velho.

Quando cheguei de viagem, foi isso o que meu cachorro me confessou, sem piscar, mas faltou dizer uma coisa que só sugeria. Agora que sei, tenho a impressão que ele, sim, sabia, e contava: se teus interesses te o­bri­garam a ir embora daqui, e não havia hectare e jeito para a tua promessa, inaugurou agora numa casa, u­ma livraria em Ibaiti.

Conhecendo minha gente que nunca foi de ler histórias, surpreendi-me com uma potencial cultura literária, vamos que assim da extravagância dá uma ma­nia forte, que eu caibo aqui de novo. Quanto à recep­ção, os empreendedores me deixam espiado. Só po­dem ser loucos, ou santos, ou astronautas, porque nos mais de 70 anos que o município tem, mesmo com um cinema fechado há tanto tempo que já parece mentira, nunca deu pra dizer que ia acontecer uma livraria, pelo contrário. Tivemos restaurantes japoneses, lojas de skate, lanchonete gourmet e clube de tiro (!). A livraria é uma pista de decolagem espacial. No nosso caso, temporal.

Acontece, sim, que forasteiros nunca foram bem hospedados nas abandonadas bibliotecas, que só em Japira tem Borges, Alice Ruiz e Pedro Nava — sairiam do baú tuas memórias? Nomes, datas, outros jeitos que circulariam, diriam sobre nós também, mas no mesmo tempo? Livros impressos ontem, para 2 vivê-los em cada vão momento um dito hoje, seriam mais, ou menos, enterro, partida e casamento?

Como disse, a história na linha do rosto caipira se escreve em norma oculta. Ela ganharia uma revisão então com uma terceira pessoa, pudesse mostrar ao espelho a conduta, rugas em anti-horário, como o povo que vai no IMS e vê a antiga Londrina por Haruo Ohara. Bem, se o livro é coisa de capital, aberto é tudo igual, episódios e novelas se sucedem no interior, elas é que são recapituladas, personagens é que as movem.

A livraria chegou e lembra as novidades, sim, mas na iminência de se ir, como tudo, ela pode, por fim, contar histórias que não sejam no susto e no às vezes, mas no reconhecimento a cada instante do nosso arco: o ciclo do café, um menino vai embora, uma pandemia, ele retorna, a livraria, o Norte Velho acorda em mais um dia com um dedo apontado pra cara, seu próprio. Ele se torna um clássico.


Samir Gid é escritor, realizador audiovisual, redator publicitário e pesquisador. Este texto, publicado de modo inédito nesta edição do jornal, ganhou o primeiro lugar no VI Concurso Literário Luci Collin, promovido pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Autor do livro de poesia Hórus & morangos (Kotter, 2023) e codiretor do curta-metragem “Napoleão na Ilha de Madalena” (2019). Já teve poemas publicados no jornal Cândido, na Revista Julia (Arte & Letra) e na Revista Bufo. Em 2023, participou do 1º Festival Internacional da Palavra de Curitiba. É mestre em Comunicação (UFPR), pós-graduado em Antropologia Cultural (PUCPR) e publicitário de formação.