Reportagem: Dostoiévski total 29/01/2021 - 11:51

Depois de duas décadas, a Editora 34 completa a tradução da obra ficcional do gênio russo, que em 2021 tem seu bicentenário de nascimento comemorado 

Luiz Rebinski

 

Em Fiódor Dostoiévski tudo é superlativo. Seus romances mais marcantes são obras caudalosas, com tramas que se bifurcam e abrigam dezenas de personagens. Mesmo os livros mais curtos, como Memórias do Subsolo, são profundos e trazem tortuosos debates acerca do homem e seus percalços psicológicos e sociais.

Foi assim, de forma grandiosa, em uma espécie de saga, que se deu a conclusão da publicação de toda a obra ficcional do escritor russo no Brasil, que a Editora 34 começou no ano 2000 e concluiu no final de 2020. No total, foram 23 livros publicados em duas décadas.

Como nas melhores tramas do gênio russo, essa história também é repleta de personagens interessantes. A conclusão deste projeto, que começou de forma despretensiosa e sem a ideia de ser um “projeto” propriamente dito, acabou extrapolando seu propósito inicial e “mudou o panorama da recepção da literatura russa no Brasil”, conforme explica Paulo Bezerra, figura incontornável na tradução de Dostoiévski no país. O tradutor e professor se refere ao próprio trabalho e às “traduções do mestre Boris Schnaiderman”, um pioneiro em verter literatura russa direto do original para o português.

Para entender como as coisas se deram, é preciso voltar no tempo, a um cenário completamente diferente. Durante décadas, os livros de Dostoiévski — assim como a maioria dos autores do século de ouro da literatura russa, o XIX — eram traduzidos a partir de edições de outras línguas, em geral do francês — a famosa tradução da tradução. O motivo? “Não tínhamos tradutores à altura do empreendimento”, diz Bezerra.

E foi assim que o processo de recepção da literatura russa no Brasil se deu: a partir de traduções indiretas. O problema é que dificilmente uma tradução dessas pode ser boa, conforme explica Fátima Bianchi, que verteu quatro obras ficcionais de Dostoiévski, entre elas o romance Humilhados e Ofendidos, de 1861, um dos mais importantes da carreira do escritor.

“Esse tipo de tradução inclui duas operações diferentes: uma da língua intermediária e a outra desta para a língua do tradutor. Cada língua possui as suas especificidades, e nas retraduções se perdia muito das sutilezas do original”, diz Bianchi, que também é professora da área de Língua e Literatura Russa do curso de Letras da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP).

E com a escrita de Dostoiévski esse problema se agrava ainda mais, dada a narrativa cheia de nuances, que “harmoniza personagens e linguagem”, conforme pontua Paulo Bezerra. Ou seja, quando suas personagens entram em crise, esta se manifesta imediatamente na linguagem.

O tradutor dá o exemplo do epiléptico príncipe Míchkin, personagem central de O Idiota. As falas dele são escritas não apenas conforme seu nível de escolaridade, sua cultura, mas igualmente segundo seu estado de saúde mental. Portanto, sua fala pode embaralhar-se, ter o ritmo alterado, a sintaxe sinuosa, etc. Essa era uma das razões pelas quais alguns contemporâneos — como Tolstói — diziam que Dostoiévski “escrevia mal”. 

“Nas traduções tanto do francês quanto do inglês desaparecem as peculiaridades das falas das personagens dostoievskianas, ou seja, esfumaçam-se as próprias personagens como unidades caracterológicas, e temos um discurso linear, claro e elegante, bem ao gosto daquilo que o grande teórico da tradução Henri Meschonnic chama de ‘mito francês da clareza’, coisa totalmente oposta a Dostoiévski”, explica Bezerra. Portanto, o que durante décadas o leitor brasileiro teve, foi um Dostoiévski desfigurado pela retradução e pela “clareza” da prosa francesa.  

Bezerra morou oito anos na Rússia antes de iniciar o imenso desafio de verter os principais livros do autor para o português. Em 20 anos, traduziu, entre outros, os chamados “cinco elefantes de Dostoiévski”, como são conhecidos os mais longos e importantes romances do escritor — Crime e Castigo, O Idiota, Os Demônios, O Adolescente e Os Irmãos Karamázov.

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Toda obra ficcional de Dostoiévski está disponível no Brasil pela Editora 34. Foto: reprodução

 

Começando a saga
Em 1993, o poeta e tradutor Nelson Ascher apresentou à editora e escritora Beatriz Bracher quatro livros de autores do leste europeu — dois húngaros (István Örkény e Dezsö Kosztolányi), um russo (Sigismund Krzyzanowski) e um tcheco (Aleksandar Jovanovic) —, o que daria início à Coleção Leste na 34. Abriu-se então espaço dentro da editora para escritores da parte oriental da Europa ainda pouco ou mal traduzidos no Brasil.

Quase uma década depois, Paulo Bezerra apresentou a tradução de Crime e Castigo à editora, lançada em 2001. Antes disso, o tradutor já havia publicado O Rumor do Tempo, livro de memórias do poeta russo Óssip Mandelstam, também como parte da Coleção Leste. Mas foi com o célebre relato sobre a trajetória do jovem estudante Raskolnikóv que Dostoiévski começava a ser um fenômeno no Brasil — porém, o primeiro livro da Coleção foi Memórias do Subsolo, traduzido por Boris Schnaiderman e publicado em 2000.

O trabalho de Bezerra fez tanto sucesso que houve grande movimento nas livrarias para comprar o clássico, que pela primeira vez tinha uma tradução à altura de sua qualidade literária. A escolha do romance por parte de Bezerra não parece ter sido aleatória, pois, para o tradutor, “Crime e Castigo é a porta de entrada para a obra de Dostoiévski e o mais influente de todos os seus romances”.

O que não deixa de ser curioso, pois o livro, apesar de apresentar uma linguagem “acessível”, é uma narrativa “pesada”, que trata de assuntos muito sérios, com contornos filosóficos. São Petersburgo, onde se passa a trama, é descrita como um lugar sombrio, que poderia servir facilmente de cenário para filmes B de terror ou para um videoclipe da banda The Cure. Ainda assim, o que ficou claro era que havia uma demanda reprimida pela originalíssima história do jovem que assassina uma velha usurária e depois entra em uma espiral de dúvidas existenciais.

Tradutora de contos e da novela Uma História Desagradável, Priscila Marques destaca a habilidade do autor em costurar temas “pesados” em histórias vivas e ágeis, quase vertiginosamente ágeis. “Dostoiévski fazia, além disso, uma composição muito original de materiais, intercalando monólogos interiores, diálogos, cartas, formando um verdadeiro mosaico literário.”

“Ainda hoje Crime e Castigo é um livro com venda constante. O engraçado é que os romances mais longos são os que fazem mais sucesso. Acho que o leitor do Dostoiévski tem uma visão macro da obra dele, acompanhando tudo que sai”, diz o editor Danilo Hora, da 34.

 

Dostoiévski na USP
Dos 23 livros de ficção traduzidos pela Editora 34, a predominância é de obras com a assinatura de Paulo Bezerra. Ele verteu nove títulos do autor para a Coleção Leste, além de contos publicados em uma grande coletânea que envolveu diversos outros tradutores. Boris Schnaiderman e Fátima Bianchi aparecem logo em seguida, com quatro colaborações cada, além dos contos esparsos que verteram. Esse quadro marca também a importância que esses profissionais têm no processo histórico de tradução direta para o português da obra de Dostoiévski.

Boris Schnaiderman, morto em 2016, é uma espécie de lenda entre os tradutores do russo. Sua contribuição é fundamental e imensa. Foi pioneiro em quase tudo. Paulo Bezerra, por sua vez, em grande parte, é o responsável pelo boom que a obra do escritor russo teve no começo dos anos 2000, o que, entre outros efeitos indiretos, gerou interesse de jovens em estudar o idioma russo com o objetivo da tradução. Já Fátima Bianchi desde os anos 1980 é um das sumidades na obra do autor e hoje é presidente da Sociedade Brasileira de Dostoiévski e Coordenadora Regional da International Dostoevsky Society.

Cada um deles teve grande importância para que o departamento de literatura russa do curso de letras da Universidade de São Paulo (USP) hoje seja um grande formador de tradutores, muitos deles colaboradores da Editora 34. 

“Antes restrito principalmente a Boris Schnaiderman e Paulo Bezerra, o número de pessoas que se dedicam ao ofício tem se ampliado significativamente”, diz Fátima Bianchi. “Na USP já formamos dezenas de jovens preparados não apenas para a tradução de obras importantes da literatura russa para o português, como também para refletir sobre tradução.”

A própria Priscila Marques é uma das “crias” do departamento de literatura russa da USP. Para ela, a geração de tradutores que temos hoje é em larga medida fruto do trabalho fundador de Boris Schnaiderman, “que estabeleceu uma escola de tradução de alto nível, com profunda sensibilidade estética”. “O fato de termos boa parte dos trabalhos de pós-graduação feitos no curso de russo dedicados à tradução, mostra como essa escola ganhou corpo e estabeleceu uma nova história na recepção da literatura russa no Brasil”, diz.

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Sempre atual
Dostoiévski viveu em um tempo completamente diferente do mundo contemporâneo. E como não poderia deixar de ser, foi fruto de seu meio. No entanto, o que torna seus textos tão interessantes é que ele propõe grandes questões, mas nunca toma uma decisão definitiva entre aquilo que descreve, seja um tema ligado à fé ou à política.

Sua obra transmite menos um sistema corrente de crenças e mais um desejo urgente de crer. Essa é a razão pela qual os argumentos filosóficos e os elementos alegóricos característicos de seus romances permanecem originas e envolventes. “No nosso mundo cão de hoje, a exclusão social virou norma, e isso é uma das várias explicações para a atualidade de Dostoiévski”, opina Paulo Bezerra.

Na década de 1840, Dostoiévski se envolveu com uma sociedade chamada Círculo de Petrashevski.  Foi preso e sentenciado à morte. Esteve a ponto de ser executado, mas no último minuto recebeu a suspensão da sentença e acabou sendo enviado à Sibéria, para quatro anos de trabalhos forçados. É essa experiência que descreve em Recordações da Casa dos Mortos, um livro sombrio que é considerado pelos estudiosos do autor um ponto de inflexão em sua obra.

Depois desse livro, Dostoiévski escreve seus melhores romances. Em uma comparação com a literatura brasileira, o livro teria sido tão essencial para o russo quanto Memórias póstumas de Brás Cubas foi para Machado de Assis.  

Coincidentemente, esse foi o último dos 23 livros de ficção do autor publicado pela Editora 34 e traduzido por Bezerra. Ele trocou o título, consagrado no Brasil, para Escritos da Casa Morta. E o romance que marcou a vida e a carreira do escritor russo, como uma espécie de turning point, tornou-se o último capítulo de uma saga que não durou apenas 20 anos, mas sim quase dois séculos, para ser concluída no Brasil.     

 

Toda ficção de Fiódor Dostoiévski

Gente Pobre (1846), tradução de Fátima Bianchi [2009]

O Duplo (1846), tradução de Paulo Bezerra [2011]

A Senhoria (1847), tradução de Fátima Bianchi [2006]

Noites Brancas (1848), tradução de Nivaldo dos Santos [2005]

Niétotchka Niezvânova (1849), tradução de Boris Schnaiderman [2002]

Um Pequeno Herói (1857), tradução de Fátima Bianchi [2015]

A Aldeia de Stepántchikovo e Seus Habitantes (1859), tradução de Lucas Simone [2012]

Dois Sonhos: O Sonho do Titio (1859) e Sonhos de Petersburgo em Verso e Prosa (1861), tradução de Paulo Bezerra [2012]

Humilhados e Ofendidos (1861), tradução de Fátima Bianchi [2018]

Escritos da Casa Morta (1862), tradução de Paulo Bezerra [2020]

Uma História Desagradável (1862), tradução de Priscila marques [2016]

Memórias do Subsolo (1864), tradução de Boris Schnaiderman [2000]

O Crocodilo (1865) e Notas de Inverno Sobre Impressões de Verão (1863), tradução de Boris Schnaiderman [2000]

Crime e Castigo (1866), tradução de Paulo Bezerra [2001]

Um Jogador (1867), tradução de Boris Schnaiderman [2004]

O Idiota (1869), tradução de Paulo Bezerra [2002]

O Eterno Marido (1870), tradução de Boris Schnaiderman [2003]

Os Demônios (1872), tradução de Paulo Bezerra [2004]

Bobók (1873), tradução de Paulo Bezerra [2012]

O Adolescente (1875), tradução de Paulo Bezerra [2015]

Duas Narrativas Fantásticas: A Dócil (1876) e O Sonho de Um Homem Ridículo (1877), tradução de Vadim Nikitin [2003]

Os Irmãos Karamázov (1880), tradução de Paulo Bezerra [2008]

Contos Reunidos, vários tradutores [2017]

 

Luiz Rebinski é jornalista e autor do romance Um Pouco Mais ao Sul. Editou o Cândido desde sua criação, em 2011, até junho de 2019.