TRADUÇÃO | como se diz mãe 04/04/2025 - 11:21

Os dois poemas selecionados para esta edição do Cândido são do escritor Jr. Bellé extraídos do livro Retorno ao ventre, edição bilíngue português/kaingang, traduzidos por André Luis Caetano e revisados por Lorecir Koremág Ferreira. A obra venceu o Prêmio Cidade de Belo Horizonte, em 2023, na categoria Poesia.

Jr. Bellé_nasceu em Francisco Beltrão, sudoeste do Paraná, terra indígena ancestral. É mestre em estudos culturais (EACH-USP) e doutorando em estudos literários (PPGL-UFPR). Foi escritor residente da Yaddo, em Saratoga Springs, Nova York, contemplado com a bolsa Abigail Angell Canfield and Cass Canfield Jr. Residency for Writers; e do Art Farm, em Marquette, Nebraska, onde escreveu seu primeiro livro, Trato de Levante (Patuá). 

A obra teve seus direitos vendidos para o cinema e foi exibida em festivais de poesia e cinema, como Queensland Poetry Festival, na Austrália, e Mammoth Lakes Film Festival, nos Estados Unidos. Publicou ainda a coleção de poemas amorte chama semhora (Patuá) e venceu o Prêmio Flipoços de poesia. Com seu primeiro romance, Mesmo sem saber pra onde (Folheando), venceu o Prêmio Variações de Literatura e recebeu menção honrosa no Prêmio Casa de las Américas, em Ha­va­na, Cuba.

 

como se diz mãe


há coisas que só deveriam ser ditas na língua materna

histórias que só deveriam ser escritas na língua

                                          [materna

 

essa é uma delas 

 

essa é a história de uma ausência

 

essa é a história da mãe da mãe da minha mãe 

e como não sei seu nome não sei seu rosto

te chamarei de mỹnh 

que é como se diz mãe em kaingang 

 

essa é a história de mỹnh 
essa é a minha história

 

ẽg mỹnh to ne ke tĩ


né ũ tóg ẽg vĩ pẽ tỹ vĩ ki tój ke nĩ vẽ

kar kãme ũ tóg kanhgág vĩ tỹ vĩ ki rán ke nĩ vẽ 

ag kã´ũ vẽ vẽnhrá tag ti 

 

kãme vẽnhrá tag tóg tỹ kãja tun ja tũ nĩ

 

kãme vẽnhrá tag vỹ tỹ nỹ tỹ nỹ tỹ inh nỹ fi tũ nĩ 

kar inh pi vẽnh jyjy ki kanhró nĩ kar vẽnhkakã ũ ke gé 

kỹ sóg ã mỹ mỹnh kej mũ 

ẽg nỹ to ne ke tĩ  

 

tag vỹ mỹnh fi kãme nĩ

tag vỹ tỹ inh kãme nĩ ser

 

apagamento


é sobre uma bamba pilha de livros 

que se equilibra o peso imenso e delicado da história

ou a gravidade brutal do seu vazio:

 

segundo as mais canônicas obras das ciências sociais

também da historiografia da geografia 

do jornalismo e da literatura paranaense 

segundo a narrativa das companhias colonizadoras 

segundo as crônicas das frentes pioneiras 

e a epopeia dos tropeiros e dos bugreiros 

segundo a saga dos colonos europeus e a sanha 

dos colonos brasileiros 

segundo os órgãos governamentais e os mapas 

e os atlas oficiais 

segundo a burocracia estatal e o imaginário popular 

e enfim segundo os livros didáticos 

até o início da terceira década do século XX 

o interior do paraná era um absoluto 

 

vazio de gente

 

sinônimos: sertão desabitado sertão esquecido sertão

                                           [longínquo

boca do sertão terras devolutas terras desocupadas 

terras desabitadas vagas terras domínio público 

largos espaços vazios ilimitado deserto 

área abandonada região despovoada 

zona desconhecida floresta intocada

 

vazio demográfico       

 

um exemplo: segundo wilson martins

professor de literatura brasileira na universidade de nova york

duas vezes laureado com o prêmio jabuti e autor do livro 

"um brasil diferente: ensaios sobre fenômenos 

de aculturação no paraná" (1955)
:

 

do ponto de vista humano

a província era um ilimitado deserto

na maior parte do território 

o vazio era absoluto: 

eram os campos gerais

era a floresta era a serra do mar

 

assim é o paraná 

território que do ponto de vista sociológico 

acrescentou ao brasil uma nova dimensão

a de uma civilização original 

construída com pedaços de todas as outras

sem escravidão sem negro

sem português e sem índio

dir-se-ia que a sua definição humana 

não é brasileira

 

outro exemplo: segundo nilo bernardes

pesquisador do instituto brasileiro de geografia e

                                     [estatística

da universidade católica do rio de janeiro e autor do

                                     [livro

"expansão do povoamento no estado do paraná"

                                     [(1952)
:
embora no começo do século 

os povoadores espontâneos 

já dessem início ao alastramento 

sôbre o oeste paranaense

 

no segundo planalto 

a encosta de guarapuava e de palmas 

ainda estava desabitada

todo o oeste dos atuais municípios 

de tibagi e reserva era ainda parte 

do vasto sertão que se continuava 

até o rio paraná

 

o termo sertão é aqui empregado 

sempre no sentido 

de vazio demográfico

 

por vazio demográfico entenda-se apagamento 

pois é evidente que aquelas terras estavam cheias

de pinheiro de macaco de tatu de xetá de unha-de-gato

de taquara-mansa de fumeiro-brabo de ipê de kaiowá 

de gralha-azul de chuchu de xokleng de cipó de aracá

de alecrim-do-mato de ariticum-preto de ingá de mỹnh

 

o vazio estava especialmente cheio de mỹnh 
estava cheio de nós 

 

era em direção a este grande vazio de gente 

a este imenso sertão desabitado 

que o capitão josé ozório e sua comitiva marchavam

 

um vazio que ele chamava de campos de guarapuava 

mas que o próprio vazio chamava de koran-bang-re 

um vazio que ele chamava de terras devolutas 

 

mas que o próprio vazio chamava de ẽmã 

mas que o próprio vazio chamava de casa

 

nhyn nhyn ke


rivro kamã ki

tóg ẽg kãme kufy ki króm tĩ

ã kufy tũ tóg kuprã nĩ

 

hã to ciências sociais to vãmén e tỹ vĩ han mũ 

kar ẽg kãme mré ẽg nỹtĩ ja ki 

jornalismo kar literatura to paraná tá 

ke ag tóg mũ vãmén ag tóg mũ companhias ag 

ke ag tóg mũ jã mĩ ke ag 

vẽnhrá sĩnvĩ tỹ vĩ ha tỹ vĩ kãru kri mũnh fã ag rán ja mré 

kanhgág ag kugmĩnh fã 

fóg tỹ europeus ag kãme mré brasil ki fóg ag tũ 

je pã’i ag rike kar mapa ag 

kãgrá oficial ag mré hã 

jo documento tỹ pã'i mág ag tũ ag rike kar ag jykre kar mré

kar ser rivro rike tỹ iskóra rivro ag 

ver século xx kã prỹg tỹ pénkar kri pénkar kã 

paraná mỹ tã tá ha mẽ 

 

ẽg kuprã vẽ 

 

paravra jag rike ag tag ag vera: jamã katy jamã kãjatun kỹ nĩ

kar jamã kór gy tỹ vĩ ga katy jẽnky vẽ ga kunũnh ja 

ga kuprã ke gé ga tỹ vé ké nỹtĩ pã’i ag tu 

rugar mag ag kuprã ke gé ga katy

amã tovãnh kỹ nỹtĩ kuprã tá ne tũ 

ga vẽnhmỹ nẽn tỹ ki rãnh vãnh 

 

tá kuprã 

 

ha vé: ke tóg mũ wilson martins ti 

prosor tỹ literatura brasileira universidade de nova york tá 

rivro rẽgre ki tóg gyjũ ke mũ prêmio jabuti ki kar 

"um brasil diferente: ensaios sobre fenômenos 

de aculturação no paraná" (1955) 


ẽg tỹ pãvãnh rike 

ti nĩgja tá tóg tỹ ga kuprã tĩ 

ti ga pénĩn to hã 

kuprã tỹ vĩ: 

re mág campos gerais kar hã vẽ ser 

serra do mar vẽ 

 

ge tóg nỹ paraná ti 

ẽg tỹ ki pãvãnh kỹ ẽg tóg to ge tĩ 

brasil ki rã mũ gé ga ha tỹ vĩ 

ki ũn si ag tóg nỹtĩ ver 

ga ũ tỹ han kỹ nĩ 

tỹ vẽnyn fã tũ mré fóg sá tũ 

fóg vĩ tũ mré kanhgág tũ 

ge tóg nỹ ser 

pi tỹ brasileiro nĩ ser 

 

ha tag ve gé: ge tóg mũ nilo bernardes ti 

pesquisador vẽ instituto brasileiro de geografia e estatís

                                        [­tica tá 

universidade católica do rio de janeiro ki kar rán fã pẽ

"expansão do povoamento no estado do paraná" (1952) 

kỹ ser prỹg tóg ki kãrã mũ ki 

vẽnhãm fã e tỹ vĩ 

vẽnhgrun kãmẽg mũ ser 

rã pun kej fã tỹ paraná tá 

 

pãnónh téj kã tá 

guarapuava pẽnĩn kar palmas mĩ 

ver tóg mĩ kuprã tĩ vẽ 

rã pun kej fã kar mĩ ki nỹtĩ ti ver 

tibagi mĩ tóg ver tỹ reserva katy nỹ tỹ paraná tá krỹg tĩ vẽ 

 

ga katy tóg taki 

ge tóg nỹ ser 

to ga kuprã ke tĩ 

 

ga kuprã mré ki ne tũ 

hãra ga ẽn tóg ki fór nỹtĩ je 

ki tóg fág nĩ kajẽr tũ fãfãn kar gatu xetá nĩgru 

vãnh jũ tũ pétór mré kar pa kaiowá ke gé 

ki sãgsó tánh mré xokleng pého kupri mré mrũr 

tỹ kókaj mré kukrej kar kósán tỹ mỹnh 

 

mỹr ti kuprã tóg mỹnh kuprã rike nĩ

ẽg tỹ fór nĩvẽ

 

kỹ tóg ag to tĩ ti ag kuprã to 

ga kuprã mág tag ki 

ki ne tũ ti 

capitũ josé tóg ti tũ ag mré sỹmsỹm ke tĩ

 

guarapuava ag to tóg re kuprã ke tĩ ti 

kuprã tỹ vĩ to tóg koran-bang-re ke tĩ 

ti kuprã tỹ vĩ to tóg ga ke tĩ 

 

ti kuprã tỹ vĩ to tóg ẽmã ke tĩ 

hãra to tóg ĩn kuprã ke tĩ

 

 

André Luis Caetano (1987) é professor de língua kaingang e Educação Física. Liderança na Terra Índigena Serrinha, município de Ronda Alta (RS), cria cursos on-line, materiais didáticos e jogos edu­cativos na área de educação kaingang, junto à sua parceira de negócios, Jaqueline Cantoni.