Reportagem | Uma escritora no palco 26/06/2020 - 11:05

O teatro adapta obras de Clarice Lispector desde os anos 1960, com destaque para peças que a retratam como personagem

Helena Carnieri

Ela traduziu diversas peças, entre as quais Hedda Gabler, de Ibsen, em parceria com Tati Moraes, que estreou em 1965 no teatro Bela Vista, do Rio de Janeiro. Outros dramaturgos ganharam versões em português por suas mãos, como Yukio Mishima, Tchékhov e Carson McCullers. Também incluiu um texto dramatúrgico em sua extensa obra (“A Pecadora Queimada e os Anjos Harmoniosos”, que integra a coletânea de contos A Legião Estrangeira). Frequentava o teatro no Rio e chegou a escrever críticas nos jornais em que colaborava (sobre as reclamações contra o uso de palavrões, questionou: “Se escandaliza, por que comprar entrada?”). Se a relação de Clarice Lispector com os palcos era de um interesse vivo, a grande questão que se coloca é: como encaixar epifanias e outros acontecimentos tão íntimos típicos de sua literatura numa linguagem feita de ação?

Apesar do evidente desafio, encenadores brasileiros e estrangeiros adaptam sua obra desde os anos 1960, e sempre foi grande a tentação de representar a própria escritora entre os personagens — caso de Perto do Coração Selvagem, dirigida por Fauzi Arap em 1965, com Glauce Rocha no papel de Clarice e José Wilker no elenco.

Um Sopro de Vida (1979), de José Possi Neto, utilizava o teatro-dança, com Marilena Ansaldi em cena e ênfase nas sensações. Essas e inúmeras outras montagens são tema de pesquisa do professor de teoria literária da Universidade de Brasília André Luís Gomes, autor do livro Em Cena — As Relações Entre Clarice Lispector e o Teatro (2007). Ele também mantém o perfil “Clarice em Cena” no Instagram, uma rica fonte para os fãs da escritora.

Segundo Gomes, uma das montagens da obra clariceana de maior repercussão foi A Paixão segundo G.H. (2002), monólogo interpretado por Mariana Lima, com direção de Enrique Diaz e roteiro de Fauzi Arap. “Era um espetáculo intimista, para um público reduzido, e em espaços não convencionais. O espetáculo se dividia em três ambientes: o quarto de G.H. — ambiente opressivo, em que a personagem andava entre os espectadores (todos sentados em cadeiras espalhadas nesse ambiente); um corredor extremamente branco, em que o público ficava em pé encostado nas paredes enquanto G.H. chegava de forma estonteante perto dos espectadores; o quarto da empregada, agora num palco italiano, em que os espectadores assistiam ao encontro de G.H. com a barata”, relembra, saudoso.

O professor destaca ainda que diversas montagens “popularizaram” a autora, e outras exploraram muito bem linguagens como a música, o balé e o cinema para colocar Clarice em cena. Mas como é esse teatro em que a ação acontece para dentro? “São histórias contadas dentro das pessoas”, define o diretor curitibano Edson Bueno, que já realizou duas incursões pelos escritos clariceanos nos palcos. Na primeira, Onde Estivestes à Noite, de 1999, entremeou as imagens e sentimentos sugeridos por Clarice numa trama de Julio Cortázar, o que, segundo o diretor, funcionou como mágica.

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Encenação da peça Onde Estivestes à Noite, de 1999, dirigida por Edson Bueno. Foto: Reprodução.

 

Essa maestria da escritora brasileira de “se encaixar” numa trama alheia atesta seu universalismo — afinal, a estrangeiridade e, ao mesmo tempo, a profunda ligação com o Brasil sempre foram uma questão em sua vida e obra.

Obviamente, a linguagem própria da escritora, lapidada ao longo de uma vida inteira à frente da máquina de escrever, não se oferece de mão beijada aos atores. “Não se trata de um texto fácil, que remeta o leitor a lugares de compreensão imediata”, define o crítico e doutor em literatura brasileira pela USP Wellington Andrade. “O sentido parece sempre fugidio, um tanto quanto etéreo — o que pode levar a enganos — como certa aura de sentimentalismo ou misticismo.”

Diferentes encenadores brasileiros trouxeram obras de Clarice aos palcos, como José Caldas, que fez A Vida Íntima de Laura, em 1981, e chegou a remontá-la na França, e A Mulher que Matou os Peixes (1986) — a obra infantojuvenil de Clarice também tem espaço frequente nos palcos.

 

Cem anos
No centenário de Clarice, diversas montagens foram anunciadas no Brasil e no mundo. Uma delas, da paranaense Denise Stoklos, tem previsão de estreia para setembro, em São Paulo. Abjeto-Sujeito: Clarice Lispector por Denise Stoklos, da atriz e performer de Irati, foi maturada ao longo de anos. “Tudo dela revelava meu interior e dava corpo literário ao que eu sentia do mundo. Parecia que pela primeira vez alguém descrevia pra mim os sentidos e as manifestações desse mundo. O fato de ela ter ascendência ucraniana, como eu também tenho, me aproximava ainda mais, rompia um pouquinho uma longa distância, aquela que separa o grande inspirador e sua admiradora.”

Neste espetáculo, a atriz conta com o apoio do dramaturgista e crítico Welington Andrade e do diretor Elias Andreato. A dramaturgia faz uma costura de fragmentos dos contos “A Quinta História”, “A Menor Mulher do Mundo”, “O Ovo e a Galinha”, “O Búfalo” e “Amor”; dos romances A Paixão Segundo G.H. e Água Viva; das crônicas “Vergonha de Viver” e “Perdoando Deus” e de algumas entrevistas que Clarice fez, como jornalista, com Elis Regina, Bibi Ferreira, Hélio Pelegrino, Pablo Neruda, Djanira, Marly de Oliveira e Maria Martins. 

“Estamos numa busca importante e única de um estudo do que significa na obra de Clarice o tratamento do abjeto para encaminhamento, digamos, ao sujeito, à personificação, à individualização das experiências”, conta Denise.

 

Desigualdade
A denúncia das diferenças sociais no Brasil pode ser sutil em Clarice, mas está presente em toda sua obra. Esse aspecto foi priorizado em outra montagem deste ano — A Hora da Estrela, que o diretor André Paes Leme considerava “um desafio enorme para a cena”. O espetáculo mantém a narrativa de Clarice, mas faz uma reorganização, com “apropriação da narrativa como diálogo e, no nosso caso, uma definição de fragmentos que foram trabalhados musicalmente”, conta Paes Leme. Com músicas de Chico César na trilha, a atriz Laila Garin e elenco dão corpo a esse grito da miséria e carência afetiva que se opera em Macabéa.

“São temas atuais, perturbadores e, infelizmente, neste tempo de pandemia devem ficar ainda piores”, avisa o diretor. “Esse texto é uma necessidade. É uma denúncia contundente da nossa desigualdade social e um alerta para a nossa indiferença em relação ao outro. Não houve um dia, desde que iniciei esse processo, que não senti alguma angústia quando recordava das palavras do texto. Ele é um soco no estômago. Não podemos ficar passivos diante de tanta desigualdade social. Nunca existirá uma democracia plena se não superarmos essa desigualdade. A Clarice humaniza essa realidade trágica do nosso país através da personagem Macabéa”, afirma.

 

CURITIBA EM BUSCA DE CLARICE

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Registro da peça Minha Vontade de ser Bicho (2011), encenada pelo grupo Delírio, de Edson Bueno. Foto: Chico Nogueira

 

Na capital paranaense, montagens sobre a escritora partiram de extensa pesquisa — como A Hora da Estrela (2001), de Sérgio Medeiros (2001), com Carla Berri. Apresentado em 1999, no Teatro Cleon Jacques, Onde Estivestes de Noite foi o primeiro espetáculo de Edson Bueno baseado na obra da escritora, elhe rendeu o Troféu Gralha Azul (concedido pelo Governo do Estado em parceria com Teatro Guaíra) de melhor diretor.

A ação interiorizada das tramas literárias clariceanas levou Bueno a experimentar um casamento inédito de Clarice com Julio Cortázar — o argentino forneceu o fio da história, por meio do conto “Fim de Jogo” (1956), enquanto os diálogos e pensamentos eram todos de Clarice. Por que o mix? “Porque encaixava”, diz. Apaixonado por cinema, ele compara a escrita de Clarice aos filmes de Ingmar Bergman, em que os acontecimentos mais importantes ocorrem na mente e no coração das personagens.

Já em 2011, Minha Vontade de ser Bicho foi uma incursão profunda do grupo Delírio, liderado por Bueno, aos mistérios de Clarice, com enfoque na busca pelo lado selvagem de cada um. O estopim foi a leitura da biografia escrita por Benjamin Moser, mas também um contato muito constante com a obra da autora e a experiência com a adaptação de obras de vários outros escritores, como Kafka e Machado de Assis.

Para o diretor, um pré-requisito para se trabalhar com Clarice é ter uma alta sensibilidade, mas também acreditar que aquele universo espiritual, de absoluta reflexão, pode ser colocado na boca do ator. “Todos do elenco precisam introjetar as imagens que o texto inspira e crer na subjetividade delas.”

Em Minha Vontade de ser Bicho, as atrizes Pagu Leal, Márcia Maggi e Janja interpretavam diferentes fases da vida da escritora. “Lembro de uma cena em que a Janja falava sobre liberdade. Projetamos no fundo a neve caindo — e a soma das duas coisas passou a ideia do que ela estava dizendo. É subjetivo, mas funciona dramaticamente”, conta o diretor.

A ausência de ação física grandiloquente exigiu do grupo muita pesquisa, de forma a construir a movimentação em cena. “Eram movimentos que ocorriam quase dentro do personagem, e não caminhando no espaço do palco.”

 

CURIOSIDADE

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A atriz Rita Elmôr interpretando Lispector na peça Que Mistérios tem Clarice?, de 1998. Foto: Divulgação

 

É do teatro que vem uma das “trivias” mais pitorescas envolvendo o culto contemporâneo a Clarice. A atriz Rita Elmôr encarnou a escritora em duas ocasiões. Na primeira, Que Mistérios tem Clarice? (1998), as fotografias do espetáculo (como a imagem acima) revelaram tamanha semelhança que passaram a ser usadas mundo afora como se fossem da própria escritora, seja em veículos de comunicação ou trabalhos acadêmicos. A partir dessa repercussão, ela lançou seu próprio monólogo, em 2017: Clarice Lispector e Eu — O Mundo Não é Chato, com direção de Rubens Camelo, e que trata de sua experiência com a pesquisa e a interpretação de Clarice. E em 2021, Rita viverá Clarice novamente, mas desta vez na Marquês de Sapucaí — onde será um destaques da escola de samba Tradição, que vai homenagear a escritora.

 

ENTREVISTA | WELLINGTON ANDRADE

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O professor, crítico de teatro e dramaturgista Welington Andrade. Foto: Leandro Saionet

 

Três perguntas para o professor, crítico de teatro da revista Cult e dramaturgista do espetáculo Abjeto-Sujeito: Clarice Lispector por Denise Stoklos

 

Como foi sua experiência pessoal com os livros de Clarice Lispector?
Entrei em contato com a obra de Clarice Lispector aos 14 anos, em 1978, quando uma professora adotou como leitura obrigatória em um dos bimestres daquele ano o livro de contos A Legião Estrangeira. Fiquei bastante impactado com narrativas como “A Quinta História” e “O Ovo e a Galinha”, por exemplo, embora minha pouca idade não me desse condições de compreender a fundo a obra de Clarice, somente de gostar bastante do que havia lido sem saber muito o porquê. A partir de 1987, quando ingressei no curso de Letras da USP, é que comecei a formar um repertório crítico mais consistente para entender melhor o universo da autora, uma das minhas preferidas no Brasil, ao lado de Machado de Assis e de Guimarães Rosa.      

 

O que a escrita dela mais interessa a você, como leitor e crítico?
A grande qualidade, a meu ver, da literatura clariceana é o trato da linguagem — uma maneira inteiramente nova de a palavra literária experimentar o tempo todo novos jeitos de expressão, sondar novos modos de subjetivação e criar mundos imaginários calcados única e exclusivamente no manejo da linguagem. Clarice é uma autora de “textos de fruição” — na acepção de Roland Barthes.

 

Que oportunidades sua obra cria para o dramaturgo-adaptador?
Pensando nas conquistas do teatro contemporâneo, a melhor oportunidade é a de implodir a categoria dramática da personagem. Os textos clariceanos são quase sempre discursos, não propriamente falas de figuras psicologizadas a quem damos o estatuto de personagens de ficção. Então, o maior desafio da performer Denise Stoklos está sendo o de recusar encarnar essas pretensas personagens. A atriz está expressando por meio do seu corpo e de sua voz os discursos da autora — o que a leva, como a artista surpreendente e preparada que é, a investigar a fundo a potencialidade da palavra literária em cena.

 

HELENA CARNIERI é jornalista e mestre em Estudos Literários. Escreve crônicas no blog A Vida é Palco, do portal Bem Paraná.