Tradução | “O Corvo” 05/03/2020 - 15:29

Poe à brasileira

 

“Alguns dias de obsessão e a coisa estava pronta”, contam os professores da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Guilherme Gontijo Flores e Rodrigo Tadeu Gonçalves, que verteram para o português — de forma crítica — o poema “O Corvo”, de Edgar Allan Poe (1809-1849). O projeto começou com uma conversa no pátio da instituição em que lecionam e foi publicado no livro que assinam juntos, Algo Infiel: Corpo Performance Tradução (2017), como parte de um procedimento tradutório que chamaram de “tradução-exu”, em alusão ao orixá e à “política de tradução” escolhida pela dupla.

Nas mãos de Gontijo e Rodrigo, a ave de mau agouro ganhou nova representação em solo nacional — a começar pelo nome, “O Urubu”, um símbolo “do negro, do escravo, do excluído do jogo da racionalidade europeia”. Apesar de a recriação manter todo o malabarismo formal do trabalho do norte-americano (ritmo, rimas, jogos sonoros), ela dessacraliza os versos e apresenta uma alternativa tradutória crítica ao que eles definem como o “germe de um homem branco burguês romântico que lamentava a morte de sua amada angélica”, referindo-se ao enredo do poema.

Na versão brasileira, o que a ave anuncia obsessivamente deixa de ser o “complicado e esfuziante ‘Nunca mais’”, nas palavras dos autores da tradução, para se tornar um “afrontamento e um rebaixamento”: “Noteucu”. Eles reconhecem que, à primeira vista, essa escolha rímica (Urubu / Noteucu) pode parecer “mero jogo (pré-)adolescente de prazer escatológico”, mas há um raciocínio que embasa essa opção estética.

Apesar de ser tratada pelo público quase unanimemente como paródia, eles tentaram elaborar algo quase agressivo com a recriação. A partir dessa “irreverência crítica que relança o texto com seus problemas em outro mundo”, isto é, abandona as terras estadunidenses para desembarcar em clima tropical, Gontijo e Rodrigo buscaram revirar Poe ao contrário, trazê-lo para mais próximo do público-alvo e suscitar a reflexão. “Um gesto de parricídio, arrogância, um gesto pós-colonial”, afirmam.